Hoje, 20 de novembro, é o Dia da Consciência Negra, um dia para celebrar a história da resistência negra frente à opressão. Enquanto o dia 13 de maio marca a adoção da “Lei Áurea“, que aboliu a escravidão com a assinatura da então regente imperial Princesa Isabel, o dia 20 de novembro comemora a morte de Zumbi, o último líder do Quilombo de Palmares. Palmares era um quilombo que resistiu as campanhas militares portuguesas e holandesas durante quase todo o século 17. Embora os movimentos sociais negros têm comemorado o dia desde a década de 70, a data não foi oficialmente adicionada ao calendário escolar público até 2003, e uma lei de 2011, assinado pela Presidente Dilma Rousseff criou o Dia da Consciência Negra, um feriado opcional a nível municipal. Hoje Zumbi é considerado como uma figura nacional e os brasileiros de todas as origens raciais celebram a história da democracia e da resistência que ele encarna através de marchas, ocupações, festivais de cinema, shows de música, seminários e festas durante todo o mês de novembro.
Falar sobre a escravidão entorno da celebração da Consciência Negra em 20 de novembro não é necessariamente um tabu, mas isso pode reforçar as narrativas que pintam a experiência negra no Brasil, como de costume sobre a escravidão. No entanto, no geral, inclusive entre os cariocas, raramente os brasileiros procuram enfrentar sua história de escravidão e racismo. Os mitos de uma sociedade colonial escravista benigna baseada em relações benevolentes entre senhores e escravizados, e do conceito de uma democracia racial ao longo do século 20 predicada em uma igualdade racial após à abolição (porque não houve no Brasil, como houve na escravidão nos Estados Unidos, o racismo e segregação institucionalizado) tornou o racismo um fato histórico que raramente recebe reflexão nacional.
Com os EUA como paradigma da escravidão e do racismo no hemisfério ocidental, pouca atenção tem sido dada, até mesmo, para o comércio de escravizados no Brasil, apesar de sua magnitude. O Brasil importou e escravizou quase 5 milhões de africanos, mais de 10 vezes o número dos que chegaram nos EUA e Canadá, e quase metade dos mais de 10 milhões de pessoas que foram trazidas para o hemisfério ocidental como escravizados. Dois milhões de africanos escravizados chegaram às Américas somente no porto de Rio.
Quando falamos sobre as instituições e mercados de grande escala, como o do comércio transatlântico de escravizados, é fácil esquecer os indivíduos e os pequenos atos que os compunham e sustentavam. Um mapa interativo produzido por Slate, baseado em arquivos de informações dos navios negreiros compilado pelo Voyages-Banco de Dados do Tráfico Transatlântico de Escravos, mostra tanto a incrível escala, quanto o minucioso cotidiano do comércio.
O mapa usa a técnica time-lapse para mostrar o comércio entre 1545 e 1860, o que representa, como a matéria diz de forma sucinta e intensa, a transferência em “315 anos. 20,528 viagens. Milhões de vidas.” Cada ponto é uma viagem e o tamanho do ponto representa o número de pessoas escravizadas obrigadas a suportar a travessia do Atlântico. Pausando o mapa e clicando em um ponto, o leitor pode saber detalhes de cada viagem em particular–a bandeira da tripulação e o Estado de destino, a rota, o número de viagens que o navio fez, o número de pessoas que desembarcaram vindas da África, e o número de pessoas escravizadas que sobreviveram à viagem para as Américas.
Você também pode observar as tendências geopolíticas e nacionais relacionadas com o comércio de escravizados. Navios portugueses e espanhóis dominaram os primeiros anos do comércio, com centenas de navios indo para portos em todo o Caribe e Cartagena, na atual Colômbia. Dado que os colonizadores europeus–principalmente holandeses, franceses, ingleses, espanhois e portugueses–disputavam o domínio de setores como açúcar, algodão e café, suas fortunas estavam cada vez mais ligadas à sua capacidade de monopolizar o comércio de escravizados.
