1493 por minuto

Neta de alguns dos “descobridores de Comendador Soares”, seu João e da dona Fontes e filha de Renato Santos e Elza Beatriz, Hosana Beatriz Souza tem 17 anos, é moradora de Comendador Soares, professora, repórter e estudante de ciências sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

A saia de prega, sapatinhos de boneca e meia ¾ eram tudo o que ela não queria para sua vida. No auge da sua pré-adolescência, 14 anos, Hosana, que era jogadora de handebol no Colégio Estadual Antônio da Silva, enfrentou seu pai, que havia conseguido uma vaga para a jovem no Instituto de Educação Rangel Pestana, no Centro de Nova Iguaçu. “Eu não queria estudar lá. Perdi o tempo de matrícula propositalmente”, explica.

Mas o velho pára-quedista não desistiria facilmente. Uma semana após o inicio das aulas, ele apareceu com o uniforme e a matrícula feita graças a uma carta de envio que os diretores escreveram para a direção do Arruda Negreiros. “Não teve jeito: era conversa de diretor pra diretor. O engraçado é que pra mim o top era ser do ensino médio e jogar handebol. O máximo que um ser humano pode ser na vida”, conta ela. Apesar do mal começo, o futuro de Hosana começou a ser decidido ali. “Hoje eu não sei como viver sem militar e trabalhar com a educação”.

O curso normal é, ao contrário do que as pessoas pensam, um curso de formação complicada. A estudante frisa que os estágios já começam no primeiro ano, onde é necessário cumprir 180 horas; no segundo ano, a carga aumenta para 240 horas; no terceiro, a brincadeira compromete 360 horas e, no quarto, 480 horas. O estágio do normal é compreendido entre atividades na escola desde a construção de um mural de avisos à organização de eventos. Além das horas dedicadas ao estágio supervisionado, onde as meninas são obrigadas a trabalharem dentro de sala de aula com as crianças. “O normal me ajudou a amadurecer ainda mais. Foi bom ir pro Arruda, em Santa Eugênia, e não pro Rangel. Eu gosto de conhecer todas as pessoas que circulam pelo mesmo ambiente que eu e no Rangel isso não seria possível. Se eu fosse pro Fundão, talvez não gostasse porque lá os prédios são afastados um dos outros”, conta.

Evento amigo

Hosana, suas companheiras do Curso Normal e seus alunos.
Hosana, suas companheiras do Curso Normal e seus alunos.

A relação de Hosana com a cultura começou na escola. As normalistas têm muitas horas a cumprir durante a formação e as atividades complementares são realizadas fora de casa e da escola, e precisam ser relacionadas à cultura. O Fala Sério, um circuito de filmes do SESC de Nova Iguaçu voltado para os estudantes do ensino médio, tornou-se um “evento amigo” das normalistas. Organizado pelo geógrafo Valdomiro Meireles, o circuito apresenta sessões temáticas e termina debate com convidados com professores de história, literatura ou cineastas. “O evento é ótimo, o único problema era que às vezes juntavam todas as meninas do normal – o Arruda, o Milton e o Rangel. Elas falavam bastante durante a sessão, o que tira um pouco atenção e me irritava”, completa.

A relação com a família é parte fundamental da vida de Hosana. Ela se deu de acordo com as necessidades de sua pouca idade e com as obrigações externas de seus pais. “Tenho três avós. Vivo, dos avôs, eu só tenho o João Miguel, o vô Cuca”, explica, “Das avós tem a Francisca dos Santos, mãe do meu pai com a qual não temos muito contato. Helena Florêncio, madrinha do meu pai, quem criou ele desde sempre. E Zaila Alves, mãe da minha mãe”.

Sua avô Zaila comprou um terreno grande e todos os filhos construíram a casa em torno da dela. Por intermédio da moradia próxima, Hosana teve contatos mais constantes e intensos com Dona Zaila, que além de morar no mesmo quintal, cuidava dela enquanto os pais trabalhavam. “Eu cuidava da minha velha e ela cuidava de mim”, brinca fazendo referência à avó materna.

