O período crítico para possíveis deslizamentos em encostas está apenas começando. Ao contrário das enchentes, que se desenvolvem imediatamente quando há uma precipitação pluviométrica muito grande, os deslizamentos dependem em geral de um processo um pouco mais lento, onde o fator determinante é o nível de saturação (encharcamento) do solo. As casas que neste mês se romperam, no Complexo do Alemão, basicamente por fragilidade construtiva, não parece que houve grande movimento de solo, ainda. Quando chove bastante por várias horas ou dias, a água se infiltra no solo com uma velocidade maior do que sai do solo, por percolação (escoamento dentro do solo) ou evaporação. A resistência mecânica do solo diminui bastante com a saturação, e daí surge a possibilidade de rupturas. Então, o deslizamento pode acontecer dias depois do início das chuvas, mesmo numa hora em que a chuva seja fraca ou mesmo não esteja chovendo.
Todos os dias posteriores a um período de chuvas intensas e anteriores a um período prolongado de tempo bom, portanto, são dias perigosos e de risco. Segundo declarações que ouvi de técnicos da prefeitura e anúncios de licitações na imprensa, as sirenes que a prefeitura instalou em várias favelas são disparadas por pluviômetros (que medem o volume de chuva) e não por piezômetros (que medem o nível de água no solo) ou por uma combinação pluviômetros/piezômetros, o que seria o ideal. O que quer dizer que, mesmo se a sirene não toque, o risco ainda pode existir devido à saturação do solo. Então a regra geral é ter muita atenção por alguns dias durante e depois de um período chuvoso, até que alguns dias de sol “sequem” o solo.
Os cuidados são, basicamente, ficar observando áreas mais críticas das favelas, e evacuar provisoriamente as casas das áreas mais problemáticas. Nas muitas vistorias que fizemos em várias comunidades desde 2010, apontamos várias casas e áreas que estariam nessa situação, e muitas dessas observações estão nos relatórios que emitimos. De comunidades onde não fiz nenhum relatório mais detalhado, lembro de situações particularmente críticas no Fogueteiro e no Guararapes.
Mas, além dos cuidados, penso que devemos lembrar e denunciar que, também a partir de nossas visitas e vistorias, indicamos diversos pontos onde análises, projetos e obras seriam necessários, em várias favelas. Com exceção de dois pontos no Morro dos Prazeres e talvez alguma coisa no Laboriaux, segundo informações colhidas nas próprias comunidades, a Prefeitura não fez nada a partir dessas recomendações, desta maneira contribuindo decisivamente para a persistência do risco tanto em áreas de encostas como em áreas inundáveis, como é o caso do Parque Columbia, em particular a área da Rua Idelfonso Falcão, a qual segundo notícias da imprensa voltou a inundar no dia 11 de dezembro. E, se isso vale como amostragem, o que parece ser o caso, então tal conduta irresponsável deve ser generalizada para todas as favelas do Rio, e com certeza o mesmo se aplica às prefeituras da região metropolitana, serrana, etc.
As prefeituras (e o governo estadual também) repetem assim, desde 2010, a atitude de descaso que denunciamos em 2010. Naquela época, em várias palestras e oficinas (inclusive uma no Clube de Engenharia e outra na PUC), mostrei por exemplo, o dado revelado pelo gráfico abaixo:
Como se vê claramente, após um súbito aumento no valor total das obras contratadas/realizadas pela Geo Rio após os desastres das chuvas de 1996, este voltou a valores medíocres e assim ficou até os novos desastres de 2010, o que quer dizer que o trabalho de prevenção através de obras não foi feito de maneira séria.
Após as chuvas de 2010, novamente houve um súbito aumento no valor dos contratos de obras da Geo Rio, mas não tenho dados para dizer se esse crescimento manteve-se nos anos seguintes ou repetiu-se o padrão do período de 1996-2009. Mas, em 2010 mesmo, tive o cuidado de analisar os contratos de obras da Geo Rio, e cheguei à seguinte tabela:
Ou seja, a maior parte do valor foi utilizada para obras para proteção de ruas, estradas (como as grandes obras feitas na Estrada da Grota Funda e na Grajaú-Jacarepaguá, por exemplo) e vias internas em parques (várias obras no Parque Nacional da Tijuca, por exemplo, inclusive a que permitiu a reabertura da via em cremalheira para o Cristo Redentor), e não em comunidades, onde obras de prevenção têm um efeito muito maior no sentido de evitar perdas em vidas humanas. Não pesquisei os dados dos contratos posteriores a outubro de 2010, mas acho pouco provável que tal orientação tenha mudado nos investimentos da prefeitura nos anos seguintes até hoje.
São dados e realidades como essas que devemos divulgar amplamente, antes que os governos venham a se aproveitar de uma possível tragédia para utilizarem novamente o discurso que busca culpar os próprios moradores de favelas, seus movimentos e seus grupos de apoio, por algo que é fundamentalmente conseqüência do descaso e de escolhas deliberadas desses mesmos governos.
Maurício Campos é Engenheiro Civil e Mecânico, assessor político e técnico voluntário de movimentos sociais de favelas e bairros periféricos, e também militante da Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência e membro do coletivo de técnicos voluntários que apóia as comunidades contra as remoções forçadas.