Todo mês, representantes de 116 famílias se encontram em um armazém no centro do Rio. As famílias vivem atualmente em diferentes partes da cidade: nas favelas do Parque da Cidade e Providência, na ocupação urbana Quilombo das Guerreiras, e em outras partes do centro do Rio e da Região Portuária. Por causa do envolvimento destas pessoas com os movimentos sociais–Central de Movimentos Populares (CMP) e a União Nacional por Moradia Popular (UMP)–e com financiamento do programa federal Minha Casa Minha Vida-Entidades, em breve todos viverão juntos em um prédio de apartamentos no terreno deste armazém e cinco lotes adjacentes.
O projeto é chamado de Quilombo da Gamboa, e irá fornecer habitação popular subsidiada e acessível para famílias que ganham até três salários mínimos, ou menos que R$1.600 por mês. Por ser na Zona Portuária do Rio, no Centro da cidade, os moradores desfrutarão de acesso ao trabalho e a outros recursos urbanos, o que trouxe muitos deles para suas casas atuais na Zona Sul ou zonas centrais da cidade. O projeto tem dois pátios internos para cultivar a vida em comunidade, e um que terá acesso para a rua, para que os moradores estejam conectados com a vizinhança ao redor. O escritório de arquitetura debateu estas propostas com todo o grupo, já acostumado com decisões em conjunto sobre a manutenção dos lotes atuais, da seleção musical, e dos eventos dos feriados organizados pelo grupo.
Josilene Lima, uma empregada doméstica de 38 anos de idade, participou pela primeira vez de uma reunião do Quilombo da Gamboa porque um amigo pensou que ela poderia achar interessante. Curiosa sobre o estilo de organização do grupo, ela perguntou sobre o assunto na reunião, e foi atraída pelo entusiasmo e natureza participativa do grupo. Josilene é agora uma das coordenadoras da Gamboa e representante regional da UMP, e fala com gratidão da esperança e amizade que encontrou no processo, mesmo através da luta: “Ninguém nasce sabendo as coisas. Eu estou aqui, onde eu nunca pensei que estaria, porque eu comecei ligada a um grupo de pessoas que trabalham para algo melhor”.
Do outro lado da cidade, na Colônia Juliano Moreira, Zone Oeste da cidade, uma outra cooperativa de habitação chamada Grupo Esperança está em andamento com uma configuração um pouco diferente: com o apoio de um arquiteto, as próprias famílias estão construindo setenta casas de tijolo. Sob uma bandeira amarela da UMP tremulando, eles se reúnem todos os domingos para uma jornada de trabalho em grupo, viajando de áreas como Campo Grande, duas horas a oeste, e de Vigário Geral, duas horas ao norte.
O Grupo Esperança também é planejado com gestão participativa em todas as etapas. Durante um almoço preparado e servido por dois membros da cooperativa, o grupo vota no seu orçamento para as próximas semanas e nas decisões necessárias sobre a contratação e reserva para turnos de construção.
Em ambos, Quilombo da Gamboa e Grupo Esperança, os moradores vão se tornar proprietários de suas casas através de um contrato coletivo. As cooperativas são subsidiadas por um programa do governo federal chamado Minha Casa Minha Vida-Entidades, que suporta iniciativas de habitação popular auto-gestionadas a preços acessíveis que estejam associadas com organizações não-governamentais. Estas e outras cooperativas do Rio são possíveis devido a uma grande quantidade de apoio técnico, jurídico e organizacional da Fundação Centro de Defesa dos Direitos Humanos Bento Rubião e dos movimentos sociais para o direito à moradia.
As cooperativas estão sendo procuradas. Jurema Constâncio está ajudando a coordenar o Grupo Esperança depois de uma vida, bem sucedida, de dez anos na cooperativa Shangri-La no bairro vizinho de Taquara. O arquiteto do Grupo Esperança, Alexandre Correia, visita as famílias da cooperativa Herbert de Souza, que ele também projetou, no caminho para a visita da sua obra atual. E Joseline Lima tem um número suficiente de pessoas na lista de espera do Quilombo da Gamboa para preencher vários projetos futuros.
