Esta matéria faz parte de uma série sobre veículos de comunicação comunitária.
No dia 23 de agosto de 2014, membros da equipe do Jornal O Cidadão distribuíram exemplares do jornal nas dezesseis favelas que formam o Complexo da Maré, na Zona Norte do Rio. Eles distribuíram alguns exemplares diretamente para pessoas que encontraram na rua e nas lojas, e também colocaram outros exemplares sob as portas onde não havia ninguém em casa.
“Ao distribuir o jornal de casa em casa… podemos obter opiniões imediatas sobre o conteúdo”, explica Gizele Martins, editora-chefe do jornal e moradora da Maré. “Nós podemos sentir se os moradores gostam das matérias, se não gostam das matérias, se têm críticas, se não têm críticas… se eles têm dúvidas, se eles têm reclamações”.
A equipe do O Cidadão lê as matérias, diretamente, para membros da comunidade que não sabem ler. As escolas comunitárias também recebem exemplares para que os professores possam incorporá-los nas tarefas de classe. O jornal, que sai a cada três ou quatro meses, é sempre distribuído gratuitamente.
O modelo de distribuição interativa do O Cidadão difere, significativamente, dos métodos utilizados pela maioria dos outros jornais, mas o jornal comunitário, como um todo, funciona de maneira diferente de outras plataformas de mídia. Intencionalmente, o jornal procura preencher as lacunas na cobertura e interação das fontes externas com a Maré. Os principais jornalistas da imprensa carregam “estereótipos e preconceitos” que ainda permeiam a sociedade carioca, argumenta Gizele, antes de continuar: “Eu acredito que o papel da mídia comunitária é quebrar isso”. Além disso, ela sugere, a mídia comunitária é simplesmente melhor em cobrir assuntos relacionados às favelas. As pessoas que moram na Maré estão melhor situadas para contar as histórias da Maré.
Questões Fundadoras da Identidade Local
Quando foi fundado em 2000, como um projeto do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM), o foco principal do O Cidadão era explorar e criar uma identidade local através das dezesseis favelas da Maré. O jornal buscou respostas para perguntas como ‘O que é uma favela?’ ‘O que é a favela na Maré?’ E ‘Qual é a identidade da Maré?’ O jornal inventou o termo Mareense para descrever alguém ou algo da Maré em um esforço para criar um sentimento comum de pertencimento à comunidade. Para responder às suas perguntas, o jornal focou na cultura local cotidiana, detalhando a história de uma padaria ou contando a história de um pescador local.
O projeto não é fácil de manter. Os jornalistas são todos voluntários. Alguns não são apenas responsáveis pela reportagem e escrita, mas também pela edição, tarefas administrativas e pelo curso de jornalismo comunitário do O Cidadão. Alguns dos dez membros da equipe atuais ocupam outros empregos simultaneamente. Enquanto a maioria é morador da Maré, alguns contribuintes vêm de outras favelas do Rio e até da região metropolitana. Os custos de viagem aumentam até mesmo para os membros locais da equipe, já que precisam pagar os ônibus para cobrir os acontecimentos em todo o vasto território da Maré, e suprimentos básicos, como papel para a impressão e canetas, podem custar muito para as finanças do jornal. A equipe tem a sorte de manter uma boa relação de trabalho com o CEASM, que fornece uma sala para o escritório, em sua sede na Maré, e cobre os custos de iluminação, internet e telefone.
Capacitação de Novos Jornalistas Comunitários
Desde 2012, um de seus projetos mais interessantes–o curso de jornalismo comunitário–serviu para renovar a equipe do O Cidadão com pessoas treinadas e apaixonadas. Cursos cobrindo uma variedade de mídias, desde reportagens escritas até vídeo e rádio, são ministrados pela equipe do O Cidadão e pelos alunos dos anos anteriores, de modo que um ciclo sustentável de alunos se tornando professores impulsiona o curso a cada ano.
A importância de capacitar pessoas em uma variedade de mídias é clara a partir da variedade de plataformas que O Cidadão emprega. Como muitos Mareenses não têm computador ou telefone com acesso à internet, o jornal impresso continua sendo o principal formato do jornal para alcançar os moradores locais. No entanto, o site do O Cidadão, a página do Facebook e o Twitter aumentam o público para além dos limites físicos da favela. O site publica histórias com muito mais regularidade do que o impresso, relatando eventos à medida que acontecem. Gizele acredita que a maioria das pessoas que lêem o site do O Cidadão são jovens de fora da Maré, enquanto jovens de dentro do complexo da favela se envolvem através dos jornais impressos distribuídos nas escolas e pela página do Facebook.
Foco em Direitos Humanos
Por volta de 2010, o jornal começou a mudar seu foco para questões de direitos humanos. Depois de vários tiroteios fatais na Maré, a equipe “sentiu a importância de mudar de assunto”, explica Gizele. “Os assassinatos e a violência foram resultados do fato de o governo não ver os espaços físicos ou os moradores da comunidade como parte legítima da cidade. Eles só nos veem como estando às margens da cidade”.
A equipe do O Cidadão apontou que outros jornais sugeriram que jovens vítimas de tiroteios estavam envolvidos no tráfico de drogas, em casos em que os membros da comunidade sabiam que isso era falso.
Ao passo em que os principais noticiários algumas vezes relataram as mortes, eles não fizeram as perguntas que eram tão prementes para os moradores da Maré: “Por que há tanta guerra na Maré? Por que merecemos essa vida?” Na perspectiva da equipe do O Cidadão, os moradores são retratados como violentos, quando na verdade são governados pela violência; eles são retratados como criminosos, quando na verdade são criminalizados. Tão rígidas foram as discrepâncias entre as perspectivas dominantes e local sobre as favelas, que Gizele descreve a mudança do O Cidadão em direção aos direitos humanos como uma “necessidade”.
Na esteira da Copa do Mundo do Brasil e enquanto o Rio se prepara para sediar as Olimpíadas de 2016, O Cidadão ainda está focado em fazer deliberadamente as perguntas que outros meios de comunicação encobrem. Gizele ressalta que muitos jornalistas brasileiros e internacionais fizeram reportagens sobre remoções e ocupações policiais que ocorreram no período que antecede os megaeventos, mas eles ainda não conseguiram fazer as perguntas mais profundas que os moradores da favela estão desesperados para entender: “Um jornal relata que uma favela será ocupada por causa da Copa do Mundo. Mas ninguém está falando sobre por que a favela será ocupada por causa da Copa do Mundo… ninguém está questionando por que o povo da Maré merece tanta guerra”.
A estratégia para o período de preparação para as Olimpíadas, então, é continuar impulsionando essas questões para o maior número de espaços possível. A equipe do O Cidadão planejou não apenas usar seu próprio jornal impresso, site e plataformas de mídia social, mas também apresentar matérias para a grande mídia e participar de debates, entrevistas e protestos de rua, fazendo uso de todos os canais disponíveis. Dessa forma, a mídia comunitária formada por eles serve como uma fonte confiável de informações dentro da favela, ao mesmo tempo em que engaja ativamente as pessoas fora da favela.
Para mais informações visite o site do O Cidadão ou siga no Facebook e Twitter.
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