Um Olhar Sobre os Termos Territoriais Coletivos Estadunidenses e Como Eles Combatem a Crise da Moradia Acessível

Uma ativista pelo direito à moradia segura um cartaz durante uma coletiva de imprensa e lançamento da Campanha Orçamento para Moradias Acessíveis com o Coalizão Progressista da Câmara dos Vereadores da cidade de Nova York e organizações que lutam por moradia nos degraus da prefeitura em 11 de março de 2024. Foto: Luiz C. Ribeiro/Daily News, L.P.
Uma ativista pelo direito à moradia segura um cartaz durante uma coletiva de imprensa e lançamento da Campanha Orçamento para Moradias Acessíveis com o Coalizão Progressista da Câmara dos Vereadores da cidade de Nova York e organizações que lutam por moradia nos degraus da prefeitura em 11 de março de 2024. Foto: Luiz C. Ribeiro/Daily News, L.P.

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Leia a matéria original por Rebecca Schneid, em inglês, na Time aqui. O RioOnWatch traduz matérias do inglês para que brasileiros possam ter acesso e acompanhar temas ou análises cobertos fora do país, que nem sempre são cobertos no Brasil.

Quando Christin Carter descobriu que seria mãe em 2002, ela decidiu que era hora de comprar uma casa. Embora muitas famílias tomem a mesma decisão, Christin estava especialmente determinada: ela queria garantir que seus filhos não passariam pela mesma falta de estabilidade habitacional que ela passou na sua infância, no sul do estado da Califórnia.

Honestamente, a pobreza de onde eu vim foi catastrófica e eu sabia que tinha que quebrar esse ciclo. Eu não sabia como, mas eu sabia que tinha que quebrá-lo.” — Christin Carter

Ela foi excluída do mercado imobiliário formal graças aos preços altos e, como mãe solteira, ela sabia que precisaria de ajuda. Por fim, o assistente responsável pelo seu caso no programa habitacional Seção 8—um programa do governo federal estadunidense que oferece assistência no acesso à locação de moradias para famílias de baixa renda–encaminhou-a para uma palestra informativa. O evento foi organizado pela Proud Ground, uma organização sem fins lucrativos da região noroeste dos Estados Unidos, que é um Termo Territorial Coletivo (TTC).

O modelo típico [norteamericano] de TTC se baseia na compra e desenvolvimento de terrenos por uma organização sem fins lucrativos [conheça o TTC brasileiro aqui]. Compradores ou locatários individuais compram uma casa ou unidade nesse terreno por um preço acessível em um contrato de arrendamento de longo prazo (geralmente de 99 anos). TTCs como Proud Ground costumam oferecer serviços adicionais, que vão além da típica relação locador-locatário.

A Proud Ground deu a Christin a orientação e o apoio necessários durante o processo, já que ela não podia contar com a ajuda de membros da família que já tivessem passado pela experiência de comprar uma casa. O modelo de liderança típico de um TTC nos EUA é um conselho tripartite: um terço é composto por profissionais, incluindo advogados e empresários, que podem oferecer conhecimento financeiro e jurídico, outro terço é formado por membros da comunidade, e o último terço é composto por arrendatários, ou seja, pessoas que moram ou utilizam terras do TTC. Dessa forma, os arrendatários têm voz ativa nas decisões sobre o que acontece com o terreno em que moram.

“Amo o fato de que a comunidade e os proprietários têm um papel na organização, porque quem é mais especialista em moradia do que a pessoa que vai viver lá, né?”, diz Kristin King-Ries, advogada que representa TTCs e, atualmente, está organizando uma colaboração jurídica de TTCs em nome do Centro Internacional para TTCs.

Christin, 42, comprou sua casa em Portland com a Proud Ground em 2011 e, como proprietária de primeira geração, ela diz que o impacto que isso teve na vida de sua família vai muito além das questões financeiras. “Fazer parte da comunidade tem sido extremamente benéfico”, disse Christin à Time. “Pude fazer marquinhas na parede à medida em que meus filhos foram crescendo… o presente da estabilidade, o orgulho que dá é algo que eu jamais poderia retribuir”.