A Face da Habitação Acessível no Rio
Em 2011 o déficit habitacional na cidade do Rio foi calculado pelo Instituto Pereira Passos em 148 mil unidades. Isto inclui a necessidade de casas para pessoas que vivem em moradias precárias, aqueles que vivem com várias famílias em uma casa, famílias que ganham até três salários mínimos e gastam mais de 30% de sua renda com aluguel, e casas com mais de três pessoas por quarto. Sob a lei federal, pessoas que recebem até dez salários mínimos e não são proprietários, estão qualificados para habitação de “interesse social” subsidiada; aqueles que mais necessitam ganham até três salários mínimos e são classificados como fonte de renda “faixa 1”.
As pessoas para quem a habitação popular é projetada são encontradas por toda a cidade, e muitos que se enquadram nesta categoria vivem em favelas do Rio de Janeiro, que abrigam uma série de assalariados de renda baixa e média, e de vários tipos de habitação, de precária a consolidada. Entretanto, quando avisadas que devem se deslocar para unidades de habitação popular, milhares de famílias de habitações mais precárias optam por não ir–e muitos lutam vigorosamente para permanecer onde estão. Isso é por causa da qualidade e localização inacessível das unidades habitacionais populares padrão, financiadas através do braço principal do programa Minha Casa Minha Vida. A maioria dessas unidades são construídas em periferias distantes da cidade, onde até mesmo uma autoridade do departamento de habitação advertiu contra a criação de “guetos de pobreza”, e onde grupos de milícia frequentemente extorquem dinheiro e proíbem um posicionamento político dos moradores.
O diretor da Fundação Bento Rubião, Ricardo de Gouvêa Corrêa, explica que os problemas de qualidade nas unidades convencionais do Minha Casa Minha Vida vêm do fato de que os empreendedores das unidades são contratados pelo governo, deslocam fundos, utilizam materiais de baixa qualidade, não pesquisam a opinião dos futuros moradores, e seu incentivo é construir onde a terra é mais barata. Minha Casa Minha Vida foi proposta como algo que estimularia a economia brasileira pelo setor da construção civil”, adiciona Gouvêa. “Mas o que destruiu foi habitação de alta qualidade.”
A relatora das Nações Unidas para o direito à Moradia Adequada, Raquel Rolnik, reportou à Assembléia Geral da ONU em 2012, que a tendência global de privatização da habitação popular subsidiada pelo governo nas mãos de empreendedores motivados mais por incentivos de mercado do que por aspectos sociais da habitação “tem contribuído para uma ampla bolha nos preços dos imóveis e uma diminuição do poder de compra, e tem feito muito pouco para promover o acesso à moradia adequada a preços acessíveis para os mais pobres”.
A grande maioria dos moradores das favelas preferiria ver melhorias de infra-estrutura nos seus bairros do que se deslocar para os projetos habitacionais Minha Casa Minha Vida. Urbanistas internacionais e autoridades locais concordam–e foi legislado assim–que a urbanização, ao invés do reassentamento, é a melhor forma para lidar com as necessidades de infra-estrutura das favelas. Mas as urbanizações andam devagar, e orientações jurídicas especiais, concebidas para ajudar a facilitar a transição para a formalidade dos moradores da favela, chamadas Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), são apenas parcialmente realizadas no Rio, de tal forma que os moradores vêem os preços de moradia e serviços aumentarem drasticamente antes de se beneficiarem com a melhoria dos serviços públicos.
A opção de moradia acessível que o governo continua a financiar são os apartamentos do Minha Casa Minha Vida. Do orçamento do Minha Casa Minha Vida, no máximo 5 a 10% a cada ano são investidos em entidades cooperativas do programa Entidades.
O compromisso do governo brasileiro com habitação popular é devido em grande parte ao trabalho do Fórum Nacional de Reforma Urbana, uma coligação de movimentos sociais com urbanistas, pesquisadores e defensores dos direitos humanos que se reuniram durante a elaboração da constituição de 1988. Eles defenderam com sucesso um artigo constitucional sobre a função social da propriedade, que foi seguido por disposições específicas relativas a habitação nas cidades. O Fórum argumentou que a informalidade urbana existente foi desenvolvida a partir de uma necessidade de reforma fundiária, cuja origem se reporta à abolição da escravidão, quando negros brasileiros foram proibidos de possuir propriedades. A contrapartida rural trabalhando pela reforma agrária no Brasil é o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST).
Baseado no princípio do uso social da terra, o Fórum e seus aliados propuseram um fundo público para brasileiros de baixa renda comprar e reformar casas, comprar materiais de construção, urbanizar assentamentos informais, comprar equipamentos de grupo, e conduzir a regularização fundiária. Eles elaboraram o primeiro projeto de lei constitucional de origem popular, e depois de treze anos lutando, em 2005, o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS) foi criado.
