‘Não Foram 35 Dias, Foram 35 Anos’: Mães da Chacina de Acari Resistem Por Justiça Pelas Vítimas de Desaparecimento Forçado

'Que Democracia É Essa?'

35 anos desde a Chacina de Acari. Mães e familiares se reúnem em homenagem às onze vítimas de desaparecimento forçado por parte de agentes de Estado. Foto: Bárbara Dias
35 anos desde a Chacina de Acari. Mães e familiares se reúnem em homenagem às onze vítimas de desaparecimento forçado por parte de agentes de Estado. Foto: Bárbara Dias

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O Coletivo Fala Akari e o Movimento Mães de Acari realizaram, no último 26 de julho, uma atividade em reconhecimento aos 35 anos da Chacina de Acari e à luta por justiça às vítimas da tragédia. Sediado no Espaço Cultural Mães de Acari, o evento contou com aproximadamente 50 pessoas, dentre elas representantes dos dois coletivos, mães e familiares das vítimas de desaparecimento forçado de Acari, familiares de vítimas de violência do Estado de outros territórios, advogados e pesquisadores que acompanham o caso de Acari, representantes de mandatos de parlamentares e moradores da própria favela de Acari.

Entre Ameaças, Calúnias e Indenizações, o Percurso dos 35 Anos de Luta 

No dia 26 de julho de 1990, Cristiane Souza Leite (16 anos), Rosana Lima de Souza (18 anos), Wallace do Nascimento (17 anos), Edio do Nascimento (41 anos), Luiz Carlos de Vasconcelos (37 anos), Moisés dos Santos Cruz (31 anos), Antônio Carlos da Silva (17 anos), Viviane Rocha (13 anos), Luiz Henrique Euzébio (17 anos), Hudson de Souza (16 anos), e Edson de Souza (17 anos), passavam o dia em um sítio em Suruí (Magé), quando foram forçadamente retirados por um grupo de pessoas que se identificavam como policiais.

Os sequestradores buscavam jóias e dinheiro e, após “negociarem” durante cerca de uma hora (segundo Dona Laudicena, uma testemunha do caso já falecida), levaram as onze vítimas para um endereço desconhecido. Seus corpos jamais foram encontrados. Desde então, as mães dos desaparecidos buscam por seus filhos e exigem justiça pelas vítimas, uma luta que já dura 35 anos. Tornaram-se internacionalmente conhecidas como as Mães de Acari, favela onde vivia a maioria dos onze desaparecidos.

Em seu empenho por denunciar os agentes de Estado responsáveis pela chacina, as mães enfrentaram perseguições, calúnias, ameaças e uma fatalidade violenta. Edméia da Silva, uma das lideranças das Mães de Acari, foi assassinada em 19 de janeiro de 1993. Os acusados do assassinato, entretanto, foram absolvidos em 2024. Em 1 de julho de 2022, 32 anos após a chacina, a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ) sancionou a lei Nº 9.753 que prevê o pagamento de indenização às mães das vítimas da Chacina de Acari por parte do Governo do Estado. Em 2024, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Estado brasileiro pelo crime. 

Cerca de 50 pessoas participaram do evento que marcou os 35 anos da Chacina de Acari, na sede do Coletivo Fala Akari, em 26 de julho de 2025. Foto: Bárbara Dias
Participantes do evento que marcou os 35 anos da Chacina de Acari, na sede do Coletivo Fala Akari, em 26 de julho de 2025. Foto: Bárbara Dias

‘Não Deixar Que a Memória da Existência Desses Jovens Se Perca’

Faixas espalhadas pelo espaço que sediou o evento lembravam a histórica luta das Mães de Acari, incluindo cartazes que, aludindo a placas de rua, comemoravam o nome das onze vítimas da chacina. Os cartazes também homenagearam os cinco jovens assassinados na Chacina de Costa Barros, cujo carro foi fuzilado pela Polícia Militar com 111 tiros, além de camisetas e bandeiras em memória às vítimas de violência de Estado. 

Buba Aguiar, socióloga, comunicadora popular e integrante do Coletivo Fala Akari, introduziu o evento discutindo a importância de realizá-lo no dia em que completam-se 35 anos do desaparecimento das onze vítimas. 