A Proud Ground é apenas um exemplo dos modelos de Termos Territoriais Coletivos nos Estados Unidos. De acordo com um relatório do Instituto Lincoln de Políticas da Terra, em janeiro de 2024, havia 308 TTCs em 48 estados, na capital Washington, D.C., e no território estadunidense de Porto Rico, enquanto foram 289 em 2021, 225 em 2018 e 162 em 2006. O relatório foi co-escrito por Kristin King-Ries. Embora os TTCs ainda sejam relativamente raros, Christin afirma que houve uma “explosão” de interesse por esse modelo desde que ela começou a trabalhar com ele em 2017, com cidades maiores começando a se envolver na criação de TTCs e fornecendo financiamento e subsídios para as organizações sem fins lucrativos de suas regiões.

“Ouço muito interesse de pessoas de todo o país querendo usar as ferramentas jurídicas para uma variedade de coisas, não apenas para moradia, mas também para comunidades, negócios, terras agrícolas e espaços verdes.” — Christin Carter

Ela vê o modelo de moradia oferecido pelo TTC como uma forma de enfrentar a crescente crise de moradia acessível, tema que recebeu grande atenção na eleição de 2024.

Embora os TTCs estejam crescendo em popularidade, o modelo não é novo. Suas raízes remontam ao Movimento dos Direitos Civis no Sul dos Estados Unidos, como uma resposta “à longa história de políticas habitacionais racistas e às injustiças sociais e econômicas dos Estados Unidos”, segundo Christie Peale, CEO e presidenta do conselho do Termo Territorial Coletivo Interboro em Nova York.

A organização de base comunitária New Communities, em Albany, no estado da Geórgia, fundada em 1969 como uma fazenda coletiva para evitar o deslocamento de comunidades negras, através de terras comunitárias, é frequentemente considerada o modelo original de Termo Territorial Coletivo. Embora os TTCs tenham evoluído ao longo do tempo, Christie Peale afirma que o “controle comunitário e o empoderamento” continuam sendo centrais para o sistema.

O modelo proporciona estabilidade. É meu. Eu sou a dona da casa. Posso deixá-la para os meus filhos… Antes de fecharmos o negócio da casa, nós passávamos de carro pelo bairro e eu me emocionava só de pensar que meus filhos iriam crescer nesse bairro.” — Christin Carter

Como os TTCs Poderiam Enfrentar a Crise de Moradias a Preços Acessíveis?

Muitos programas federais estadunidenses com o intuito de incentivar a construção de moradias para famílias de baixa renda têm prazo de validade. Muitos empreendimentos de moradia acessível financiados pelo Crédito Fiscal para Habitação de Baixa Renda (LIHTC, em inglês) têm um limite de 30 anos de acessibilidade—um prazo que está próximo de acabar para muitos beneficiários desse programa social. De fato, a Coalizão Nacional de Habitação de Baixa Renda dos EUA estima que quase 500.000 unidades financiadas pelo LIHTC—um número que representa quase um quarto de todas as unidades LIHTC—atingirão o limite de 30 anos até o final da década. Uma vez que esse prazo expire, Kristin afirma:

“As pessoas que viveram ali e construíram uma vida, uma comunidade… de repente, não são mais bem-vindas. Elas não conseguem mais arcar com o custo de viver ali.” — Kristin King-Ries

No caso dos TTCs, a acessibilidade de longo prazo está incorporada no DNA do modelo, com suas estruturas de arrendamento de longo prazo e o modelo de liderança integrados à estrutura da organização sem fins lucrativos.

Os TTCs também preservam a acessibilidade por meio de seu modelo de propriedade comunitária: em vez de determinar a acessibilidade com base em uma fração do valor de mercado, os TTCs vendem as unidades para os proprietários a um valor equivalente a um terço da renda mediana local, garantindo que elas permaneçam acessíveis para moradores de baixa renda. E, quando um proprietário de TTC vende sua unidade, ele deve seguir o mesmo princípio de precificação para garantir que a unidade continue acessível.