Perto de R$1 bilhão por ano foi reservado para o FNHIS, e através dos programas “Crédito Solidário” e “Apoio à Produção Social de Moradia”, houve o início do financiamento de projetos autogeridos de habitação a preços acessíveis em propriedades federais e municipais vagas, tais como as cooperativas do Rio, Shangri-La, Mariana Criolo, e os primeiros estágios de Gamboa e Esperança. Mas o dinheiro e aprovação desses projetos ficaram defasados e, em seguida, diminuiu drasticamente depois que o presidente Lula anunciou o programa Minha Casa Minha Vida, juntamente com o seu desdobramento, Entidades, em 2009. “Hoje o fundo”, diz Ricardo Correia, “não tem fundo”. Entre 2008 e 2011, financiamento federal contratou 30 mil unidades de habitação cooperativa, em comparação com 449 mil unidades de apartamentos do Minha Casa Minha Vida.
Agora, cerca de R$1 bilhão por ano está definido para projetos do MCMC-Entidades. Marcelo Edmundo da CMP, um dos coordenadores do Quilombo da Gamboa, teme que o financiamento de cooperativa que vem de um programa presidencial é menos estável do que um fundo permanente proveniente de uma lei. Ricardo Gouvêa diz que a fonte do financiamento é menos preocupante do que ter certeza de que os recursos serão mesmo lançados, pois por exemplo, embora o dinheiro do FHNIS tenha sido projetado em R$4 bilhões entre 2008 e 2011, apenas 7% desse dinheiro foi realmente utilizado para a construção de projetos.
Gouvêa diz que os entraves burocráticos para a obtenção de financiamentos liberados para projetos de habitação cooperativa ainda são de enlouquecer. Em 2013 os membros dos movimentos sociais de habitação organizaram uma manifestação em frente a Caixa Econômica Federal, que é responsável pelo financiamento do Minha Casa Minha Vida, depois de estar parado por anos o processo de reforma de um edifício do programa Entidades no Centro. Em 2011, Gouvêa fez parte de um grupo que viajou para Brasília e fisicamente bloqueou o carro de Lula para pedir o financiamento parado para outro projeto Entidades. Recentemente, ele se deparou com oito meses de atraso simplesmente tentando obter documentos corretos para uma licença ambiental no Entidades, eventualmente viajando para a capital. “A proporção de financiamento que está sendo liberada para esses projetos simplesmente não é adequada”, diz Gouvêa.
Preservar Acessibilidade
Favelas do Rio de Janeiro, até mesmo aquelas que recebem urbanizações–assim como as habitações populares–ainda não viram medidas amplas e com embasamento jurídico para preservar sua natureza como habitação à preços acessíveis. Em um apartamento padrão do Minha Casa Minha Vida, os moradores podem vender a unidade após cinco a dez anos no valor do mercado (apesar que escândalos de vendas antes do prazo legal são abundantes em todo o país). No Quilombo da Gamboa e no Grupo Esperança, os moradores podem vender depois de dez anos, apesar de serem encorajados a fazê-lo apenas para outras pessoas que precisem de habitação subsidiada.
Quando o diretor da escola de arquitetura de Columbia, Mark Wigley, chamou habitação popular “a questão da nossa época” em um debate com o prefeito do Rio, Eduardo Paes, em novembro passado, ele estava se referindo não só a facilitar o acesso à moradia em preços acessíveis, mas também à sustentá-la.
Talvez a melhor resposta para saber se a habitação popular convencional no Rio esta enfrentando com êxito as necessidades da cidade é o fato de que, apesar da construção de conjuntos residenciais entre 2000 e 2010, a população de favela na cidade cresceu mais de 27%, enquanto a população do resto da cidade cresceu 7,4% . Além disso, em muitas unidades de habitação popular, como a Cidade de Deus, os moradores que tiveram dificuldade em acessar recursos urbanos como empregos por exemplo, construíram unidades de alvenaria adicionais para poder trabalhar nas ruas e áreas adjacentes na extensão da comunidade–originalmente de habitação popular–o que fez a comunidade se tornar considerada uma “favela”. Os moradores frequentemente abordam as limitações dos projeto de habitação popular no Rio adaptando o ambiente construído para as suas necessidades em “estilo favela“.
