O caso de Amarildo de Souza, o pedreiro que foi torturado até a morte pela Polícia Militar na Rocinha em 2013, gerou ondas de revolta ao redor do Brasil e do mundo. Sua morte se tornou um símbolo da repressão policial em um país onde milhares são mortos pela polícia a cada ano.
O título do documentário de Rodrigo Mac Niven a respeito de Amarildo, O Estopim, reflete isto. De diversas maneiras, a história de Amarildo e a campanha por justiça depois que detalhes do caso vieram a tona, foi o “estopim” na mudança de atitude diante do processo de pacificação implementado nas favelas do Rio desde 2008.
A estréia de O Estopim ocorreu no Festival de Cinema do Rio em 2014. Durante uma apresentação do filme realizado pelo Viva Favela, Mac Niven e seu diretor de fotografia Neto de Oliveira falaram a respeito do processo de criação do filme.
“O que aconteceu durante a tortura ninguém sabe, exceto os próprios torturadores.” – Rodrigo Mac Niven
Aqueles que acompanharam a campanha “Cadê o Amarildo?” estão familiarizados com as fotos de Amarildo, compartilhadas amplamente pela mídia. Mas além delas, existem poucos registros concretos de sua vida. Consequentemente, O Espotim mistura sequências de documentário com sequências ficcionais, nas quais Amarildo é interpretado por Bruno Rodrigues.
Isso dito, o foco principal de O Estopim é o amigo de Amarildo, Duda, que reconta sua própria experiência de intimidação policial e violência na Rocinha. “Cresci apanhando da policia”, ele diz. O foco em Duda surgiu do desejo do diretor de não explorar a viúva de Amarildo, Bete, e sua família, que já haviam se submetido a intensa atenção da mídia. Mas, como Mac Niven esclarece: “Obviamente a família tinha que estar ali, presente. E a gente pega depoimento da Bete. Foi uma escolha de mostrar ali a família através da luta”. No filme, Bete explica sua decisão de falar quando o marido desapareceu: “Aí falei: peraí, vou começar a abrir minha boca”.
Mac Niven faz uso do pouco que sabe a respeito de Amarildo, incluindo sua paixão por pescaria e sua força física, a qual explica seu apelido “Boi”. Mas ele geralmente mostra de forma distante, filmando até através de drones. “Quando o Amarildo aparece na história ele está sempre meio distante, a gente não vê bem o rosto dele”, disse o diretor. “Dá um pouco essa sensação de ‘quem é essa pessoa?’ Mas na tortura ele aparece para o mundo. Na tortura a gente traz a câmera na cara dele”. O resultado é a brutal e viva sequência de tortura que quase inclui o público na cena.
O envolvimento do público era importante para Mac Niven, que tinha a intenção de que o filme fosse mais do que a história de um homem, que fosse sobre a repressão policial que afeta todos os brasileiros. “No Estado militarizado o inimigo é você”, ele disse. O filme mostra casos de repressão fora das favelas, como durante a Ditadura Militar e, mais recentemente, durante os protestos de 2013. Mas o público é lembrado de que a violência policial em outros contextos como dos protestos de 2013 recebe muito mais atenção da mídia do que as realizadas diariamente pelos policiais nas favelas.
O Estopim questiona as tentativas da mídia e de políticos de rotular Amarildo como um traficante de drogas depois de seu desaparecimento, um tipo de “criminalização da vítima” que ajuda a justificar a violência policial. “A figura do traficante justifica você pegar o cara dentro da sua casa, levar para o contêiner da UPP, torturar, matar, esconder, mentir, subornar testemunha e fazer o diabo a quatro para que isso seja ocultado”, disse Mac Niven.
Embora pontos altos do filme mostrem a força da família de Amarildo, amigos, apoiadores e suas campanhas por justiça, O Estopim é difícil de assistir. A seriedade do tema é refletido cinematograficamente. Neto de Oliveira, diretor de fotografia, comentou sobre as imagens “dessaturadas”. “A gente não queria um filme colorido”, ele disse, adicionando que o tempo nublado e chuvoso da Rocinha durante as filmagens os ajudaram a alcançar isto.
Mac Niven explicou que ele buscou “mostrar como a história de Amarildo é mais do que somente uma história sobre Amarildo” e a entrevista com Bete corrobora para isto, mencionando os muitos outros “Amarildos” que são mortos no Brasil a cada ano. Mas o filme nunca esquece da pessoa que foi o “estopim” para ele: o pedreiro, o Boi, o pai, o morador de favela. Nas palavras de Duda: “Chegaram a fazer uma maldade com uma pessoa tão boa”.
Vinte e cinco oficiais da Polícia Militar foram descobertos envolvidos no desaparecimento e morte de Amarildo. Quatro deles encontram-se atualmente presos, incluindo o ex-comandante da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Rocinha, Major Edson Santos. O corpo de Amarildo nunca foi encontrado.