

Zona Norte do Rio, Complexo da Maré, Favela do Pinheiro, Bloco 07, Apartamento 502. Ali, Cadu Barcellos cresceu ao lado da mãe, Neilde, da irmã, Lethícia, e do padrasto, Willian, em um lar que transbordava afeto, resistência e arte. Embora a família não more mais no endereço, o local permanece vivo na memória coletiva mareense: foi o berço de um cria cuja trajetória transformou a favela em linguagem cinematográfica. Reconhecendo, em 2025, os cinco anos sem Cadu Barcellos, o RioOnWatch celebra o legado do artista mareense que dignificou a favela no cinema brasileiro.
Cadu nasceu em 1986 no Complexo da Maré, território que hoje tem aproximadamente 125.000 moradores, distribuídos em 16 favelas, marcadas pela rica diversidade cultural, histórias de resistência e de organização comunitária. Desde pequeno, da janela do apartamento 502 do bloco 07 do Conjunto Pinheiro, Cadu observava o cotidiano mareense: becos, vielas, cores e sons que, mais tarde, se tornariam matéria-prima de sua arte.
“Eu sinto esse sentimento de reconhecimento, um orgulho por ter criado meu filho na Maré, na favela, e ele ter se tornado um artista que é inspiração. Um artista que é orgulho não só para mim, mas para a família e todos os outros cidadãos da favela.” — Neilde Barcelos
É com a mãe de Neilde, avó materna de Cadu, Dona Irene, que a história da família de Cadu começa na Maré. Vinda de São Fidélis, município do Norte Fluminense, Dona Irene foi levada para a favela com a promessa, feita pelo então Governador Carlos Lacerda nos anos 1960, de que a estadia seria provisória.
No entanto, o provisório tornou-se permanente, e foi na Nova Holanda, uma das favelas do Complexo da Maré, onde Neilde cresceu e construiu sua história. Já adulta, mudou-se para o Conjunto Pinheiro, na Favela do Pinheiro, onde Cadu nasceu e foi criado, crescendo com uma história atravessada por resistências e contradições.
Nos anos 1990, enquanto o tráfico e a violência avançavam na Maré, Neilde—militante social desde a década de 1980—lutava para garantir ao filho uma infância digna. Essa base familiar afetuosa, apesar dos problemas do cotidiano da favela, foi fundamental para a formação do artista e ativista que Cadu se tornaria.
Mestre da Sétima Arte Para Uma Nova Geração de Sonhadores
A alma de artista de Cadu Barcellos nunca precisou de um rótulo para se manifestar. Essa essência criativa, pulsante e livre encontrou seu primeiro palco na dança. Aos 15 anos, ingressou no Corpo de Dança da Maré, projeto que lhe apresentou o mundo da expressão corporal. Ali, ele descobriu a potência do movimento como forma de narrar histórias e conectar-se com suas raízes afro-brasileiras.

“Imagina, a gente com 14, 16 anos, viajando sozinho, pegando ônibus, avião, sem os pais… Foi mágico demais. Era muita coragem e muita emoção. O Corpo de Dança da Maré abriu o mundo pra gente,” recorda Vitor Santiago, amigo de infância e parceiro de trajetória artística de Cadu. Outro amigo de Cadu, o fotógrafo Jéferson Vasconcelos, também cria da Maré, lembra e destaca a inventividade artística do cineasta mareense.
“Teve uma cena que foi muito marcante: o Cadu pegou uns tubos de PVC que faziam parte do cenário e criou uma sequência percussiva ali, na hora, improvisando com o corpo de dança. Era muito ele: criatividade pulsando, arte nascendo do improviso. Esse gesto dizia tudo sobre quem o Cadu era.” — Jéferson Vasconcelos
Aos 17 anos, em uma entrevista a um programa da Rede Globo, Cadu já explicava com naturalidade que a unha pintada “era de artista“, sinal precoce de uma identidade que ele abraçava com orgulho. Era essa mesma urgência expressiva que, gradualmente, buscaria uma nova forma de se perpetuar. Não demorou para que o artista que aprendeu a narrar com o corpo se tornasse, posteriormente, um mestre da sétima arte para uma nova geração de sonhadores.
Cadu Barcellos iniciou sua trajetória audiovisual no próprio território onde cresceu. Em 2006, foi aluno da Escola de Cinema Darcy Ribeiro e da Escola Popular de Comunicação Crítica (ESPOCC), sendo a última ligada ao Observatório de Favelas, um espaço que articula formação, arte e militância nas periferias, a partir da sua base na Maré. Foi na ESPOCC que Cadu deu seus primeiros passos no cinema, e onde, anos mais tarde, lecionou, multiplicando saberes na mesma escola que o havia formado, como relembra Jailson de Souza e Silva, fundador do Observatório de Favelas.
