O Complexo da Maré–um grupo de 16 comunidades localizadas na Zona Norte do Rio com mais de 130.000 habitantes e inúmeras organizações da sociedade civil–foi a 39a favela do Rio de Janeiro a passar pelo processo de pacificação. Antes da operação ser conduzida pelo exército e pela Polícia Militar, as autoridades passaram meses negociando e desenvolvendo estratégias, um indicativo das dificuldades e riscos envolvidos neste tipo de operação. A Maré é reconhecida como uma das principais sedes do crime na cidade. A comunidade é o lar de três diferentes facções de droga (assim como de milícias) que controlam várias áreas da favela. Esta estrutura de governança local, altamente complexa, se traduz em intensas disputas pelo território e confronto entre traficantes de droga e a polícia, aumentando o nível de violência e ameaçando a população local.
A “Experiência” de Pacificação na Maré
De acordo com o discurso inicial do Estado a respeito da ocupação da Maré, a pacificação do complexo deveria marcar uma nova e melhor abordagem da polícia e a ruptura com a mentalidade de confronto que marcou ocupações anteriores em outras favelas. Porém, o que realmente aconteceu foi o oposto. Em 30 de maio de 2014, entraram na comunidade 1180 agentes de diferentes unidades da Polícia Militar (incluindo membros do BOPE e da unidade especial do Choque), assim como 250 fuzileiros navais–com o apoio de 21 tanques blindados da marinha e quatro helicópteros. De acordo com a Secretaria Estadual de Segurança Pública do Rio (SESEG), a operação foi concluída em apenas 15 minutos.
Nos primeiros quinze dias da “pacificação simbólica” e ocupação, 16 pessoas foram mortas, e 160 presas. Desde então, existem inúmeros relatos de moradores a respeito de revistas ilegais conduzidas por soldados, assim como de uso excessivo da força e abuso de poder. Muitos moradores veem a ocupação militar como uma estratégia para controlar a comunidade e promover uma melhora “superficial” nos níveis de segurança da cidade à custa de suas liberdades e direitos.
Para Rachel Willadino, psicóloga social e diretora da divisão de direitos humanos do Observatório de Favelas, a ocupação extensiva da Maré por forças militares (a primeira Unidade de Polícia Pacificadora é prevista para julho) representa o inverso do progresso e apenas reforça o impulso do governo de intervenção militar e confrontação na comunidade. Em uma entrevista com O Estadão em março de 2014, Rachel disse que “tivemos uma articulação local importante durante a discussão da UPP, que reconhecia os moradores como protagonistas e chamava atenção para uma política de Estado que vá além da operação policial. Mas agora os canais de comunicação foram interrompidos”.
Desde alguns meses antes da ocupação inicial e até hoje, representantes do Observatório de Favelas e da Redes de Desenvolvimento da Maré estiveram ativamente engajados no debate sobre pacificação e se posicionaram à frente de iniciativas visando a responsabilização por parte do Estado, a denúncia do modelo militar de ocupação e de violações do Estado, assim como a abertura de espaços para promoção de contra-narrativas de lutas comunitárias e trajetórias locais de esperança.
O Trabalho e a Presença da Redes e do Observatório na Comunidade
Redes de Desenvolvimento da Maré é uma organização comunitária que promove mudanças tangíveis, na prática, através da participação ativa de cidadãos em ações de advocacy e desenvolvimento. A ONG oferece oportunidades de alta qualidade em educação e trabalho para a classe trabalhadora e de baixa escolaridade que reside no complexo de favelas da Maré. Parceiro da Redes, o Observatório de Favelas é uma instituição da sociedade civil que conduz pesquisa, capacitações, consultoria e ações públicas com o objetivo de produzir conhecimento e propostas para questões relacionadas à favela e ao fenômeno urbano. O Observatório impulsiona uma agenda de expansão de direitos dos cidadãos baseada na redefinição das favelas no contexto das políticas públicas, do desenvolvimento e da segurança pública. Tanto a Redes quanto o Observatório são reconhecidos e respeitados como organizações eficazes que batalham pela justiça social, pelo desenvolvimento e pela representação de moradores de favelas do Rio, e ambas são localizadas na Maré.
O casal criado na Maré, Eliana e Jailson Sousa Silva, fundaram a Redes e o Observatório, respectivamente. Ambos são respeitados professores universitários e Fellows da Ashoka; que possuem uma extensa relação de publicações e receberam vários prêmios. Além disso, são educadores e ativistas na prática, cuja experiência de crescer na Maré–assim como a crença máxima no poder de colaboração e ação das pessoas na luta por mudanças–moldou o compromisso de trabalharem em prol da melhoria da qualidade de vida dos moradores.
Os projetos da Redes e do Observatório abrangem uma ampla variedade de temas e são beneficiados pelo apoio de vários parceiros, desde associações comunitárias locais a escolas públicas, organizações públicas e privadas, e indivíduos. Além disso, as organizações gozam de uma rede de infraestrutura para conduzir suas atividades, incluindo duas bibliotecas, centro de artes, laboratórios de informática e espaços culturais.