Pequenos detalhes como os navios indo para a Europa servem como um lembrete de que a escravidão não era apenas uma instituição das Américas, mas também dos estados e impérios europeus. A natureza desses impérios até mesmo viu escravizados sendo enviados da América de volta para a África. No Império Português, o desterro para outras colônias era um castigo comum. A Proclamação Real de 1749 proibiu os negros e mulatos livres de se vestirem como os brancos e sugeriu o exílio para São Tomé como um castigo adequado para os reincidentes.[1]
O Império Português na África, juntamente com os favoráveis ventos alísios, tornou a importação de africanos escravizados para o Brasil relativamente barata. Decretos durante todo o período colonial imploraram aos senhores de escravizados para alimentarem melhor seus escravizados ou, pelo menos, permitir-lhes lotes de terra para cultivar seu próprio alimento, dado que muitos proprietários fizeram o cálculo de que importar pessoas novas e mais saudáveis revelava-se mais barato do que cuidarem de seus escravizados.[2]
Um refrão comum do século 17 no Brasil, “Sem açúcar, não há Brasil; sem a escravidão, não há açúcar; sem Angola, não há escravos“, fala das arraigadas ligações iniciais políticas, econômicas e culturais entre o Brasil e Angola. No entanto, as rotas mudaram, dado que a produção de açúcar no Nordeste foi substituída pela garimpagem e a produção de café no Sul, tornando o Rio de Janeiro, em vez de Salvador, o porto brasileiro através do qual a maioria dos africanos entraram no país, e as vezes mudando o comércio para a Costa ocidental da África, para as atuais Benin e Nigéria.
Há uma queda gritante no número de navios que vão para a ilha de Hispaniola após o fim da Revolução Haitiana em 1804. Como a potência europeia diminuiu no hemisfério seguindo os movimentos de independência do final do século 18 e início do 19, navios do Brasil dominaram o comércio. Este foi especialmente o caso após as tentativas da Inglaterra para abolir o comércio transatlântico. Embora o Brasil aprovou leis que terminavam com a importação de africanos escravizados, estas eram apenas “para Inglês ver“, com mais de um milhão de pessoas importadas entre 1826 e 1850, durante o auge da campanha ideológica e naval da Inglaterra contra o comércio.
A importância do comércio de escravizados e a escravidão está bem viva entre músicos e ativistas negros no Brasil. A canção de 1994 do O Rappa “Todo camburão tem um pouco navio negreiro” denuncia as táticas de perfil racial da polícia. Da mesma forma, a letra que o Emicida lançou recentemente na música “Boa Esperança” liga simbolicamente favelas e navios negreiros, enquanto o vídeo mostra uma revolta moderna. Assim como o tráfico de escravizados foi gerido por uma ideologia perversa que tornou as vidas negras dispensáveis e descartáveis, jovens negros no Rio são rotineiramente as vítimas de violência policial, formando a maioria dos 1.519 homicídios cometidos por policiais nos últimos cinco anos, como documentado em um recente relatório da Anistia Internacional. Raull Santiago do Coletivo Papo Reto tem frequentemente se referido as favelas alternativamente como senzalas, devido à relação de exploração entre a cidade propriamente dita e as favelas, e como quilombos, devido à sua ligação com uma longa história de lutas territoriais emancipatórias.
[1], [2] Conrad, Robert Edgard. Children of God’s Fire: A Documentary History of Black Slavery in Brazil. Princeton: Princeton University Press, 1983.
Stephanie Reist está pleiteando um Mestrado em Políticas Públicas e um doutorado em Estudos Latino-Americanos na Universidade de Duke, EUA. No Rio, ela tem trabalhado como bolsista Felsman no Projeto Raízes Locais, um projeto comunitário gerido pela Associação Terra dos Homens, em Mangueirinha, Duque de Caxias. Sua pesquisa analisa a dinâmica centro-periferia, pertencimento, cidadania e direitos sobre a terra.