“Isso não significa que sua casa não possa ser uma fonte de geração de riqueza, mas significa que ela não é uma ação… Não é um investimento para alguém de outra parte do país ou do mundo.” — Kristin King-Ries

De acordo com o Instituto Lincoln de Políticas da Terra, ter casa própria é o “fator explicativo e mais robusto” da riqueza em lares de baixa renda e de grupos minoritários. Muitos estudos também mostram os benefícios mentais e financeiros da casa própria, incluindo o aumento da riqueza familiar, maior estabilidade financeira, maior participação no mercado de trabalho, maior envolvimento em atividades políticas e sociais, além de benefícios para a saúde.

Christie Peale afirma que o modelo do TTC permite que haja taxas muito mais baixas de inadimplência e execução hipotecária, já que os moradores participam da tomada de decisões e trabalham de perto com os TTCs—que são os proprietários da terra—para garantir que possam ser orientados de perto ao longo do processo de moradia.

“Durante a crise hipotecária de 2008 [nos Estados Unidos], os proprietários de casas em TTCs tiveram taxas muito mais baixas de inadimplência e de execução hipotecária do que os demais, porque os TTCs não apenas fornecem casas de boa qualidade, que se encaixam de maneira responsável [em termos de financeiros, às capacidades do morador], mas também porque os TTCs têm um papel de guardião [da moradia acessível], constroem e mantêm relações com os moradores.” — Christie Peale

A relação próxima que a organização sem fins lucrativos mantém com os moradores permite uma comunicação mais pessoal: se um residente atrasa o pagamento do aluguel, o TTC consegue identificar o problema cedo, intervir e oferecer ao morador acesso à orientação habitacional e a outros serviços que ajudem o proprietário a se estabilizar, o que evita a execução hipotecária.

Comprar uma casa pelo TTC pode ser um degrau para algo maior; segundo um relatório publicado pelo Instituto Lincoln de Políticas de Terra em 2021, 60% das pessoas que eram proprietárias de casas em TTCs conseguiram, posteriormente, comprar uma casa à preço de mercado.

Termos Territoriais Coletivos Oferecem às Pessoas a Chance de Criar Raízes

Proud Ground é um exemplo da “estrutura típica” de um TTC—com a propriedade individual da casa—, segundo Christie, no entanto, em cidades como Nova York, o modelo também pode ser utilizado para instalações comunitárias e de estilo cooperativo.

Brian H. mora no edifício localizado na Avenida Arlington, 248, no Brooklyn, há seis anos. O prédio de 21 unidades foi oficialmente adquirido em março de 2024 pelo Termo Territorial Coletivo de East New York (ENYCLT). Esse foi o primeiro imóvel comprado pelo ENYCLT. Brian H. e seus vizinhos passaram anos trabalhando com a organização sem fins lucrativos para transferir a propriedade do antigo dono para a comunidade.

“Houve um movimento dos moradores dizendo: ‘Chega! Não temos serviços de qualidade. Nosso proprietário não está presente’. E, então, um dos líderes dos moradores já era membro do Community Land Trust, o que gerou uma boa sinergia.” — Boris Santos, presidente do ENYCLT

Desde que compraram o imóvel, o ENYCLT tem trabalhado com arquitetos e engenheiros para reformar o prédio. Já limparam o porão e o hall de entrada, instalaram câmeras de segurança e estão “transformando a propriedade, que era um modelo de aluguel tradicional, em um modelo cooperativo”, explica Boris.

Agora, todas as decisões tomadas na Avenida Arlington, 248, envolvem todos os moradores. Criar uma mentalidade de comunidade entre todos os que vivem no prédio garante que conflitos pessoais não interfiram na construção de um ambiente onde todos se sintam confortáveis. Boris afirma que o ENYCLT trabalha não só para mudar a situação física das moradias, mas também para envolver os moradores no processo e empoderá-los para a tomada de decisões.

“Nós não somos ensinados a ter uma economia cooperativa. Nos ensinam que há uma pessoa no comando e que você deve se submeter a ela… E se a gente acabasse com isso tudo? E se, ao invés disso, todos tivessem participação? E se cada um se responsabilizasse pelo outro, de uma forma mais igualitária?” — Boris Santos

Brian H. diz que os moradores da Avenida Arlington, 248 estão começando a “criar raízes” no prédio, que agora podem chamar de lar. “Agora temos algo que é nosso,” diz ele. “E todos nós somos responsáveis por [esse enraizamento], porque todos vivemos aqui”.


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