Os Jogos Olímpicos no Rio chegaram, mas a falta de preparação na cidade continua a fornecer à mídia internacional diversas histórias preocupantes. Um dos desastres na área de infraestrutura, relacionado à construção precária de quartos na Vila Olímpica, levou o Comitê Olímpico Australiano a considerar a Vila inadequada e “inabitável”, devido as preocupações com problemas de segurança e de saúde que ficaram visíveis ao fazerem a inspeção.
O fato é extremamente problemático, em parte porque a Vila Olímpica ficou famosa por ser o primeiro empreendimento no Brasil a receber do Green Building Council (Conselho de Construção Sustentável) a certificação para projetos de desenvolvimento de bairro sustentável (LEED ND). Essa certificação foi concedida por causa do suposto planejamento sustentável de transição que irá transformar a Vila Olímpica–localizada na Barra da Tijuca–após as Olimpíadas, em um bairro de elite chamado Ilha Pura. Essa certificação possui um peso em escala global e é destinada a ser um parâmetro de sustentabilidade e construção verde, porém Ilha Pura errou o alvo. O que é especialmente interessante e irônico, é que segundo uma análise recente feita pelos autores deste artigo, uma das favelas próximas foi pontuada 28% a mais do que a Vila Olímpica no mesmo sistema de avaliação LEED para bairros verdes.
Este resultado surpreendente remete a uma questão central da Nova Agenda Urbana que será debatida na conferência das Nações Unidas Habitat III ainda este ano: como criar assentamentos humanos sustentáveis para todos. Estima-se que um bilhão de pessoas vivem em comunidades informais em todo o mundo, e esse número está crescendo rapidamente.
Parte desse crescimento está acontecendo a uma curta caminhada do Parque Olímpico 2016 em uma pequena favela chamada Asa Branca. Enquanto o mundo celebra as Olimpíadas, Asa Branca irá celebrar 35 anos de luta e resistência na Zona Oeste do Rio. Favelas são frequentemente estereotipadas como caóticas e perigosas. Mas um exame atento revela méritos consideráveis em um ambiente orgânico e responsivo construído por seus moradores. Prédios compactos de uso misto e vias feitas para circulação de pedestres geram um tipo de vida cultural vibrante nas ruas e com baixa emissão de carbono, o que são características do urbanismo sustentável.
O conceito de comunidades não planejadas sendo modelos de sustentabilidade surgiu depois que a agenda Habitat II de 1996 clamou por habitação adequada e bairros sustentáveis para todos. Profissionais e estudiosos da área urbanística como John Turner, autor de Housing by People, Theresa Williamson, diretora executiva da Comunidades Catalisadoras, e Justin McGuirk, autor de Radical Cities (Cidades Radicais), reconheceram que os denominados “slums” (bairros precários) não são deformidades na malha urbana, mas importantes contribuidores para a sustentabilidade. Estes e outros pesquisadores percebem a mistura de qualidades físicas, vitalidade social e desenvoltura econômica em comunidades como as favelas, que pode gerar bairros transformadores. Como McGuirk questiona em Cidades Radicais: “Quando vamos nos dar conta de que as favelas não são um problema para o urbanismo, mas a solução?”.
Para ilustrar esse ponto, aplicamos o sistema de avaliação do LEED ND para projetos de desenvolvimento de bairro na Asa Branca. O LEED (Leadership in Energy and Environmental Design) é um grupo de ferramentas de avaliações de sustentabilidade que pertence, com a marca registrada, ao conselho de construção sustentável “Greenbuilding Council”, e que também inclui o LEED para Desenvolvimento de Bairros (LEED ND). Para avaliar sustentabilidade, o LEED ND combina os princípios e práticas de crescimento inteligente, novo urbanismo e construções verdes dentro de 44 avaliações que equivalem um total de 110 pontos.
Como parâmetro de um urbanismo formal, selecionamos a Vila Olímpica 2016 / Ilha Pura que já é certificada pelo LEED ND. Situada em 180 acres, Ilha Pura contém 3.604 novos apartamentos para acomodar aproximadamente 8.000 moradores, em 31 prédios com média de 18 andares, todos equipados com instalações comerciais e de lazer. Na escala de sustentabilidade de bairros, Ilha Pura marcou 47 pontos e ganhou uma certificação oficial do LEED ND. 40 é a pontuação mínima necessária para alcançar a pontuação de “certificação” (40-49 pontos), sendo que pontuações mais altas recebem colocações Prata, Ouro ou Platina.
