Por muito tempo a favela esteve completamente fora dos debates que movimentaram a cidade. Considerada território de marginais e cercada de violência e miséria, seus moradores carregavam pela vida o peso do estigma de morar em determinada área da cidade. Uma tradução em um dicionário bem conhecido chega a definir favela como um conjunto de casebres toscos e desordenados, onde vive gente pobre.
Havia um esforço considerável para manter os moradores de favela, na favela. Já que seus valores e formas de organização não eram reconhecidos ou valorizados em um contexto elitista. Seu valor e aceitação, estava relacionado ao tamanho de sua força de trabalho. Se trabalhava bem, tornava-se aceitável e digno de ser domesticado a partir de padrões aceitáveis. Tom da voz, forma de andar e sentar, regras de etiqueta à mesa, são detalhes que até hoje, o favelado precisa aprender para ser aceito em determinados lugares.
Faz pouco tempo que isso mudou e a favela passou a ser o centro das atenções em determinados espaços. Sua cultura passou a ser consumida, reconhecida e até apropriada por alguns. A favela virou objeto de pesquisa e pessoas do mundo inteiro vieram conhecer sua história, sua maneira de organização, seus costumes e valores. Transformaram a favela, que era sinônimo de violência, exclusão e marginalidade, em um produto vendável e aceitável. Ficou cult usar havaianas, que era o chinelo mais barato e resistente, utilizado principalmente por pessoas pobres. O funk foi modificado, e agora aceitável e até indispensável nas festas dos mais ricos e elegantes da cidade. A favela ganhou preço, mas não perdeu o seu valor.
A multiplicidade de pessoas, trajetórias, e histórias que circulam na favela, faz com que seja impossível dizer o que a favela é ou o que a favela não é. O fato é que com todos esses olhares direcionados para as favelas e todo esse apetite de definir ou descrever o que acontece em cada beco, foram desconstruindo alguns estigmas e construindo outros. É como se ler uma descrição de favela seja perfeitamente coerente para uma pessoa, que se reconhece e se identifica com as percepções descritas pelo autor, mas uma outra pessoa ao ler o mesmo texto não se identifique em nenhum dos padrões textualizados ali.
A favela não deve ser tratada como uma coisa exótica, fora da realidade ou digna de pena. Os moradores de favela carregam uma bagagem de força e energia para transformar realidades. Costumo dizer que quase todo morador de favela é um ativista, porque a resistência precede ao ativismo e o contexto de favela por si só é marcado de luta e resistência.
Favela, é o nome dado para o conjunto de construções irregulares, do ponto de vista do Estado, mas é também o lugar onde os moradores se organizam de maneira autônoma já que seus direitos básicos lhes foram negados por um planejamento de cidade que não contempla os mais pobres.
Estigmatizar as favelas e os territórios populares pode causar danos graves, a mídia faz isso todos os dias, quando diz que determinada área é perigosa ou quando cria uma atmosfera de medo em alguma comunidade. O comércio perde, porque ninguém quer ir para uma área onde pode correr risco de vida.
A favela não é por natureza violenta ou perigosa, a polícia é, ou pelo menos, está.
Daiene Mendes tem 26 anos, é moradora da Nova Brasilia, no Complexo do Alemão, estagiária de comunicação na Anistia Internacional e criadora do projeto FaveLÊ.