O ponto de partida para a carreira profissional de Cadu no cinema foi um curta-metragem que uniu formação e território: Feira da Teixeira, realizado em 2006. O filme foi seu projeto de conclusão na ESPOCC, um exercício audiovisual coletivo que mergulhava em um cenário que ele conhecia desde pequeno. Mais do que um trabalho de estudante, o curta já trazia a marca de Cadu: um olhar atento para a potência cultural e econômica da favela, registrando a vida, o comércio e as trocas de uma tradicional feira livre da Maré.

Já em 2007, Cadu Barcellos esteve à frente da direção do programa Crônicas da Cidade, uma série de seis episódios, de 30 minutos cada, exibida pelo Canal Futura. O projeto teve alcance nacional, mergulhando no cotidiano das periferias de seis metrópoles brasileiras: Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Florianópolis, Recife e Fortaleza. A genialidade do formato, no entanto, consistiu em seu processo colaborativo: a partir de laboratórios realizados em cada cidade, crônicas escritas por moradores foram transformadas em roteiros de ficção. Em uma inversão de papéis que definia o trabalho de Cadu, os próprios autores se tornaram parte da equipe técnica e, em muitos casos, também atuaram em seus próprios filmes. Era Cadu em sua essência: não apenas colocando a periferia na tela, mas entregando as ferramentas para que a própria periferia contasse suas histórias.
A virada em sua carreira veio em 2010 com a direção do curta Deixa Voar, um dos cinco episódios que compõem o aclamado longa-metragem 5x Favela, Agora por Nós Mesmos. O filme, produzido por Cacá Diegues, foi um marco no cinema brasileiro, alcançando reconhecimento internacional com sua seleção para a mostra Un Certain Regard, do Festival de Cannes, em 2010. Dentro deste projeto de sucesso, a genialidade particular de Cadu era evidente. Para Cacá Diegues, Deixa Voar era “um filme muito pessoal, cheio das invenções dele. Mais do que inspiração, era uma premonição do que precisava ser feito. Ele não esperava permissão. Ele fazia,” como falou ao documentário Cadu Barcellos: Cria Não Morre, Vira Lenda.
Em 2011, Cadu estreou Mais um na Multidão, documentário que, estetica e politicamente, evidenciava a marca de sua obra.
“Comecei com um curta-metragem que aborda as remoções da primeira praça construída pelos moradores do Morro da Providência. A partir dali, segui trabalhando temas principalmente relacionados à representação e à construção da imagem em torno das populações pretas, faveladas e periféricas do Rio.” — Cadu Barcellos
Aos 25 anos de idade, sua identidade artística, agora consolidada no cinema, já chamava a atenção da grande imprensa. Em uma matéria publicada em O Globo sobre o lançamento de 5x Pacificação, do qual Cadu era roteirista, ele foi descrito como um ativista social, cuja ambição definia o tamanho de seu sonho: “O que eu quero para mim é que as pessoas possam um dia chegar ao cinema e escolher se querem ver Shrek, Crepúsculo 8 ou o filme do Cadu,” afirmou o cineasta à entrevista daquela matéria. Com o sucesso de projetos como 5x Favela, Agora por Nós Mesmos, apadrinhado por Cacá Diegues, Cadu provava que o jovem da Maré não apenas contava histórias, mas estava pronto para disputar as maiores bilheterias.

Cadu também atuou na empresa Porta dos Fundos como assistente de direção do programa Greg News, apresentado por Gregório Duvivier. Sua atuação no humor crítico e em defesa da representatividade negra nas mídias tradicionais foi um marco importante em sua trajetória. No trabalho que desempenhou para o Greg News, Cadu se destacou como grande cérebro criativo. Foi roteirista e diretor de matérias do programa, acionando estrategicamente o humor crítico para desconstruir estereótipos e pautar o debate racial e social com uma autenticidade e acidez raras na televisão.
Sua importância era constantemente destacada pelos colegas. No episódio Boa Noite, Família do programa Greg News em homenagem ao Cadu, celebra-se, inclusive, o modo afetivo como a genialidade do mareense operava, a proximidade com que se dirigia aos colegas de trabalho (“Fala, Família” e “Boa Noite, Família”). Neste episódio, o apresentador Gregório Duvivier afirmou que Cadu “ensinava à equipe a cada pauta”, trazendo uma perspectiva sobre a realidade das favelas e do racismo que o resto do time, majoritariamente branco e de classe média, não acessava. Um exemplo notável de seu trabalho foi um quadro sobre a violência policial, no qual Cadu construiu uma narrativa que expunha o absurdo e a lógica perversa por trás da chamada guerra às drogas. Ele não apenas representava, mas comandava a narrativa, provando que o humor mais afiado podia ser a arma mais eficaz para a crítica social.
