Historicamente definidos como comunidades de escravos fugitivos, os quilombos representaram, no ultimo país do hemisfério ocidental a abolir a escravidão, áreas de resistência e liberdade para afro-descendentes brasileiros. De acordo com a Constituição de 1988 e atendendo a pedidos de ativistas negros pelo reconhecimento e reparações, descendentes dos quilombos ganharam o direito à terra que eles têm ocupado historicamente. Apesar disso, a luta pelos direitos territoriais ainda está em andamento nos dois quilombos urbanos oficiais do Rio.
Embora amplamente pensado como um gesto simbólico, designado para apaziguar o movimento negro, a legislação preparou o terreno para milhares de pedidos de reconhecimcento a direitos territoriais, embasados no surgimento de uma nova identidade legal designada “quilombola“, transformada em lei em 2003, durante o governo Lula. Não mais restrita as comunidades que podiam provar-se historicamente como assentamentos de escravos fugitivos, mas uma identidade coletiva enraizada na ancestralidade negra, na resistência e território, tornou-se a chave pela qual os grupos puderam reivindicar o status de quilombo.
Apesar do reconhecimento oficial ter sido concedido para muitos desses grupos, a garantia do direito à terra se provou um processo árduo e interminável para a maioria. De acordo com a Fundação Cultural Palmares, órgão do governo responsável por certificar as comunidades, o estado do Rio de Janeiro tem 29 quilombos oficialmente reconhecidos. No entanto, apenas dois até agora adquiriram com sucesso os direitos aos seus territórios, como consagrado na Constituição.
Quilombo Sacopã
De acordo com Luiz Pinto, líder do Quilombo Sacopã e Presidente da Associação de Quilombos do Estado do Rio de Janeiro, os quilombos urbanos enfrentam desafios específicos para obter o reconhecimento territorial. Isso se deve em parte, segundo Luiz, a noção do quilombo como um paraíso rural isolado, no qual os escravos se escondiam. A partir disso, as definições legais se desenvolveram e ainda permeiam o imaginário popular. Além disso, ele chama atenção para os interesses dominantes que estão em jogo no contexto urbano, particularmente no Rio de Janeiro, onde a galopante especulação imobiliária e as tentativas de higienizar áreas ricas da cidade têm, durante muitos anos, deslocado os moradores de baixa renda.
No caso do Quilombo Sacopã, que fica em um morro sobre a exclusiva Lagoa, tais dificuldades têm se mostrado acentuadas. “O racismo é intensificado por estarmos em um lugar que dizem que nós não pertencemos”, explica Luiz. De fato, os apartamento luxuosos que surgiram em torno do quilombo na década de 1970 abrigam parte das mais prósperas e ricas moradias da cidade. Tais lares incluem membros do judiciário estatal que têm se engajado em uma longa batalha para remover o quilombo.
Ocupando a área por mais de um século, os 30 membros das famílias que criaram a comunidade resistem por mais de quatro décadas a tentativas sucessivas de remoção. Em 2009, como parte dessa luta, o status de quilombo foi atribuído à comunidade, iniciando outro processo judicial para obter o direito à sua terra, ainda em andamento quinze anos depois. No entanto, Luiz acredita que até o final do ano o território pode ser concedido, entrando nos estágios finais do processo. Contudo, ele permanece otimista, mesmo ressaltando que muitos outros quilombos nesse estágio do processo de reconhecimento federal tiveram suas reivindicações estagnadas por anos.
O quilombo enfrenta outros desafios além das remoções. Desde 2013 eles foram proibidos de promover o seu popular samba e feijoada, que por mais de 40 anos vem sendo um ponto fundamental da identidade e maneira de viver da comunidade. A ordem judicial proibindo o evento estabelece que atividades comerciais não são permitidas na área, ainda que Luiz atente para o fato de que isso não se aplica a outros negócios que operam na área–“só conta para a gente”.
Diante da ameaça de prisão se continuar promovendo a feijoada, Luiz tem lutado para que ande o processo por meio de uma ação pública civil, que deve entrar em curso em breve. Apesar de ter estado de cara a cara com a corrupção do sistema judicial nos processos legais anteriores, ele acredita que a causa da comunidade prevalecerá, argumentando que a liminar é ilegal pois contraria a garantia constitucional à liberdade de expressão para os afro-brasileiros
Quilombo da Pedra do Sal
Enquanto isso, o Quilombo da Pedra do Sal tem enfrentado lutas similares contra poderosos interesses na Zona Portuária do Rio. A luta do quilombo por reconhecimento começou em 2004, quando a Igreja Católica aumentou os aluguéis na área, despejando muitos dos ocupantes pobres que não podiam mais arcar com o aluguel. Na área antes conhecida como “Pequena África“, eles defendem a presença de um quilombo por direito para garantir a manutenção das tradições afro-brasileiras na região, tais como o Candomblé e o samba.
De fato, para muitos, a Pedra do Sal já é sinônimo de samba. Os encontros, que acontecem duas vezes por semana, são extremamente populares, tanto entre os locais quanto entre turistas. Mas para os quilombolas, esses eventos não conseguem transmitir a rica herança da região, enraizada na ancestralidade negra. Além disso, a Zona Portuária, sob pressão do plano estatal de revitalização, está mudando rapidamente. Em meio ao aumento dos preços de imóveis, resta saber o que será dos moradores menos abastados da região.
Contudo, em uma vitoria significativa para o quilombo, recentemente o status de área de proteção cultural foi concedido pela Prefeitura. Para Luiz Torres, Diretor da Associação do Quilombo da Pedra do Sal, isso sinaliza um passo importante na remoção de obstáculos rumo à conquista dos direitos à terra. Entretanto, ele adverte que o lento processo de titulação está em compasso de espera no país por causa das eleições que virão.
O artigo que define os quilombos está sob ataque, com muitos desafios relacionados ao poderoso lobby do agro-negôcio. Eles defendem que o artigo é inconstitucional, uma vez que mina o princípio da propriedade privada, oferecendo a oportunidade para que milhões exijam direito à posse da terra que ocupam. Tal oposição não está inconteste. Damião Braga, Presidente da Associação do Quilombo da Pedra do Sal, está engajado na rede nacional de quilombos, que por sua vez está construindo atualmente um lobby com o intuito de proteger esses direitos, o que já levou até agora ao reconhecimento de mais de um milhão de quilombolas no Brasil majoritariamente pobres.
No passado, os quilombos lutaram contra um regime escravista explicitamente racista. Hoje sua luta continua com um Estado assolado pelo legado dessa injustiça. Resta saber se em face a um processo tão obstrutivo para a obtenção de direitos garantidos pela Constituição, o movimento quilombola poderá oferecer a ampla política de reparação que aspira.
Enquanto isso, os quilombos urbanos do Rio continuam a representar uma fonte de resistência na cidade, o que deve servir de inspiração para outros.