Após um ano de manifestações, é hora de re-examinar que tipo de ‘projeto de cidade’ está emergindo no Rio de Janeiro.
A convicção geral (ainda que não universal) de que o Brasil tinha entrado em uma nova época de estabilidade econômica e progresso social foi gravamente prejudicada em junho deste ano quando enormes manifestações surgiram em todo o país. Embora menos notada pela mídia nacional e internacional, outro consenso dominante foi posto em questão pela agitação: a ideia de que o Rio de Janeiro estava a caminho para uma melhor governança urbana e o aumento da integração e justiça social. No rastro de junho 2013, estes pressupostos merecem, no mínimo, uma reavaliação profunda.
O ressurgimento do Rio e o ‘projeto de cidade’
Antes de enfocar nesta questão, vale a pena revisar rapidamente como que a cidade chegou até este momento atual. Em 2003, o Brasil começou seu período de crescimento mais sustentado desde os anos 70, com a recuperação do Rio de Janeiro particularmente notável, depois de três décadas de estagnação econômica. Em 2008, com a eleição do candidato a prefeito Eduardo Paes, as três esferas de governo entraram em alinhamento político. Estas condições econômicas e políticas, novamente favoráveis, abriram o caminho para o desenvolvimento do que tem sido descrito como um ‘projeto de cidade’ – um esforço sério de remodelar a cidade fisicamente, economicamente e socialmente. A última peça do quebra-cabeça chegou em outubro de 2009, quando o Rio venceu a disputa pelos Jogos Olímpicos de 2016.
O ‘projeto de cidade’ consta de uma série abrangente de políticas nas áreas de infraestrutura urbana, transporte, habitação e policiamento, que são concebidas e implementadas por um conjunto diversificado de estatais e não-estatais. Alguns, como o PAC, são políticas federais que atuam em todo o Brasil. Outros, como o Porto Maravilha e o BRT, são parcerias entre entidades públicas e privadas coordenadas pela prefeitura do Rio sob a égide da ‘Cidade Olímpica’. As UPPs, a estratégia emblemática de policiamento enfocada nas favelas do Rio, são executadas pelo gabinete do governador do estado. Estas políticas também administraram diferentes cronogramas, e alguns (tais como PAC e UPP) estavam em andamento antes do sucesso da candidatura para as Olimpíadas. No entanto, há sobreposições suficientes na coordenação para conceber os vários componentes como parte de um todo maior. No mínimo, esta é a perspectiva de muitas pessoas envolvidas–tanto para aqueles que estão implementando as reformas quanto para os moradores que as recebem.
A cidade pós-terceiro mundo
Os objetivos e pressupostos que nortearam o ‘projeto de cidade’ caem geralmente dentro do que eu chamo de um paradigma ‘cidade pós-Terceiro Mundo’. Esta narrativa põe as intervenções atuais dentro do contexto de dois períodos antecedentes da história do Rio de Janeiro. O primeiro destes é a rápida ocupação urbana dos anos 50 e 60, que deixou grandes partes da cidade com ausência de infraestrutura e serviços básicos, tais como habitação acessível, ruas pavimentadas e transporte público. O segundo é a época da chamada ‘fragmentação urbana’, quando as tensões da crise econômica aumentaram a violência e causaram a militarização de algumas fronteiras urbanas durante os anos 80 e 90. Embora estas tendências existiam em toda a cidade, em ambos os casos as áreas de favelas foram atingidas com impacto mais negativo que outras áreas.
Não obstante a singularidade do Rio de Janeiro, e do Brasil, os rápidos processos de urbanização e a fragmentação urbana estavam em conforme com tendências observadas por analistas em várias cidades no sul global–ou o ‘Terceiro Mundo’ como era designado na linguagem da época.
Dentro desta narrativa, a série atual de programas traça sua linhagem nas políticas desenvolvidas desde os anos 90 em diante nas condições deste contexto, no Brasil e em outros lugares. Estas incluem o programa Favela Bairro, do Rio, que marcou uma aparentemente permanente mudança no consenso da uma política de remoção de favelas durante os anos 60 e 70 para uma preferência à urbanização dos locais. Enquanto isso, a gama de intervenções de transporte (tais como BRT e teleféricos) recorre às inovações desenvolvidas em outras cidades como Curitiba, no sul do Brasil, e Medellín e Bogotá na Colômbia, que procuram soluções acessíveis aos desafios de mobilidade urbana. A linguagem que cerca tais políticas eleva constantemente o princípio da integração. Por exemplo, o site da Cidade Olímpica afirma que: “A transformação do Rio em uma Cidade Olímpica envolve a integração social, bem como física”. Políticas que enfocam as favelas, como Morar Carioca and UPP Social, adotam uma linguagem parecida. Até a pacificação mesmo é apresentada com o objetivo de reduzir as barreiras à integração e mobilidade entre áreas formais e informais.
