Carlos Nuzman, presidente do Comitê de Organização para as Olimpíadas Rio 2016, comentou no ano passado o fato de que “O Comitê Rio 2016 também está intensificando o relacionamento com a sociedade civil “. Ele continua, dizendo: “O legado dos Jogos será enorme para o Rio e para o Brasil… Nenhuma cidade-sede terá tido tamanho benefício de transformação como o Rio”.
Os impactos sociais das Olimpíadas 2016 estão, de fato, se intensificando; porém, dizer que isso é bom para os moradores do Rio é algo, no mínimo, questionável.
O Campo Olímpico de Golfe é o microcosmo perfeito a partir do qual é possível identificar muito do que está errado no desenvolvimento infraestrutural das Olimpíadas do Rio. Esse caso ilustra como são profundamente problemáticas as preparações no Rio para os Jogos de 2016.
O local escolhido para o campo de golfe ocupará um milhão de metros quadrados de Mata Atlântica, na fronteira com a Lagoa Marapendi, na Barra da Tijuca. Uma mistura de frágeis mangues, pântanos e bancos de areia; a área contém cerca de 300 espécies identificadas, desde garças até capivaras e bichos preguiça, incluindo espécies em risco de extinção, tais como o jacaré-de-papo-amarelo, o lagartinho-branco-da-paria e o falcão peregrino.
Com o intuito de obter acesso à parcela de terra do campo de golfe, a Câmara do Rio aprovou a Lei Complementar 125 em dezembro de 2012, durante uma sessão de emergência logo antes do recesso de fim de ano.
A aprovação da Lei Complementar 125 trouxe à tona graves preocupações legais. Com o objetivo de liberar a terra para o campo, as normas legislativas e democráticas e os processos de participação foram minados ou diretamente violados.
A prefeitura ignorou um conjunto de leis, desde a Lei Federal da Mata Atlântica e o Código Florestal até leis municipais que classificam a maior parte da terra como Área de Proteção Ambiental (APA), sujeitos às rígidas diretrizes sustentáveis do uso da terra. A parte remanescente da parcela usada para a construção do campo era parte da Reserva Municipal Marapendi, uma área em “proteção permanente”, teoricamente fora dos limites de todo e qualquer desenvolvimento.
Dadas essas proteções, a lei aprovada em dezembro de 2012 é extrema em suas cláusulas. Primeiramente, ela autoriza a construção do campo de golfe dentro das fronteiras da Reserva Marapendi, usando a justificativa de que a construção de um campo de golfe se qualifica como uso sustentável da terra. Além disso, a lei redesenha as fronteiras da Reserva Municipal Marapendi com o intuito de cortar completamente a seção que se enquadra no local do campo de golfe. A lei, de fato, anula o status de área em “proteção permanente”, entregando este pedaço de terra pública a um empreendedor privado, RJZ Cyrela.
A disposição culminante da cláusula da Lei Complementar 125 concede ao empreendedor Cyrella plenos direitos de construir 23 novos condomínios luxuosos de 22 andares no local. Além de claramente falhar ao não usar os preceitos sustentáveis–o que é cobrado de qualquer construção que esteja dentro dos limites da APA, ou seja, que busca “proteger a biodiversidade e assegurar o uso sustentável dos recursos naturais”–a cláusula também está em contradição com todas as regulações prévias de zoneamento, que nivelavam a construção de residências individuais e selecionaram aquelas de apenas seis andares.
Cyrella tem agora direito de construir no que é considerada uma das regiões mais bem avaliadas em termos imobiliários do Rio de Janeiro. Apartamentos em um desses novos arranha-céus se encontram no mercado por mais de R$16 milhões cada.
Não houveram estudos de impacto ambiental no local, nem um programa de gerenciamento ambiental foi formulado–e ambos são requisitos para uma licença poder ser aprovada. Não se escutou o público a respeito da Lei Complementar 125, o que também se caracteriza como violação à lei.
O desenvolvimento atual na Barra da Tijuca se deve muito às ideias de Lúcio Costa sobre como uma “utopia moderna” deveria ser: elegantes arranha-céus, shoppings e largas avenidas de alta velocidade. A agência imobiliária RVM se gaba de que a Barra está emergindo como o parque de diversões dos mais influentes e modernos do Rio.
Em 2010, de acordo com o Lincoln Institute of Land Policy, a Barra da Tijuca mantinha apenas 2,1% da totalidade dos lares na Grande Rio, mas concentrava 8,1% da renda agregada das famílias. Em comparação, as quatro maiores favelas mantinham 2.5% da totalidade dos lares, mas apenas 1% da renda agregada.