“Hoje a gente está fazendo esse evento pela memória dos onze jovens que foram desaparecidos no caso conhecido como Chacina de Acari… A gente percebe o uso do desaparecimento forçado pelas forças policiais, [que são] as forças de segurança do Estado, e pela milícia. Já é um outro paralelo que a gente faz também: eles foram vítimas de desaparecimento forçado por [um] grupo de extermínio [chamado] cavalos corredores. E aí, com essa remodelação dos grupos de extermínio, a gente tem o que, hoje, a gente conhece como milícia. Há várias formas de assassinar não só o corpo de uma pessoa, mas tentar assassinar, acabar com a sua existência, com a memória de que aquela pessoa existiu. Por isso a gente hoje está aqui, para não deixar que a memória da existência desses jovens, da importância da luta das Mães de Acari e dos familiares que estão com a gente hoje, se perca. Porque é isso que o Estado quer.” — Buba Aguiar 

Aline Leite, familiar de uma vítima da Chacina de Acari e integrante do Movimento Mães de Acari, deu seguimento à abertura das atividades.

“Esse caso assolou tantas famílias, tantas famílias como a nossa família, mas também toda uma comunidade,… todo o Rio de Janeiro, e até internacionalmente. Mas hoje nós estamos aqui para contar e para falar sobre a memória dos onze jovens que foram desaparecidos na década de 1990 num sítio em Magé… A gente fala que não foram 35 dias, [ou] 35 meses. Foram 35 anos nessa data de hoje.” — Aline Leite 

Luta, saudade e memória. Da esquerda para a direita: Deley de Acari, Aline Leite e Marisa Pinheiro declamam poemas durante o evento. Foto: Bárbara Dias
Luta, saudade e memória. Da esquerda para a direita: Deley de Acari, Aline Leite e Marisa Pinheiro declamam poemas durante o evento. Foto: Bárbara Dias

A introdução do evento deu lugar a uma roda de poesia apresentada por Deley de Acari, produtor cultural, escritor, militante e poeta de Acari, junto de outros moradores. Marisa Pinheiro, do Espaço Faveleira, declamou um poema por Jurema Araújo, que aborda as dores e angústias pela perda de um filho:

LAMENTO (ou O MAIOR GOLPE DO MUNDO ou A DOR DOS POBRES É PIEGUICE PARA OS INTELECTUAIS e OUTROS PSEUDOS AIS)

Perdi meu filho querido
Na estrada da minha vida
Choro lágrima doída
Do meu coração partido
 
Choro meu filho sumido
A minha cria perdida
Que não perdi para a vida
Perdi para a morte violenta
 
Isso mãe nenhuma aguenta
É a dor da mais doída
É ter a alma retorcida
É ferida que não cura
 
Estou andando à procura
De paralisar o tempo
Para desfazer o momento
Da tragédia acontecida
 
De resto, também morri
Naquele exato instante
Lembrar seu rosto é calmante
Pro meu viver sem sentido.”
(Poesia de Jurema Araújo)

Integrantes do coletivo Fala Akari, Letícia Pinheiro e Buba Aguiar destacam a importância de valorizar estas lutas como forma de reivindicar a própria existência dentro de territórios como Acari. Foto: Bárbara Dias
Integrantes do coletivo Fala Akari, Letícia Pinheiro e Buba Aguiar destacam a importância de valorizar estas lutas como forma de reivindicar a própria existência dentro de territórios como Acari. Foto: Bárbara Dias

Em seguida, as moradoras de Acari e integrantes do Fala Akari, Buba Aguiar e Letícia Pinheiro, apresentaram o coletivo, sua atuação no território e suas diversas frentes de trabalho.