A cidade de exceção
Embora estas ideias foram dominantes no debate político, na cobertura da mídia e em muitas pesquisas acadêmicas, uma contra-narrativa também emergiu em alguns departamentos universitários e nos crescentes movimentos sociais que surgiram para resistir às várias reformas urbanas. Este conjunto de ideias foi desenvolvido por vários acadêmicos, incluindo Carlos Vainer da IPPUR-UFRJ. Para Vainer e seus colegas, as origens do ‘projeto de cidade’ estão atribuídas a uma transição progressiva, desde os anos 90, de um modelo ‘administrativo’ para um modelo ‘empresarial’ de governança urbana. De acordo com o último, o objetivo principal das autoridades urbanas do Rio é atrair capital internacional móvel em competição com outras ‘cidades globais,’ com as necessidades dos atuais moradores em segundo plano.
Os mega-eventos desempenham um papel crucial em tal estratégia. A curto prazo, atraem empresas e turistas, na duração do evento mesmo (embora os eventos são amplamente visto como incapazes de compensar os enormes investimentos públicos feitos pelos países de acolhimento), enquanto, a longo prazo, podem servir para aumentar o perfil internacional de uma cidade. Mais importante, o estatuto jurídico discutível associado com os mega-eventos permite a suspensão de normas legais e contestação política, criando um ‘estado de exceção’. Isso permite os governos e seus parceiros a atropelar os direitos dos cidadãos em busca de suas metas imediatas e de longo prazo usando o pretexto que decisões ‘de cima para baixo’, à portas fechadas, e rápidas são do interesse dos eventos e da cidade.
De acordo com a narrativa da ‘cidade de exceção’, o resultado do ‘projeto de cidade’ não é integração, mas segregação. A criação de estádios de classe mundial (ou ‘padrão FIFA’) leva a elitização por cobrar uma tarifa inacessível aos torcedores de classe trabalhadora. Enquanto isso, as exigências de acolher os eventos podem ser usadas como disfarce para erradicar os usos de terra que deixem de captar o ‘valor’ completo–tal como áreas potencialmente lucrativas ocupadas por favelas ou prédios públicos. Em um sentido mais geral, uma cidade ‘empresarial’ tende a empurrar os moradores de renda baixa para as áreas de menos valor, localizando habitação acessível nas periferias urbanas distantes e por priorizar transporte e infraestrutura para as áreas mais luxuosas e mais estrategicas. Quanto às intervenções enfocadas em melhorar a integração de favelas, estas são interpretadas como um tipo de ‘novo higienismo’, tentando civilizar as favelas ou, pelo menos, minimizar sua ameaça (percebida ou real) para o resto da cidade.
Conclusão
No rastro dos protestos de junho, muitas das questões, que foram em grande parte abandonadas pela política convencional, pela mídia e nos debates acadêmicos foram reabertas. Isso graças aos fóruns on-line, incluindo este, e às vozes de oposição dentro da academia onde uma gama rica de ideias alternativas surgiram a partir de um período de hegemonia ideológica poderosa. Mais importante ainda, movimentos populares emergentes de comunidades ameaçadas, como Aldeia Maracanã, Vila Autódromo e Rocinha com sua campanha “Cadê Amarildo?”, tem provado que a resistência é possível e pode ter grandes resultados.
O novo espaço que as manifestações criaram é promissor e deve ser aproveitado. Isso pode requerer o engajamento com ideias progressistas no cerne da narrativa da cidade pós-Terceiro Mundo, realçando o quanto as intervenções atuais desviaram dos ideais e por forçar continuamente o ‘projeto de cidade’ a cumprir as promessas de benefícios públicos e não privados. Embora a democratização verdadeira do ‘projeto de cidade’ parece estar em um futuro distante, já está claro que os piores excessos podem ser desafiados e vencidos. Faltando meio ano para a Copa do Mundo e três anos para as Olimpíadas, ainda há muito para ser decidido e contestado. O resultado determinará em que tipo de cidade os cariocas viverão nas décadas vindouras.
Matthew Richmond atualmente está fazendo sua pesquisa de doutorado sobre redes sociais e os impactos dos mega-eventos em duas favelas. Leia mais em seu blog.