“Eu só visitava minha vó Lena nos finais de semana e fui morar com ela com 12 anos porque queriam vender o terreno de minha avó contra sua vontade. Minha mãe votou em não vender e pediu para que ela morasse conosco, mas o desejo não foi correspondido pela consideração da minha avó pelos outros filhos”, revela. “Foi bizarra a briga, a minha tia puxou o fio da antena parabólica. Ou seja: se você não quer vender o terreno, também não vai ver novela”, conta rindo da situação, ocorrida há cinco anos atrás. “Minha mãe trancou a porta que dava acesso à casa da minha avó e eu fiquei uma semana sem vê-la. E nesse tempo curto, minha mãe pegou um empréstimo, comprou outra casa e foi embora. Minha mãe está pagando isso até hoje. A casa que minha levou anos para construir no terreno da minha vó era grande. A que a gente se mudou, não. Ou dava as coisas da minha mãe ou a gente. Ela se desfez de muitas coisas, inclusive das filhas. Mandou a gente pra casa da minha avó Helena”. Hoje todos já voltaram a morar perto e se entender, como uma boa e grande família.

Os pais de Hosana e sua irmã mais nova.
Os pais de Hosana e sua irmã mais nova.

Sua mãe teve complicações durante o parto: além da prematuridade de sete meses, ela teve eclampsia. “Eu quase morri. Mas meu pai botou moral e disse que queria as duas”, brinca. O pai a batizou com o nome Hosana por três motivos: primeiramente por significar “Glória a Deus” e seu pai, um católico, desejar que o nome de sua filha demonstrasse sua gratidão a Deus. Depois por uma exclusividade, já que na época não havia ninguém com o nome. E, também, por ter visto uma mulher bonita e inteligente com nome de Hosana no exército. “Acabou que eu sou de esquerda, ele é de direita e a gente vive discutindo. Acho que esse do exército não deu muito certo”, conta, sempre sorridente.

Amizades com a magrela

A amizade entre a menina e Jéssica Oliveira, a famosa Déh ou “Marrentinha”, é de longa data. Jéssica é a personagem que uniu Wanderson Duke a Hosana. Elas se conhecem desde pequenas por fazerem as tradicionais comunhões católicas juntas. “De uns anos pra cá que nós ficamos bem mais amigas. Eu juntei ela e o Giuseppe, ela juntou eu e o Duke e nós vivemos felizes e brigando”, diz com outra risada.

A amizade cada vez mais forte rende frutos bons e visíveis, tanto nas reuniões que participam juntas quanto nos 140 caracteres do twitter para quem segue as meninas. “Minha amizade com essa magrela é linda. Nós falamos sobre tudo e todos. Dividimos quase tudo. Menos escova de dente, roupas íntimas e o namorado”, declara, explicando em seguida que a intimidade entre as duas forjou um amor ímpar de que não sente vergonha de falar. “Não sei como ficar sem essa criatura. Ela corta meu cabelo, não me deixa sair de casa com roupa amarrotada. Quando a gente vai sair ela vai na minha casa e passa minha blusa, acredita. Quando eu viajei pra São Paulo, ela veio arrumar minha mala. Eu a amo e só”, finaliza.

Déh, Robert e Hosana
Déh, Robert e Hosana

Além de ser professora e um talento procurado dentro da educação, Hosana é repórter da Cidade de Nova Iguaçu. A Déh, que não é só a amiga íntima e casamenteira, disse que ela precisava conhecer o escritor, roteirista e jornalista Julio Ludemir. “Estava sentada poderosíssima com roupa de normalista no Paço Municipal. Passou o Julio e o Lucas Lima subindo a rampa da Prefeitura. Eu não sabia que o Julio era o Julio enquanto aguardava a Déh e o Giuseppe”, lembra.