A 800 metros ao norte de Ilha Pura, Asa Branca também possui 8.000 moradores, porém estes vivem em 1.800 habitações compostas por prédios de até quatro andares de altura, ocupados por uma ou mais famílias, em um terreno de 27 acres. 98 pequenos negócios suprem os moradores de suas necessidades diárias dentro da favela. Usando o parâmetro do LEED ND, Asa Branca obteve uma impressionante colocação Ouro com 60 pontos, 28% mais alta do que Ilha Pura.
Como o urbanismo informal ultrapassou de forma marcante as inovações formalizadas? O placar do LEED ND revelou que Asa Branca não pôde alcançar Ilha Pura nas construções sustentáveis e categorias de inovação devido às vantagens da última em poder financiar práticas de primeira linha. Mas Asa Branca recebeu o dobro da pontuação de Ilha Pura quando a qualidade da localização e do bairro foram apuradas, contendo os seguintes destaques:
- Habitações a preços acessível. Ilha Pura não procurou atingir nenhuma pontuação na categoria de habitação a preços acessíveis, mas Asa Branca recebeu a pontuação máxima com mais de 25% de suas moradias com um preço acessível pelos padrões do Rio de Janeiro. E as moradias são próximas de locais de trabalho, criando um equilíbrio entre moradia/trabalho digno de pontuação.
- Conectividade. A rede interna de circulação da Asa Branca proporciona uma conectividade interna altamente superior de 875 interseções por milha quadrada (equivalente a 2.589 km²), o suficiente para pontuar por performance exemplar; e o serviço adjacente de transporte público de alta frequência recebeu pontuação máxima pelo uso eficiente do local ao conectar os moradores a trabalhos regionais.
- Compacticidade e completude. 100% da área de circulação na Asa Branca é formada por calçadas para pedestres ou woonerfs (ruas onde pedestres possuem prioridade sobre veículos), localizada à frente de prédios sem recuo que estimulam a vida nas ruas com suas 98 lojas (e empregos) que ficam a uma distância que pode ser percorrida a pé ou de bicicleta de qualquer ponto da vizinhança.
- Equidade social e governança colaborativa. A Associação de Moradores da Asa Branca se qualifica pela equidade social e ganha créditos por ser uma organização de base comunitária que trabalha para criar uma vizinhança justa, saudável e próspera.
Os resultados para a Asa Branca não são de uma avaliação oficial do LEED ND como a certificação de Ilha Pura, mas eles se mostram úteis em vários aspectos:
- A Associação de Moradores da Asa Branca, que auxiliou o estudo do ND, pode utilizar os resultados para reforçar a colaboração e investimento do governo local, e esses investimentos podem de forma mais eficaz se concentrar nas necessidades identificadas na classificação ND, como por exemplo: espaço público, gestão de águas pluviais.
- Os resultados devem estimular avaliações em outras favelas para que seja verificado se essa pontuação favorável persiste em outros locais, se existem padrões, e quais são os atributos de sustentabilidade mais fortes e mais fracos em cada caso. Os atributos mais fortes devem ser identificados para que sejam reforçados, e os mais fracos para que sejam corrigidos. Isso também destaca um sério problema global: a falta de dados básicos sobre favelas, o que é extremamente necessário para compreender corretamente as forças e as fraquezas, e criar respostas efetivas.
- Ao moldar a Nova Agenda Urbana e seus “facilitadores operacionais”, os participantes do Habitat III podem reconceituar as favelas como contribuidores essenciais para o urbanismo sustentável. Sua pequena pegada ecológica, sua vitalidade social, e a desenvoltura econômica dos assentamentos informais justificam que eles ocupem um lugar de direito no tecido urbano.
Asa Branca não está hospedando atletas Olímpicos, mas foi capaz de alcançar a colocação Ouro pelos padrões globais para bairros sustentáveis. Isso não diminui os vários outros desafios que Asa Branca enfrenta, e os resultados não representam necessariamente todas as favelas do Rio (mais pesquisas seriam necessárias para isso). De qualquer forma, a movimentada vida nas ruas da Asa Branca e a coesão de seus moradores são provas convincentes dos pontos fortes adquiridos a partir de um ambiente construído de forma orgânica e responsiva. O mundo pode aprender uma lição com essa medalhista de ouro informal–que abraçar e alavancar o vigor e a potência das favelas e comunidades informais é fundamental para se atingir o urbanismo sustentável.
Eliot Allen, LEED AP-ND, é um arquiteto especialista em avaliação de sustentabilidade da Transformative Tools, co-criador do LEED ND, e criador do método LEED UP para urbanização de favelas. Julia Jones é estudante de relações internacionais na Syracuse University, e estagiou na Comunidades Catalisadoras.