Jacarezinho, favela da Zona Norte carioca, surgiu no contexto da industrialização da década de 20, com a grande oferta de empregos, principal responsável pelo processo de popularização do local. Não diferente de outras favelas, o Jacarezinho sofreu ameaças de remoção, mas mostrou-se resistente em relação à ocupação do território. Estabeleceram-se na região com apoio de sindicatos, associações e demais grupos de moradores. Com a crise do Petróleo (1970-1990), diversas fábricas deixaram o local ou faliram, largando à “própria sorte” os trabalhadores que ali permaneceram. Os galpões que antes abrigavam as fábricas, foram abandonados e passaram a ser moradia para as famílias que não tinham como se manter diante do quadro de desemprego em massa e condições de miséria.
Hoje, Jacarezinho é considerado bairro, inserido na XXVIII – R.A. Jacarezinho, mas mantém em seu complexo com cerca de 11 favelas, as características consideradas informais para um bairro formalizado, como o adensamento de habitação, asfaltamento precário, esgoto sem tratamento, abastecimento de água e fornecimento de luz irregulares, além das questões de saúde, educação, pobreza e violência.
Em relação à violência, a abordagem da polícia na favela é completamente diferente da abordagem feita no asfalto. Além de portarem armas de grosso calibre utilizadas em guerras, esses policiais despreparados, promovem operações a qualquer hora, atiram em transeuntes que figure um suspeito, e como sabemos o racismo é fator determinante na execução de negros, em sua maioria homens jovens. Na lógica cruel do Estado em que vivemos, o suspeito padrão é o negro, e a ordem acatada pela polícia é “atirar primeiro e perguntar depois”. O auto de resistência dá respaldo para isso– recentemente maquiado com uma nova nomenclatura, “lesão corporal ou homicídio decorrente de oposição à intervenção policial”–pois permanece justificando as ações de ‘pena de morte’ nas periferias urbanas. A covardia cometida por esses agentes autorizados a matar acontece em várias proporções: agressões verbais, físicas e psicológicas (terror), revistas vexatórias, muitas vezes nas portas de nossas casas, invasão de domicílio, estupros, torturas, desaparecimento e genocídio da população negra, em maioria homens jovens.
Sabemos que a polícia não age sozinha nos casos de extermínio, pois recebem apoio de delegados, promotores e juízes, que em conjunto legitimam às mortes. Não há investigação nesses casos, e ao invés de se apurar como ocorreu o homicídio, os motivos da execução são justificados a partir da biografia da vítima, especulando se o mesmo era trabalhador ou “bandido”, como se isso permitisse a execução dos que estão envolvidos com as vendas de drogas ilícitas. As mães desses jovens assassinados, lutam por justiça para provar que seu filho não tinha envolvimento com o “tráfico”, sem qualquer amparo do Estado, que sempre entende como incontestável a ação da polícia. Essas mães sofrem ameaças, ficam em depressão, têm doenças crônicas agravadas, são desrespeitadas nas audiências públicas e ainda convivem com o pesadelo dos policias soltos, pois a maioria apenas é transferido de posto. Fora as mães que acreditam não terem o direito de provar que a polícia errou, por acreditarem que os filhos envolvidos com as práticas do ‘tráfico’, merecessem morrer por estarem nessa vida.
Além de promoverem o terror dentro das favelas a polícia proíbe qualquer manifestação cultural e/ ou de entretenimento. Um dos lazeres da favela era o baile, mas desde a chegada da UPP em 2012, ele foi proibido. Como de práxis, a polícia atribui sua proibição ao suposto vínculo do evento com a venda ilegal de drogas ilícitas, ignorando o fato de que o baile movimentava o comércio, possibilitando o emprego de mão de obra local, de pessoas que muitas vezes não conseguem acessar o mercado de trabalho por não cumprirem determinadas exigências. Hoje, a quadra da GRES Unidos do Jacarezinho, que movimenta shows e eventos ao longo do ano para custear o desfile no carnaval, é a opção de lazer, apesar de não contemplar todos os moradores, já que o acesso aos eventos são pagos.
Mais uma vez a nítida dicotomia entre a favela e o asfalto, pois sabemos que o Funk, principal ação cultural oriunda de favelas, é impossibilitado de ser promovido pelo morador, negro, ator local, que nasceu envolvido nas ações do movimento Funk, em contrapartida das festas que acontecem pela cidade, principalmente no Centro e na Zona Sul, lugares de privilégio e privilegiados, que desfrutam do Batidão, e ainda folclorizam e estereotipam a realidade dura e resistente das favelas, exibindo em suas decorações, características da miséria e dificuldades dos moradores de favela, para estampar seus cenários.
A famosa máxima: “É som de preto, de favelado, mas quando toca ninguém fica parado”. Ou seja, para quem serve o Funk, se não para o funkeiro? Por que as festas tocadas e realizadas pelo produtor branco da elite pode ser Funk (disputa de mercado), mas os moradores das favelas não podem promover seus bailes, dentro das favelas para a favela? O racismo que mata o jovem negro, pobre, favelado, julgando-o como “bandido”, é o mesmo que impede toda uma juventude de desenvolver e construir sua própria identidade ancestral cultural. Como já ouvi de um dançarino de Funk, Cebolinha: “o Funk não é somente um produto no mercado, ele salva vidas”. Através do ritmo, os jovens tiverem sua autoestima aumentada, e puderam desenvolver-se em diferentes áreas que abrangem esse universo, como produtores, MCs, DJs, dançarinos, técnico de som, fotógrafos, cineastas, entre outros.
Alguns exemplos da existência da potência cultural no solo favelado, são moradores do Jacarezinho que incomodados com o desamparo, resolveram fazer por eles mesmos. Léo Lima, cria do Azul (parte alta do Jacarezinho), fotógrafo, estudante de pedagogia, é representante do Coletivo Cafuné na Laje, movimento independente de arte educação que atua no Rio, atribuindo arte e tecnologia a esse processo orgânico de troca entre indivíduos. Sendo um sucesso entra as crianças e todos os moradores do entorno, as fotografias de Léo Lima trazem toda delicadeza e nuance dos sonhos de meninos, lembrando das brincadeiras, risadas e momentos felizes da favela.
Inaugurada por Júlio Cesar, mais conhecido como Júlio Moda, a agência Jacaré é Moda revela talentos de favelas e subúrbios do Rio para o mundo. A iniciativa busca através da moda, empoderar os jovens e diminuir a distância entre a periferia e o mundo fashion. Júlio é sobrinho da centenária Tia Dorinha, conhecida por ser a última rezadeira no Jacarezinho e por ter cuidado de muitas crianças para as mães trabalharem, já que a mesma não teve filhos.
Morar no Jaca significa sentar na porta de casa, a beira do rio Jacaré, colocar o lap top no colo e curtir um funk na brisa da tarde. Isso ilustra o lugar ideal, se pudéssemos ficar na porta de casa, sem sermos revistados ou correr o risco de uma bala perdida, oriunda de conflitos armados promovidos pela Segurança Pública–PM, UPP; se o rio não fosse poluído por falta de tratamento do esgoto; se a porta da minha casa não ficasse em um beco apertado onde outras pessoas precisam passar; e se na minha casa tivesse luz.
Jacarezinho é resistência!
Diana Anastácia é cria da Maré e Jacarezinho, negra, favelada, funkeira, estudante de Filosofia (UERJ), e produtora cultural na Fortaleceu Produções.