Para sustentar a acessibilidade à habitação pública, Marcelo Edmundo preferiria se o título de propriedade coletiva no Brasil fosse legal. Este é o caso no Uruguai, onde mais de 20.000 famílias estão vivendo em casas e apartamentos construídos por meio de ajuda mútua: unidades individuais só podem ser herdadas ou vendidas de volta para o grupo. As cooperativas do Uruguai foram estudadas e seus criadores envolvidos em uma troca de diretrizes com arquitetos do Rio, movimentos sociais e funcionários públicos, durante a criação do programa de assistência habitacional da Fundação Bento Rubião.
Muitos apontam que a forte tradição dos direitos de propriedade individual no Brasil torna propriedade coletiva difícil de se imaginar politicamente. Mas não é o único método para preservar a acessibilidade da habitação; Raquel Rolnik incluiu vários métodos em suas recomendações de 2013 à Assembléia Geral da ONU. Um outro é a responsabilidade governamental no mercado de aluguel em favelas. Mais um ainda, é legislar e controlar aumentos de aluguel. Além disso, Rolnik descreve em detalhes os vários tipos de sistemas cooperativos de habitação que incluem grupos de tomada de decisão, mas que variam baseado em se as unidades são para o aluguel ou compra, e se o apoio financeiro inclui empréstimos de materiais, empréstimos para as necessidades da família, e poupança de grupo.
Organizando
Se projetos de habitação popular com gestão coletiva, como existe atualmente no Gamboa e Esperança, devem ser fortalecidos através de um reconhecimento do direito à propriedade coletiva no Brasil é uma discussão permanente entre movimentos de direito à habitação social e aqueles que trabalham com política urbana.
De 21 a 23 de novembro de 2013, Brasília sediou a Conferência Nacional das Cidades, um fórum trienal para os cidadãos debaterem e proporem legislação urbana. Comitês em cidades de todo o país que vêm se reunindo há meses trouxeram uma agenda que recomenda a consideração de uma emenda constitucional que permitiria o uso de propriedade de forma coletiva, um Fundo Nacional permanente e robusto de Desenvolvimento Urbano que acrescentaria os fundos do FHNIS existentes para habitação e outras necessidades sociais, e um plano nacional para regularizar a posse da terra de tal forma que garante a permanência de famílias e evita expulsão pelo mercado imobiliário.
“Estou quase certo que poucas das propostas serão aprovadas”, disse o professor de Planejamento Urbano da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Orlando Santos Junior, um delegado do Rio, antes da conferência. O Fundo Nacional de Desenvolvimento Urbano, por exemplo, foi proposto duas conferências atrás. Nesta conferência, o texto base para sua fundação foi votado pelo grupo.
Outra recomendação feita recentemente pela Raquel Rolnik para as Nações Unidas foi a remoção da burocracia no acesso aos métodos de acesso à habitação popular. Por exemplo, na regularização dos mercados informais de aluguel, “os Estados deveriam…incluir em seus programas habitacionais incentivos e subsídios para ajudar os proprietários de pequena escala a expandir e melhorar a habitabilidade em acomodações de aluguel” e “incentivar e apoiar o uso de contratos de aluguel padronizados, a fim de reduzir o número e a gravidade dos conflitos entre proprietários e inquilinos. Neste caso, os formulários-tipo dos contratos deveriam ser livremente disponíveis e amplamente distribuídos e não deveriam exigir aprovação de cartório”. Esse nível de facilidade e clareza é o oposto, de fato, das atuais dificuldades em regularizar a posse nas favelas, bem como o acesso ao financiamento para a habitação cooperativa.
Em uma reunião recente do Quilombo da Gamboa, o futuro morador Aldair Alves fez um discurso empolgante para inspirar seus colegas a acompanhá-lo a um escritório do governo no centro para verificar a posição do financiamento para construção: “O governo não via te regalar coisas!” As pessoas aplaudiram. “Você tem que bater na porta do governo e dizer, eu tenho um direito a isso”.
Em todo o país, projetos de Entidades continuam a crescer, de acordo com um estudo do Observatório das Metrópolis feito em São Paulo e Porto Alegre, criando “habitações de qualidade, autoestima, mobilização social e o sonho da construção de outra cidade”. Eles são um testemunho do poder de vizinhos comprometidos e futuros vizinhos, que se auto-organizam para atender às suas necessidades, um poder que, com o tratamento claro e ágil do governo, poderia ser multiplicado.
Veja fotos do Grupo Esperança:
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