O primeiro contato com o coordenador do projeto que ela teve foi uma pergunta respondida com uma resposta inadequada para os primeiros momentos. “Julio estava corrigindo a matéria que o Lucas Lima fez com a Bia Bedran, escritora e arte educadora que trabalha através de cantigas e livros para crianças. Nessa, eu conheci o Lucas e o Mazé, fotógrafo. O Julio estava falando alguma coisa relacionada à literatura com o Lucas e, já que era meu primeiro momento, a pergunta serviu pra mim. A primeira resposta que dei ao meu chefe foi: quero ganhar o Nobel de literatura. Surreal dizer isso de cara pro chefe, ainda mais quando nunca trabalhou na vida”, comenta. No lugar da premiação do Nobel de literatura, foi presenteada com a tarefa de escrever uma reportagem sobre uma senhora de Jardim Pernambuco que fazia vestidos com materiais recicláveis e realizaria um desfile na escola da filha.

Nobel

Hosana lamenta pela alteração radical do lugar mais Nobel do início de sua carreira. “Esses dias passei pelo mesmo lugar, dentro da prefeitura, e doeu ver as paredes brancas no lugar do lindo trem e das paredes grafitadas. Lá era lugar de jovem usando bermudinha e all star; agora não tem mais isso”.

Reunião Jovem Repórter | Foto por Josy Antunes
Reunião Jovem Repórter

Julio Ludemir é um personagem que ajudou e ainda ajuda os meninos de Nova Iguaçu a ter uma visão mais crítica e jornalística através de suas reuniões semanais no Espaço Cultural Sylvio Monteiro – no coração da Cidade. “As criaturas que o projeto me apresentou são pessoas totalmente ímpares. Penso que o Julio tem uma responsabilidade muito grande de cuidar desses talentos iguaçuanos. As pessoas que estão ali são pessoas supertalentosas e ele trabalha em cima dessa descoberta, o que é um grande desafio”, diz. “O Chico Buarque tinha o grupinho dele que chegava bêbado em casa. Assim como a gente que chega bêbado de matérias. Penso que daqui uns dias vamos representar o que o Chico representou na história”.

Uma militante do projeto, Hosana conta que após um ano e oito meses já tem um conceito do que aquilo representou e representa na sua vida. “Vejo no projeto uma oportunidade que vai do aprendizado, passa pelos contatos importantes que fazemos e vai até o nosso futuro profissional. Eu acho o projeto muito bacana e acho que ele tem tudo para ir além. É só a gente aprender a lidar com certas limitações nossas”. Sobre a cultura e a cidade, Hosana comenta que para ela não existe outro lugar que não Nova Iguaçu. “Eu amo morar em Nova Iguaçu. Isso aqui é meu quintal, não me vejo longe dessa cidade e de seus problemas. A cultura aqui é bem ativa, mas eu queria que fosse menos centralizada. Na maior parte dos eventos eu sempre encontro a mesma galera. Queria que esse espírito fosse mais forte e alcançasse mais pessoas na cidade”.

Power Rangers

Além de ser amiga da Déh, que levou Hosana para o projeto, é namorada do Wanderson Duke e vale ser declarado o amor que eles têm um pelo outro. A história dos dois começa nas brincadeiras dos super-heróis da época, os Power Ranger, no Centro Educacional Walt Disney, em Comendador Soares. Eles, que cursaram o C.A. juntos, só foram se reencontrar na rua e namorar por causa do CulturaNI e por intermédio da Marrentinha. Na segunda série, Hosana mudou de escola e ele se mudou de Comendador Soares, porém o caso não ficaria apenas na memória.

Num final de semana de tédio propício ao consumo de calorias, Déh e seu namorado Giuseppe convidaram Hosana para ir ao “Nô” lanchar. No caminho encontraram o Duke, da antiga Disney, que estava indo à casa de uma tia e na época estudava com Déh e também trabalhava no Jovem Repórter. Hosana não lembrou do Power Ranger Azul, mas o Power Ranger Azul lembrou da Ranger Rosa. “Eu jamais ia lembrar que estudei com ele. Lembrei muito tempo depois. Começamos a flertar”, conta.

