No dia 9 de agosto, Michael Brown, um jovem americano desarmado foi morto a tiros por um policial em Ferguson, Missouri, imediatamente despertando protestos. No mesmo dia, moradores do Complexo do Alemão no Rio de Janeiro organizaram uma passeata demandando o fim dos tiroteios recentes que feriram e mataram moradores desarmados da comunidade.
A morte de Brown deixou muitos americanos indignados, mas infelizmente, não surpresos. O caso é um dentre inúmeros incidentes envolvendo jovens negros morrendo nas mãos da polícia americana. O que mais surpreendeu aos americanos foi a força militarizada com o qual a polícia respondeu aos protestos que aconteceram em Ferguson. Com manifestantes e jornalistas sendo agredidos e presos, espectadores ao redor do país condenaram a mão pesada da polícia que parecia pertencer à uma era antiga, em uma diferente parte do mundo.
No Brasil, em contraste; nem as altas taxas de mortes de cidadãos pobres, negros e inocentes nem a opressiva tática policial surpreendem a população. No Rio de Janeiro em particular, sede de uma das polícias mais violentas do país e lugar de extrema desigualdade, o que aconteceu em Ferguson é o modus operandi da cidade, o feijão com arroz. O mesmo aplica-se até para o “policiamento comunitário”, ou UPP, programa lançado em 2008 que estabelece uma presença constante da polícia em determinadas favelas da cidade. No Alemão, por exemplo, a polícia localiza-se em esquinas estratégicas com rifles apontados para vielas estreitas. Os moradores, inclusive crianças, passam diariamente por essas vielas à caminho para a escola, para as compras ou pro trabalho. Na noite do dia 24 de agosto, moradores do Complexo expuseram nas mídias sociais notícias sobre um “tiroteio intenso” onde pessoas estavam correndo por suas vidas, com imagens gráficas de animais feridos ou mortos.
Críticos argumentam que esta abordagem supostamente para melhorar a segurança inevitavelmente criminaliza os mais pobres da cidade, majoritariamente negros moradores de favela.
Do mesmo modo que a mídia nos Estados Unidos vem analisando a assustadora aparição da polícia, de Ferguson e St. Louis, armada e uniformizada para guerra, houve um debate similar durante a Copa do Mundo no Brasil. A Polícia Militar, vestida de ‘Robocop‘ com semelhanças ao Darth Vader, respondeu aos protestos contra o torneio com bombas de gás, balas de borrachas e cassetetes. Alguns ativistas e manifestantes foram preventivamente presos, até antes dos protestos começarem, criminalizados sem efetivamente cometer nenhum crime, simplesmente por fazer parte de um protesto democrático. No ano passado, o incipiente movimento de protestos que levou 300.000 cidadãos do Rio para as ruas foi rapidamente reprimido por uma operação policial extremamente problemática.
Seguindo os enormes protestos que ocorreram durante a Copa das Confederações de 2013, o governo brasileiro se preparou para a Copa do Mundo expandindo seu arsenal policial com compras de armamento militar de companhias israelenses. Similarmente, agências de segurança em todos os Estados Unidos receberam equipamentos de nível militar do Pentágono, um processo que muitos americanos só perceberam quando os eventos se desdobraram em Ferguson.
Durante um debate recente sobre violência policial e a criminalização da pobreza e dos movimentos sociais realizado na Universidade Federal Fluminense (UFF), participantes traçaram evidências sobre narrativas e propaganda de criminalização em toda história brasileira para tentar explicar o (mal) uso da violência e a militarização da polícia no Brasil atual. O palestrante Thiago Melo, advogado e diretor do Instituto de Defesa dos Direitos Humanos, argumentou que, enquanto o uso de equipamentos militares pesados, armas letais e veículos de guerra deveria ser indiscutivelmente inconstitucional, o abuso do uso das armas não letais representa claramente um caso, também, de ilegalidade.
O governo brasileiro pode ter citado a intensificada demanda por segurança durante a Copa do Mundo como a principal razão para o crescimento das forças de segurança, mas, o autor Dave Zirin, que escreve sobre esporte e política, aponta que os aparelhos de alta tecnologia não serão deixados de lado agora que a Copa do Mundo acabou. Novos instrumentos tornarão parte do equipamento de rotina e permanecerão bem depois que o evento, ou “estado de emergência”, acabar. O professor, teólogo e militante, Henrique Viera, que participou do debate na UFF, argumentou que a necessidade de medidas durante uma situação de “emergência”, como a Copa do Mundo, abre espaço político para medidas excepcionais, como a violação de inalienáveis direitos humanos. Esse estado de emergência nutre e é nutrido por tentativas de criminalizar certos segmentos da sociedade.
Participantes do debate na UFF levantaram questões sobre Ferguson, perguntando porque tragédias similares no Brasil não tiveram a mesma repercussão global. Não é só no meio acadêmico que os brasileiros assimilaram os dois casos juntos. Manifestantes na marcha do dia 9 de agosto pintaram #SOSComplexoDoAlemao ao redor da favela, propagando uma campanha no Twitter que provocou uma comparação natural com os dois casos.
O Blog Rio Gringa apontou que qualquer um que esteja seguindo o caso de Michael Brown notará a semelhança no conteúdo dos tweets no Brasil. Muitos participantes das campanhas no Twitter notaram que “jovens negros e pobres são os que mais morrem nessa guerra”. Um dos participantes colocou: “Eu quero que meus jovens tenham a liberdade de ir e vir à hora que for sem ter medo de virar mais uma estatística”, uma declaração que ecoou por pais negros americanos. Assim como o debate nos Estados Unidos discute o papel de raça e classe social ditando os números desproporcionais de jovens negros mortos pela polícia, tweets do #SOSComplexoDoAlemão também enxergam tanto raça como classe como parte da criminalização dos moradores da favela. “Pobreza não é um crime”, um dos participantes declarou.
Mesmo que muitos americanos provavelmente não conheçam o #SOSComplexoDoAlemao, ativistas brasileiros estão atentos as campanhas no Twitter que resultaram dos eventos em Ferguson, como a #DONTSHOOT (#NÃODISPARE, campanha de diversas pessoas com mãos ao ar como se fossem inocentes sendo aproximados pela polícia). A mídia independente e coletiva, Mídia NINJA, usou o #DONTSHOOT para alertar sobre a violência policial, “Em Ferguson, no Brasil, na Palestina”, e para demandar um fim ao “genocídio contra os negros pobres que ocorre no Brasil”.
Black Women of Brazil, um blog “dedicado para as mulheres brasileiras e afro-descendentes”, também usaram #DONTSHOOT para comunicar a Marcha Contra o Genocídio dos Negros no dia 22 de agosto. Esse evento, na verdade, foi parte de um grande número de manifestações que ocorreram em todo o país, com a do Rio realizada em Manguinhos.
Enquanto os americanos estão questionando a polícia doméstica, estruturas e desigualdades para entender os eventos em Ferguson, esses ativistas brasileiros estão deliberadamente ressaltando os paralelos globais como reflexões chaves para entender o processo da criminalização e militarização da polícia no Brasil, e no mundo.