“[O Fala Akari] é um coletivo de juventude, de nós, mulheres crias do território. O ponto principal que eu acho que a gente carrega ao longo desses anos é que a gente quer falar de denúncia, a gente quer falar da violência, mas a gente não quer falar só disso. A gente também quer falar de possibilidade de futuro. Então, a construção do pré-vestibular popular vem disso, a construção da Agenda Acari, também vem disso… O coletivo usa a ferramenta da comunicação comunitária e da educação popular como estratégia para que nós, enquanto moradores, possamos pertencer a esse território também. E tem o ponto que é o terrorismo de Estado, a chacina, o desaparecimento forçado. Não deve ser uma pauta só dos familiares, é uma pauta coletiva, é uma pauta de todo mundo. Então, quanto mais a gente valoriza essa história, quanto mais a gente valoriza esse processo dessas lutas, é também reivindicar a nossa própria vida, a nossa própria existência, dentro desse território.” — Letícia Pinheiro

‘Elas Se Tornaram Mães Buscadoras de Seus Filhos’

As rodas de conversa ocorridas no evento buscaram rememorar a histórica luta das Mães de Acari e seu legado para outros familiares de vítimas de violência de Estado. Duas mães estiveram presentes no evento; as demais—por conta da idade avançada ou de já terem falecido—foram representadas por familiares das vítimas. 

Dona Teresa de Souza, mãe de Edson Souza Costa, que tinha 16 anos quando desapareceu, denunciou a falta de respostas em uma fala comovente.

“Nós estamos aqui ainda, [porém] alguns pais já partiram sem saber notícia até agora… Nem os ossos dos nossos filhos deixaram pra nós enterrarmos dignamente. Sumiram, desapareceram. O que eles fizeram? Até hoje nós não sabemos.” — Dona Teresa de Souza

Dona Ana Maria da Silva, mãe de Antônio Carlos da Silva, que tinha 17 anos quando desapareceu, foi a outra mãe que marcou presença no evento. 

Dona Teresa de Souza, uma das Mães de Acari, fala sobre sua luta, sua dor e a falta de respostas mesmo 35 anos após a chacina. Foto: Bárbara Dias
Dona Teresa de Souza, uma das Mães de Acari, fala sobre sua luta, sua dor e a falta de respostas mesmo 35 anos após a chacina. Foto: Bárbara Dias

Vanine de Souza Nascimento, uma das familiares das vitimas da Chacina de Acari, fez uma agradecimento público às mães que não desistiram da luta no início, quando se depararam com o desaparecimento de seus filhos.

“Nós, amigos e familiares, temos que agradecer hoje nessa manhã, a essas mulheres, que com coragem e sem ao menos terem noção de onde chegariam, é que nós estamos aqui. Elas foram as precursoras, iniciantes desse movimento [de mães de vítimas de violência de Estado em diversas comunidades] que, até então, não sabiam que se tornaria um movimento. Elas se juntaram e [se tornaram], em 1990, mães buscadoras dos seus filhos que, com as próprias mãos, cavaram a terra, brigaram e puseram as suas vidas em risco.” — Vanine de Souza Nascimento

Representando o Projeto Legal ODH, que defende os direitos de crianças, adolescentes e outros grupos em situação de vulnerabilidade social, Lucas Arnaud compartilhou com as mães e familiares presentes o panorama atual do processo do ponto de vista jurídico. O advogado comentou sobre o andamento da condenação do Estado Brasileiro pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, ocorrida em dezembro de 2024, pelo desaparecimento forçado das onze vítimas. 

“Foi feito um reconhecimento muito importante que, infelizmente, ainda não havia sido dado: de que o Estado é responsável, e que houve o desaparecimento forçado. Isso era uma briga antiga das famílias, e que pode parecer uma questão técnica, mas é muito importante. Mostrar que, realmente, é um ato muito cruel usado, não só executar filhos, esposos, e de desaparecer com o corpo… Então [após a sentença], pouco a pouco, os familiares estão recebendo a indenização e estão conseguindo a assistência de saúde, que é algo muito importante que a Corte Interamericana determina, que sejam reconhecidos os impactos que toda essa situação gerou na saúde das famílias… E, ao mesmo tempo, a Corte Interamericana também tem um aspecto muito interessante, que são as medidas de prevenção, para evitar que esses casos continuem acontecendo.” — Lucas Arnaud

Dona Ana Maria da Silva, uma das Mães de Acari, assiste às falas dos participantes do debate durante o evento. Foto: Bárbara Dias
Dona Ana Maria da Silva, uma das Mães de Acari, assiste às falas dos participantes do debate durante o evento. Foto: Bárbara Dias

Fábio Araújo, professor e pesquisador que estudou o movimento das Mães de Acari, explicou como a luta destas mulheres foi, em muitos aspectos, pioneira.

