Em 1978, moradores de favelas, teólogos da libertação e ativistas se mobilizaram para defender o Vidigal, com sucesso, contra tentativas de remoção. E eles usaram métodos de resistência engenhosos. Dentre eles o fornecimento diário de café para funcionários da COMLURB, contratados para expulsar os manifestantes, reconhecendo que eles, também, eram pobres e sentiam fome. Esses garis logo deixaram claro para o governo que eles não iriam remover qualquer dos pertences dos moradores que queriam ficar. O pesquisador e historiador Bryan McCann, autor do novo livro Tempos Difíceis na Cidade Maravilhosa: Da Ditadura a Democracia nas Favelas do Rio de Janeiro, descreve o esforço como “um movimento popular de pessoas humildes encorajadas por um propósito nobre”.
No final dos anos 70 e início dos anos 80, moradores e governantes tentavam quebrar o ciclo de falta de direitos, acreditando que o fim iminente da ditadura militar possibilitaria um futuro brilhante para a cidade. O foco de McCann, no início do livro, na promessa de mudança enfatiza também as falhas subsequentes do movimento em corresponder as expectativas. O que se vê é uma descrição forte de esperanças frustradas e uma análise cuidadosa das repetidas decepções políticas.
McCann inicia sua narrativa no final da década de 70, quando o sonho de extensão da cidadania plena para os moradores das favelas do Rio de Janeiro estava muito vivo. Ativistas tentavam reduzir o abismo entre as favelas e a cidade formal questionando os problemas estruturais e legais de longa data que mantinham os moradores das favelas numa vida marginal e difícil. Contestando a insegurança do sistema de posse de terras em voga, assim como o desemprego, baixos níveis de educação e o assédio policial, eles estavam buscando a redemocratização do país.
Muitos daqueles envolvidos na mobilização de moradores das favelas foram inspirados por ideias gramscianas de ocupação do espaço. Aparentemente improváveis aliados, teólogos da pastoral da libertação e marxistas (como o Movimento Negro Unificado) estavam trabalhando na mesma direção, tentando levar os moradores das favelas para a sociedade civil e, em seguida, utilizar esta posição para atingir fins radicais. Organizações como FAMERJ (Federação das Associações de Moradores do Rio de Janeiro) e a Pastoral de Favelas também acreditavam que uma nova democracia poderia ser criada: uma democracia que dependesse da participação popular constante e energética. Assim, a coligação entre a classe média e ativistas das favelas teve amplo apoio popular e parecia destinada a desempenhar um papel importante nas décadas seguintes.
Em 1982, o candidato socialista Leonel Brizola ganhou a eleição para governador do estado do Rio, em grande parte devido ao apoio cultivado nas favelas através de seu “socialismo moreno”. Este tipo particular de socialismo enfatizava o orgulho racial, e enfatizava a flexibilidade e a redistribuição da riqueza. Sua base de apoio político foi a população pobre urbana e desorganizada. Ele baseava seu discurso no empoderamento (embora de uma forma paternalista) dos mais pobres da sociedade. Uma vez eleito, Brizola trouxe líderes de favelas para ocupar posições de liderança no Partido Democrático dos Trabalhadores (PDT), levando a base popular do movimento até o fim.
A dedicação de Brizola para diminuir o abismo entre ricos e pobres poderia ter sido o início de um período bem-sucedido de melhorias urbanas. Ele lançou uma onda de reformas dramáticas, inclusive acabando com as ameaças de remoção, uma preocupação permanente dos moradores de favelas. No entanto, suas tentativas de revolucionar a educação pública para crianças, conceder títulos de propriedade para os moradores das favelas e desmilitarizar a polícia foi assolada por problemas profundos. McCann discute cada um deles, em profundidade, referenciando estatísticas e casos individuais para analisar razões específicas, bem como mais gerais, para o fracasso.
Um exemplo foi o programa Cada Família Um Lote, que foi concebido para auxiliar o processo de titulação de propriedades, permitindo que os moradores das favelas submetessem pedidos de regularização de propriedade através das associações de moradores. Esta política surgiu do entendimento de Brizola de que as favelas eram a solução para a crise da habitação, não o problema. Apesar de ter sido uma prioridade para os moradores durante os anos em que a remoção era uma ameaça real (especialmente quando o Brasil vivia sob a ditadura militar), o título foi requisitado para apenas 2% dos milhões de lotes selecionados. Uma vez que a ameaça de remoção havia sido afastada, as demandas dos moradores de favela haviam mudado para o desenvolvimento de infra-estrutura e melhoria das condições materiais de suas casas e bairros. Não era de interesse financeiro ou político dos moradores, nem das associações de moradores, cooperar, dada a ameaça do mercado informal de aluguel e o medo da gentrificação colocado pela titulação.