Vivência Como Matéria-Prima Para a Arte
Conhecido pelo seu carisma, generosidade e riso fácil, Cadu é uma referência para muitos jovens da Maré e de outras favelas do Rio. Um deles é o empreendedor social Raull Santiago, do Instituto Papo Reto: “Cara, [sobre] o Cadu tenho milhares de histórias, mas a principal é lembrar que ele foi meu professor antes de tudo. Ele era esse amigo maravilhoso, mas era, primeiro, uma referência para mim”.
Com uma câmera na mão, Cadu provava ser possível construir narrativas potentes e verdadeiras de dentro para fora, sem esperar pela permissão da mídia tradicional. O grande aprendizado que o cinema de Cadu deixou não foi técnico, mas existencial: a lição de que a própria vivência é matéria-prima para a arte e, sobretudo, uma ferramenta para a transformação social.
A fotógrafa, produtora audiovisual e cria da Maré, Mayara Donária, foi aluna de Cadu no curso de cinema da ESPOCC. Ela guarda na memória o impacto que Cadu teve em sua formação: “Aprendi a fazer cinema com ele. Cadu me deu ferramentas e confiança para contar nossas histórias”.
Outra prova viva do legado de Cadu é a história do artista, filósofo e ativista ambiental Emerson Matos. Os dois se cruzaram em um festival de cinema no Rio em 2014. De um lado, Emerson, natural de Lagoa do Dionísio, povoado do interior da Bahia, e um estudante receoso de que o audiovisual não fosse para ele, por não ser de família rica. Do outro, Cadu, o cria da Maré que já tinha seu nome no cartaz de um filme sobre as batalhas do passinho. Quando Emerson confessou seu medo, Cadu apontou para o próprio cartaz em um gesto e, segundo Emerson, disse: “Cara, só continua. Olha o que eu tô fazendo aqui”.
Aquele foi, nas palavras de Emerson, seu “primeiro sopro de coragem para enfrentar um mercado elitista”. O destino, com sua ironia cortante, quis que a notícia do assassinato de Cadu chegasse no mesmo dia em que Emerson ganhava seu primeiro edital de cinema, através da Lei Aldir Blanc. O sonho de reencontrar o mestre para dizer “obrigado, deu certo” foi interrompido. Mas a gratidão virou motor: o dinheiro do prêmio se tornou, também, uma homenagem em vídeo para que a coragem de Cadu continuasse inspirando outros sonhadores a continuar.
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‘Ele Nos Ensinou a Transformar Afeto em Filme’
Em novembro de 2020, Cadu Barcellos foi assassinado aos 34 anos, durante uma tentativa de assalto no Centro do Rio de Janeiro. Sua morte gerou indignação na Maré e em toda a cena cultural carioca.
Em 2025, a Iroko Produtora realizou o documentário Cadu Barcellos: Cria não morre, vira lenda e promoveu uma exibição piloto no CineBela Maré em fevereiro de 2025. O filme, produzido por amigos e parceiros de Cadu, homenageia sua trajetória e celebra sua vida e obra.
“Foi emocionante ver a história do meu filho ser contada, mostrar o trabalho dele. O quanto foi importante para ele sair do corpo de dança e se tornar um cineasta, que era uma coisa que ele queria muito. Gostaríamos de estar aqui contando a história dele com ele aqui, mas, infelizmente, não dá. Mas ficou na memória o bom trabalho que ele fez, bom lembrar do que ele deixou para os jovens da Maré e de muitas outras favelas.” — Neilde Barcelos


“Todos eram amigos do Cadu—desde o câmera ao produtor. Ele reunia pessoas, afetos, fazia um cinema humano,” disse o roteirista e diretor Wagner Novais. Para ele, a decisão de dirigir um filme sobre Cadu nasceu de uma urgência: a de disputar a memória do amigo e grande cineasta carioca. Ele explica que, após a morte trágica de Cadu, as buscas por seu nome na internet foram dominadas pela narrativa da violência, ofuscando o legado de sua vida e obra. O filme representou, portanto, uma ferramenta para reverter essa lógica e gerar conteúdo positivo sobre sua história—assim como esta reportagem, que se soma a esse movimento de exaltação e de resgate à memória e ao legado de Cadu Barcellos.