Iniciativas para Promover a Agenda de Segurança Pública
Graças ao trabalho, às relações e à reputação que a Redes e o Observatório construíram ao longo dos anos, políticas públicas opressoras e impostas de cima pra baixo–especialmente as relacionadas à segurança pública–enfrentam uma forte e ativa força de resistência: “A Maré não é uma receptora passiva deste modelo de segurança pública… A comunidade possui uma sociedade civil bem organizada que trabalha continuamente para influenciar e promover segurança e serviços públicos”.
Ao fundar instituições cujos funcionários são moradores e que são orientadas a criar grupos de cidadãos ativos, Eliana e Jailson–com o suporte de suas equipes compostas por mais de 170 pessoas–criaram vários mecanismos de participação para pleitear demandas de segurança pública. Jailson explica:
“A questão do direito à vida e à segurança pública é uma demanda importante para nós e entendemos que o processo de regulação do espaço da favela é estratégico para garantir estes direitos. Portanto, no âmbito da Maré, nossas organizações têm se esforçado para construir um diálogo com outras organizações locais, assim como agências estatais, com o objetivo de produzir propostas inovadoras no campo da segurança pública, pautadas na defesa da democracia e dos direitos humanos.”
Esse trabalho é feito através de seminários, conferências, projetos de pesquisa extensiva, publicações, e fóruns públicos que servem para expandir a visibilidade e unir os membros da comunidade na busca por soluções para questões de segurança pública que impactam o seu cotidiano. O projeto A Maré que Queremos é um exemplo de plataforma onde membros da comunidade se reúnem para discutir e pleitear mudanças na política pública e melhorias em várias áreas como saúde, educação, artes e cultura, esporte e lazer, infraestrutura, trabalho e geração de renda, transporte público, sustentabilidade ambiental, assim como segurança pública. Em 2010, representantes das 16 favelas da Maré organizaram reuniões e eventos para construir em conjunto uma agenda comum de demandas e interesses para o desenvolvimento do território. Esses esforços resultaram na elaboração de um amplo documento que relaciona estas demandas para as autoridades.
Desde a ocupação da Maré, a Redes e o Observatório utilizaram demandas articuladas pela agenda A Maré que Queremos para repetidamente denunciar as ações do exército na Maré e os altos níveis de violência aos quais os moradores têm sido forçados a vivenciar. Os moradores da Maré não somente têm que aguentar as frequentes disputas por território e conflitos armados deflagrados em suas comunidades entre membros do crime organizado e forças de segurança pública, como também estão sujeitos ao tratamento injusto e desrespeitoso por parte dos soldados. Em uma entrevista para a Agência Brasil em novembro de 2014, Pedro Francisco, presidente da Associação de Moradores do Conjunto Esperança, disse: “O exército já está em nossa comunidade há sete semanas e nós perdemos a nossa privacidade. Nós temos portões violados, cadeados quebrados e projetos paralisados porque a nossa juventude não pode circular, professores interrompem seus projetos e idosos não possuem mais um horário determinado para fazer suas atividades”.
Em abril de 2014, apenas alguns dias depois do exército ocupar a comunidade, o Secretário de Segurança Pública José Mariano Beltrame participou de uma audiência pública na Maré organizada pela Redes e pelo Observatório (ao lado de outras organizações da sociedade civil) para discutir o processo de pacificação e ouvir as demandas das comunidades. Apesar de algumas promessas feitas naquele momento ainda não terem sido atendidas, a presença do secretário na comunidade destaca a força da Maré para estabelecer plataformas de participação de cidadãos que possam alcançar e impactar os principais atores que definem a agenda de desenvolvimento social e econômico no Estado.
Jailson falou sobre a importância deste relatório para as organizações e para a comunidade:
“Nestes muitos anos de atividade, nossas organizações se tornaram um importante ponto de referência para outras organizações que trabalham nas favelas e periferias do Rio. Da mesma forma, nós construímos um diálogo respeitável e privilegiado com atores municipais, estaduais e federais que nos permite influenciar propostas, pleitear o respeito aos direitos dos cidadãos e fortalecer a sua mobilização.”
Uma Nova Luz na Segurança Pública
O que a Redes e o Observatório buscam avançar através de sua agenda de desenvolvimento para a segurança nas favelas é uma nova compreensão e perspectiva da segurança pública. Desde a redemocratização do Brasil nos anos 80, a estrutura da segurança pública do país é dominada pelas ideias de combate e serviço público. De um lado, o papel da polícia é “combater inimigos internos” e ocupar “territórios hostis” que “criam” criminosos. Ao mesmo tempo, segurança pública também é vista como um serviço público a ser prestado a todos os cidadãos. Um dos resultados deste “casamento forçado” entre duas bem distintas linhas de método operacional é a oferta da segurança para algumas parcelas da população em detrimento de outras e a criminalização da pobreza. De acordo com Claudio Souza Neto, professor de Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense (UFF), a ambiguidade do artigo sobre segurança pública na Constituição Federal de 1988 permite a justificação tanto de políticas democráticas quanto autoritárias por parte da polícia. Isto talvez ajude a explicar porque a polícia brasileira é uma das mais letais no mundo, matando em média 5 pessoas por dia de acordo com o estudo produzido em 2012 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Neste contexto paradoxal da segurança pública, a Redes e o Observatório mobilizam a criação de uma estrutura de segurança que vai além das tradicionais instituições de direito e justiça, como o sistema de justiça criminal, as prisões e a polícia. Ao investir na promoção de plataformas para a participação de cidadãos que apoiam a ampliação e o empoderamento das vozes comunitárias na arena da segurança pública, as organizações pleiteiam a necessidade de trazer novos atores e realidades para democratizar a formulação e operacionalização de políticas de segurança pública. Elas buscam plataformas através das quais processos possam ser continuamente discutidos e qualificados com a participação ativa da sociedade civil.