O fracasso de suas reformas de policiamento também é central no legado de Brizola. Denúncias foram feitas continuamente de que ele ordenou que a polícia do Estado do Rio de Janeiro ficasse fora das favelas. A investigação de McCann sobre o sistema policial durante este período mostra que isso é um mito, carregado pelas circunstâncias difíceis que enfrentou o regime de Brizola. O chefe da Polícia Militar eleito por Brizola, Nazareth Cerqueira, foi trazido para implementar uma nova política de segurança que enfatizou policiamento comunitário nas favelas. Um de seus objetivos era pôr fim ao costume “pé na porta” da polícia que entrava nas casas das favelas sem um mandado ou permissão. No entanto, ele não teve o apoio que ele precisava, dentro da polícia, para implementar essas mudanças.
Ainda que Brizola não tenha ordenado que as tropas ficassem de fora das favelas necessariamente, as tentativas de Cerqueira para limitar as punições de crimes menores (como para pessoas envolvidas na rua com o jogo do bicho) e se concentrar em fazer prisões de criminosos de nível mais alto foi recebido com desdenho por oficiais que tinham anteriormente servido sob a ditadura militar. A divisão posterior entre os oficiais recém-formados e os da velha guarda, acostumados a complementar seus parcos salários com subornos, levou, assim, a uma incapacidade de implementar com sucesso as novas reformas e a ausência de policiamento eficaz durante este período.
McCann mostra que os problemas entre os moradores das favelas e os policiais foram agravados por fatores exógenos, como o surgimento de novas rotas de tráfico de drogas na América do Sul e mudanças nos padrões de consumo de drogas: principalmente o crescimento do consumo de cocaína. Como traficantes buscavam garantir suas bases, eles então buscavam assumir as associações de moradores, jogando com o medo que os moradores tinham da polícia, e pagando suborno aos membros das associações. McCann argumenta que o aumento da influência do tráfico de drogas na política local acabou por desviar fundos de projetos legítimos. As associações de moradores que estavam originalmente associadas à resistência as remoções, a encorajar moradores e à visão comunitária, tornaram-se, durante o período de Brizola, mediadores entre os moradores e as agências estatais. No entanto, o novo poder dessas associações significava muitas vezes que as coisas não poderiam ser feitas sem a ajuda de um forte aliado na associação. O desenvolvimento do clientelismo deixou-os suscetíveis a serem manipulados pelas facções criminais. McCann lamenta, usando o exemplo de Santa Marta, onde nem líderes locais eficazes, nem uma comunidade sólida poderiam representar obstáculos para a tomada criminal. Os traficantes “chegaram pra valer”: a infiltração de traficantes em associações de favelas espalhadas por toda a cidade sequestraram e distorceram a mobilização comunitária que uma vez tinha dado a essas favelas tanta esperança.
Tempos Difíceis demonstra claramente como as aspirações da década de 80 foram lentamente quebradas por pequenos fatores, aqueles encontrados no que ele descreve como os interstícios, ou pequenos detalhes cruciais. Suas descrições do governo Braga, o desenvolvimento das escolas CIEP projetadas por Niemeyer e exibindo fervoroso compromisso com uma reforma educacional radical, e o crescimento do sector das ONGs, dentre outros, fornece uma visão abrangente de um período crucial na história do Rio de Janeiro e uma valiosa fonte de crítica histórica.
Tempos Difíceis termina de forma positiva. Suas entrevistas com membros de associações de moradores entre 2010-2013 o levou a concluir que muito foi mantido daquele período, e que uma mudança positiva é finalmente possível. Em sua discussão sobre as UPPs, ele destaca que a visão de Nazareth Cerqueira de prevenção da criminalidade e policiamento comunitário está sendo, finalmente, em parte, realizada. McCann, no entanto, reconhece que um século de policiamento violento não é facilmente derrubado. Ele também vê a recente onda de protestos como um sinal de progresso. Os debates vigorosos sobre os gastos públicos com os Jogos Olímpicos, com remoções e segurança, demonstram que os moradores das favelas estão participando politicamente e diretamente para definir o futuro da cidade.
McCann conclui que “o momento atual oferece uma oportunidade, pela primeira vez em 30 anos, de afirmar a diferença positiva ao mesmo tempo em que luta-se contra a exclusão do estado de direito”. Se as lições da década de 80 forem aprendidas–priorizar quadros estáveis de melhoria gradual ao invés de reformas radicais mal implementadas–existe uma oportunidade para empoderar e proporcionar um futuro promissor para os moradores das favelas do Rio de Janeiro.