“Uma das grandezas do movimento Mães de Acari é que é o precursor, trazendo a capacidade de mobilização de grupos que, até então, não conseguiam se mobilizar para fazer essas denúncias. E como a gente ouviu aqui, em vários relatos, é muito difícil você fazer as denúncias quando você mora no território, e está próximo desses grupos. E no caso dos desaparecimentos, um agravante é a ausência do corpo… Você não pode denunciar uma morte porque não tem corpo. E do ponto de vista… da cultura comercial, da nossa cultura estatal, os desaparecimentos são tratados como fatos de menor relevância.” — Fábio Araújo

‘Que Democracia É Essa?’

Nivia Raposo da Movimento de Mães e Familiares de Vítimas da Violência Letal do Estado e Desaparecidos Forçados, Patricia Oliveira da Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência e a ex-vereadora Monica Cunha, co-fundadora do Movimento Moleque e criadora da Comissão de Combate ao Racismo na Câmara Rio, debateram a importância da militância das Mães de Acari para outras mães e familiares vítimas.

“Se eu sou a pessoa que eu sou hoje, é… porque a Vera e a Marilene abriram as portas… e ensinaram para todos os que estão aqui hoje, e pra quem não está também, o que é a luta dos familiares vítimas de violência. É estar num ato, estar participando de audiência pública, é estar reivindicando seus direitos, construindo um projeto de lei. Se a gente tem o que celebrar nesses 35 anos, [é que as] Mães de Acari [ensinaram] para outras mães e familiares que todos reivindiquem.” — Patricia Oliveira

Da esquerda para a direita: Nivia Raposo, Patricia Oliveira e Monica Cunha falam sobre o legado das Mães de Acari para outras mães e familiares de vítimas de violência de Estado. Foto: Bárbara Dias
Da esquerda para a direita: Nivia Raposo, Patricia Oliveira e Monica Cunha falam sobre o legado das Mães de Acari para outras mães e familiares de vítimas de violência de Estado. Foto: Bárbara Dias

Monica Cunha questiona a democracia em que vivemos, pois o sistema ainda permite que ocorram desaparecimentos forçados e assassinatos de jovens, majoritariamene negros, em chacinas e autos de resistência.

“Como Patrícia falou, essas chacinas que falamos—Acari, Candelária, Vigário Geral, e outras—foram após o término da Ditadura. Foi num país dito democrático. Que democracia é essa? Olha a quantidade de chacinas. E se a gente for contar a quantidade de pessoas mortas e desaparecidas só nessa chacina, que a gente sabe que teve outras e a gente não contou, não tem essa conta… [Em] um país democrático. Então, nesse país democrático que continua nos matando porque ele não ajudou um milímetro para combater o racismo, elas e nós continuamos a fazer história. Porque hoje, nesse país,… se você insistir em falar de segurança pública, se vocês forem falar dessa violência, desse racismo que existe, têm que falar com os familiares de vítimas. Não tem livro, não tem acadêmico, não tem ninguém que sabe falar sobre isso, sem nós. As decisões só aconteceram porque nós botamos os nossos peitos na frente e fomos dizer que não queríamos.” — Monica Cunha

Após 35 anos, as Mães de Acari seguem como um movimento pioneiro nas lutas de mulheres familiares de vítimas de desaparecimento forçado e violência de Estado. Com elas, forjou-se um legado de resistência e persistência seguido por várias outras mães e familiares que também se tornam vítimas. Diante de um silêncio institucional que perdura por décadas, esses movimentos seguem na luta por memória, verdade e justiça. 

Veja o álbum completo por Bárbara Dias no Flickr:

"35 anos da Chacina de Acari, memória e luta", Acari, 26 de julho de 2025

Sobre a autora: Bárbara Dias, cria de Bangu, possui licenciatura em Ciências Biológicas, mestrado em Educação Ambiental e atua como professora da rede pública desde 2006. É fotojornalista e trabalha também com fotografia documental. É comunicadora popular formada pelo Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC) e co-fundadora do Coletivo Fotoguerrilha.


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