Uma crítica comum à abordagem do Estado em projetos de desenvolvimento em favelas é a visão destas comunidades como “casos de polícia”. Ou seja, apesar das diferentes demandas que cada favela possui tal como um território único e singular, a primeira resposta do Estado é sempre investir em mais polícia e “segurança”. É um método padrão que descreve bem como o governo percebe a favela. A Maré precisa de mais escolas? Encaminhe mais soldados e isso deve dar conta do problema.
O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) definiu as principais ameaças à segurança humana enfrentadas pelas pessoas em diferentes contextos de suas vidas. Dentre as ameaças estão a segurança econômica, a segurança alimentar, a segurança sanitária, a segurança ambiental, a segurança pessoal, a segurança comunitária e a segurança política. No contexto de assentamentos urbanos informais e comunidades de baixa renda onde a ausência de necessidades básicas e o acesso a direitos básicos estão intimamente interligados ao crime e à violência, como será possível prover segurança pessoal e comunitária através de intervenções públicas sem que se ofereçam simultaneamente outras formas de segurança? Conforme disse Jailson Silva em uma palestra na Universidade de Stanford em 2014, “é necessário haver mobilidade, mas não somente o direito de ir e vir. A criação de um novo paradigma requer muito mais. Mobilidade também está relacionada a economia, educação e trabalho”.
Acontecimentos Recentes, Conclusões e Direções Futuras
O mês de fevereiro deste ano foi marcado por uma série de eventos violentos que resultaram em mortes na Maré. No dia 12 de fevereiro, a Polícia Militar alvejou sem qualquer aviso um veículo com cinco passageiros, atingindo um jovem de 29 anos que ficou em estado grave. No dia 20 de fevereiro, um pedreiro, supostamente confundido com um traficante de drogas, foi morto pela força de ocupação. Um dia depois, um veículo de transporte público foi alvo de novos disparos do exército e cinco pessoas foram feridas. No dia 23 de fevereiro, uma criança de 11 anos foi atingida nas costas por um tiro de um policial que, após o acontecido, não prestou atendimento imediato à vítima.
Em consequência a estes ataques repressivos, indiscriminados e deliberados por parte das forças de segurança do Estado, moradores da Maré se engajaram em mais uma manifestação contra a polícia pacificadora e a militarização das favelas no Rio. Mas desta vez a manifestação tornou-se sangrenta. Em 24 de fevereiro, um protesto contra a violência policial em favelas aconteceu na entrada da comunidade. Fotografias do evento circularam nas mídias sociais mostrando policiais atirando com fuzis e jogando gás lacrimogêneo em moradores que, em troca, atiraram pedras e pedaços de madeira. O que começou como uma manifestação pacífica, com moradores carregando cartazes com mensagens de esperança e pedidos de justiça social como “Chega de genocídio contra negros e favelas”, transformou-se em um campo de batalha. Porém, apenas uma das partes atirava. Duas pessoas foram mortas, e três feridas, como consequência do evento.
Para a Redes e o Observatório, estes incidentes servem para afirmar o compromisso da comunidade com a resistência pacífica e contínua em busca de seus direitos e autonomia, em meio à coerção, repressão e militarização do Estado. A Maré representa um caso único no processo de pacificação do Rio, pois as duas instituições, aliadas a dezenas de associações, grupos de mídia comunitária, lideram uma sociedade civil organizada que há décadas está ativamente envolvida em articular lutas por direitos humanos, demandas sociais e econômicas e o desenvolvimento de políticas de justiça social. Isto é particularmente importante no caso da esperada transição da ocupação para a UPP em julho. Jailson disse:
“Nós estamos nos mobilizando para criar novas estratégias na arena da segurança na Maré, especialmente em relação ao processo de implementação das UPPs que deve iniciar neste trimestre. Nós procuramos contribuir para a criação de um novo tipo de intervenção que considera os moradores e as organizações locais como agentes fundamentais do processo.”
Veriene Melo é doutoranda e Lemann Fellow na Escola de Graduação de Educação e Estudos da Informação na Universidade da Califórnia, Los Angeles. Ela é também pesquisadora assistente no Programa de Pobreza e Governança no Centro de Democracia, Desenvolvimento e Estado de Direito da Universidade de Stanford, onde trabalha em projetos sobre educação, pacificação e violência policial nas favelas do Rio de Janeiro.