O desenvolvimento concentrado na região da Barra cria ceticismo entre os especialistas. “A Copa do Mundo e as Olimpíadas deram à prefeitura a desculpa para diminuir quase totalmente qualquer aspecto de um plano de urbanização responsável no Rio de Janeiro”, argumenta o Professor Fernando Walcacer, antigo Procurador da Cidade para o Urbanismo e Meio Ambiente. “Nós pagaremos caro por isso”.
Marcelo Mello, especialista em gestão e biodiversidade, declara que “as autoridades políticas e os interesses empresariais no Rio de Janeiro vêm se unindo para ganhar dinheiro com o desenvolvimento dos últimos grandes espaços verdes da cidade”.
Outros são mais otimistas. Em um artigo no site OlympicTalk, da NBC, Nick Zaccardi escreve: “Os próximos dois anos, e nos últimos cinco anos, não são um fardo, mas uma oportunidade para a cidade provar o seu vigor como um termômetro para expansão das Olimpíadas para novas áreas”.
Esse tipo de concepção que vê os “mega-eventos como métrica para o progresso” é ingênua, na melhor das hipóteses, e dolorosa, na pior delas. Ela legitima que os fins justificam os meios quando se tratam das preparações do governo para mega-eventos como as Olimpíadas e Copa do Mundo, omitindo o dano causado pela política irresponsável.
De acordo com Andrea Redondo, uma arquiteta e ex-presidente da Secretaria de Preservação do Patrimônio Cultural da Cidade, “O discurso do Governo é muito sedutor, mas o projeto é só uma ferramenta imobiliária em sua essência”.
A gentrificação e os crescentes custos de vida continuam a empurrar moradores de baixa-renda para a periferia urbana. As famílias que vivem por gerações em harmonia perto da floresta urbana de Pedra Branca estão lutando contra a remoção.
Enquanto isso, o site do Cyrela Riserva Golfe se gaba a respeito do conforto e comodidades nos condomínios perto do campo de golfe: mais de cinco vagas de garagem por apartamento. Um prédio inclui uma cobertura de 1308m2, servida por seis elevadores, dois quartos para empregada, e um quarto maior para governanta. O empreendimento precisa ser refletido sobre a ótica da especulação imobiliária global: os mais recentes arranha-céus em Nova York são, também, em prédios altos e de extremo luxo, muitos vendidos para compradores anônimos, possivelmente servindo como oportunidades de lavagem de dinheiro.
Os apartamentos destes arranha-céus são vendidos como “O endereço mais exclusivo do Rio de Janeiro”. As promessas do site da Cyrela são “aqui, você e a natureza vivem juntos em perfeita harmonia”.
As casas em favelas na média ocupam menos que 80m2.
Esse projeto consolida a priorização do governo aos interesses dos negócios privados em detrimento dos interesses dos cidadãos do Rio e reforça os fatores que desencadeiam a desigualdade social e econômica. O projeto nos manda uma forte mensagem, a de que um acordo imobiliário lucrativo vale mais do que a saúde do processo democrático da cidade, do que as regulações ambientais conseguidas a duras penas, e o direito da população à participação legislativa.
As implicações sociais e políticas desse projeto vão muito além das preocupações com os atrasos na construção e as conseqüências ambientais, ainda que estas sejam especialmente importantes. Apesar do projeto do campo de golfe não ser, certamente, o primeiro caso de decisões regressivas de desenvolvimento que põem o meio-ambiente em risco no Rio, ele representa uma combinação particularmente danosa de violações.
A ONG Sociedade do Bem, focada em defender o “bem comum”, está litigando um processo público contra o governo municipal. O caso está parado, e, de acordo com seu advogado, Jean Carlos Novaes, as chances de que eles abandonem o projeto do campo de golfe são “muito remotas”.
Ao contrário de sua proposta intencional de progresso, o discurso de transformação de Nuzman, Presidente das Olimpíadas Rio 2016, soa muito como um aviso. De fato, uma continuação de decisões de desenvolvimento vindas de cima para baixo, temperada com irregularidades judiciais, violações de licenciamento e a total ausência de participação pública, exemplificada pelo caso do campo de golfe Olímpico, vão apenas consolidar a reputação do Rio como uma cidade governada por e para os ricos, em detrimento de todo o resto da população.