As conversas pelo Messenger são instantaneamente certas. Os poemas que o escritor, repórter, crítico de uma revista de cinema e marinheiro Duke fez para Hosana deu certo. “A verdade é que sou fácil”, brinca.“Teve um episódio lindo, a gente é tímido, por mais que não pareça pra essas coisas eu sou tímida, e quando eu passei na Prefeitura com a Déh, o Duke estava lá na sala do Jovem Repórter. Não tivemos coragem de falar um com o outro”. A timidez era só uma maneira deles se apaixonarem mais um pelo outro e a internet, como sempre, ajudou. “Por internet, eu pedi pra ele que, quando nos víssemos de novo, me abraçasse. Daí, estávamos no Sylvio Monteiro e ele veio todo trabalhado e me deu mó abração. Coração a 1493 por minuto”.

Wanderson Duke e Hosana Souza
Wanderson Duke e Hosana Souza

A culpa e os créditos definitivos são do CulturaNI. “Na minha segunda matéria, que foi um espetáculo lá no Nós da Baixada, eu convidei o Duke pra ir comigo e ele prontamente aceitou. Pegava na minha mão, sorrisos, amor no ar, coração a mil, bem cena de filme americano. Quando nós chegamos aqui no meu portão, na hora da despedida, eu dei um beijo”, conta dizendo que era a Alfa da relação. “Ele vai dizer que nos beijamos, mas a verdade é que eu beijei. Dormi e sonhei plenamente e ele foi pra casa feito um bobo falando sozinho”, disse com orgulho de ter tomado a atitude. “Nos encontramos de novo na Vila Olímpica e passamos uma tarde juntos. Decidimos então namorar”.

O desafio maior para qualquer menino é enfrentar o pai, que já foi do exército, por único motivo: ser o pai dela. “Tínhamos medo do meu pai. E isso adiou por quatro meses o Duke ir lá em casa. Durante os quatro meses, nos encontrávamos quase toda manhã lá na praça Santos Dummont. Estamos juntos um ano e oito meses e se Deus quiser para sempre. Eu amo esse carinha chato e o admiro. Desejo tudo de melhor sempre para nossas vidas”, completa.

Seguidora de Bebel

Ciências sociais foi uma opção por admiração à professora Isabel Rocha, mestre de Sociologia durante três anos no normal. A mulher que despertou interesse trouxe a Hosana uma certeza: tornar-se uma grande mulher como Isabel, que chama carinhosamente de Bebel. “Queria fazer jornalismo, mas ela foi boa, tinha ideias tão legais que eu mudei para ciências sociais. Pesquisei sobre a área, gostei e passei no vestibular”.

A relação de Isabel com seus alunos era extremamente intensa. Durante um ano suas aulas eram as únicas realizadas no último tempo das tardes quentes ou frias de sexta-feira, o que não impedia a presença da turma em peso na aula. “Bebel é muito querida na escola. Ela não consegue falar presa a papel, gosta de olhar nos olhos, tudo com a ela é no diálogo. Ela apresentava todos os conceitos da sociologia, mas fazia do jeito dela. A gente produzia muito com teatro, cinema, música. Ela tem uma juventude dentro dela que ajuda a prender a nossa atenção, porque ela nos entende e utiliza mecanismos e linguagens que utilizamos”, explica.

Sua nova realização foi ter sido aprovada no processo seletivo da Escola de Jornalismo Comunitário “Rio On Watch”, o mesmo que “Rio de vigia”, que funciona na Fundição Progresso dentro do CDI, na Lapa. “Ainda é bem novo no meu olhar, eu traço, óbvio, como principal ponto a troca de experiências únicas do projeto. Mas sei que de alguma forma ele nos levará a algo além de simplesmente isso”, conclui.

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