“Precisávamos fazer um filme solar, que celebrasse a potência dele em vida. O filme nasceu do desejo de produzir uma outra memória, de deixar um presente. Um presente para o Bernardo [filho de Cadu], para que ele saiba o tamanho do pai que teve. E um presente para os futuros cineastas, para que vejam no Cadu uma inspiração. No fim, é isso que a arte faz, certo? Ela produz memória coletiva. E a memória que a gente quer que fique sobre o Cadu é a de sua luz, de seu afeto e de um legado que inspira o futuro. Documentar o legado do Cadu é uma missão, porque o cinema dele era especial: não filmava um tema, filmava a vida. O legado dele é esse: a prova de que a nossa vivência é a matéria-prima mais potente que existe. Ele nos ensinou a transformar afeto em filme e essa é uma lição que não pode ser esquecida, precisa ser documentada para inspirar sempre.” — Wagner Novais
Para além de tudo o que Cadu construiu, transmitiu e deixou como legado através de sua arte e seu pensamento, a memória do cineasta permanece acesa através do Parque Ecológico Cadu Barcellos. Um espaço verde, público e, por muitos, conhecido como a “mata da Maré”. O Parque foi renomeado em homenagem ao cineasta como uma ação do Novembro Negro através do Projeto de Lei nº 866/2021, criado em 10 de novembro de 2021, um ano após o brutal assassinato de Cadu.
Com sua área biodiversa de aproximadamente 44.000 m², o Parque Ecológico Cadu Barcellos é considerado o “pulmão verde” da Maré no contexto da intensa urbanização desta comunidade. Além disso, sob gestão da Associação de Moradores do Parque Ecológico da Maré, é ponto de convergência de iniciativas fundamentais para o desenvolvimento e bem-estar dos moradores, como atividades socioeducativas, culturais e ambientais para a comunidade e doação de alimentos orgânicos.
Cadu Barcellos permanece vivo na memória coletiva, nas telas e nos corações de todos que acreditam na potência transformadora da arte nascida nas periferias. Assim como Cadu sonhava e lutava, sua história segue viva, inspirando novas gerações a criarem, resistirem e transformarem o mundo.
Conheça Aqui a Filmografia de Cadu Barcellos:
- 2006 – Feira da Teixeira (Curta-metragem)
- Primeiro trabalho de Cadu, realizado como projeto de conclusão de curso na Escola Popular de Comunicação Crítica (ESPOCC). O filme é um registro documental e afetivo sobre a tradicional feira livre da Maré, explorando sua importância cultural e econômica para a comunidade.
- 2007 – Crônicas da Cidade (Série de TV – Canal Futura)
- Cadu esteve à frente desta série de seis programas, que transformava crônicas de moradores de periferias de todo o Brasil em roteiros de ficção. O projeto era colaborativo, envolvendo os próprios autores como membros da equipe técnica e como atores.
- 2010 – 5x Favela, Agora por Nós Mesmos (Longa-metragem)
- Cadu dirigiu o episódio Deixa Voar, um dos cinco segmentos do aclamado longa produzido por Cacá Diegues. O filme foi um marco no cinema brasileiro e teve reconhecimento internacional com sua seleção para o Festival de Cannes.
- 2011 – Mais um na Multidão (Curta-metragem)
- Documentário que aborda as remoções de moradores do Morro da Providência para a construção do Projeto Morar Carioca. Foi a obra que marcou seu início formal no cinema, já com o olhar voltado para as questões de território e direitos humanos.
- 2012 – 5x Pacificação (Longa-metragem)
- Cadu foi um dos diretores deste documentário, que investiga os impactos e as contradições do projeto das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) em cinco favelas do Rio de Janeiro.
- 2013 – A Batalha do Passinho: O Filme (Longa-metragem)
- Documentário que Cadu dirigiu, registrando a explosão cultural do passinho, um estilo de dança que nasceu nas favelas e se tornou um fenômeno global. O filme celebra a criatividade e a resiliência da juventude periférica.
- 2016 – Guti (Documentário)
- Documentário sensível, codirigido por Cadu, que acompanha a jornada de Guti, um jovem trans em sua busca por identidade, aceitação e liberdade em meio aos desafios sociais.
- 2017 a 2020 – Greg News com Gregório Duvivier (Programa de TV na HBO)
- Como roteirista e diretor de matérias, Cadu foi uma voz fundamental no programa, trazendo sua perspectiva crítica e seu humor afiado para pautar temas como racismo, violência policial e desigualdade social no horário nobre da TV por assinatura.
Sobre a autora: Juliana Portella é jornalista (UFRRJ), mestre em Educação pelo Programa de Educação, Cultura e Comunicação em Periferias Urbanas (FEBF/UERJ), e sócia-fundadora da Iroko Produtora e Assessoria.
