No dia 5 de agosto, milhões de pessoas ao redor do mundo assistiram aos dançarinos de passinho tomarem o palco na cerimônia de abertura das Olimpíadas. Este momento, emblematicamente ao som do hino “Rap da Felicidade”, significou para muitos uma afirmação muito esperada de que o passinho tem um lugar definitivo na identidade cultural brasileira. O passinho percorreu um longo caminho para chegar neste ponto, desde à quase obscuridade passando pela estigmatização até alcançar a fama internacional, em uma velocidade que compete com os seus rápidos passos da dança.
A História do Passinho
Embora o passinho estivesse presente nos bailes funk desde, pelo menos, o início dos anos 2000, ele permaneceu relativamente desconhecido por muitos anos. O primeiro grupo de dança a incluir o passinho em seu repertório foram os Imperadores da Dança, fundado em 2006 por Anderson Santana (conhecido como “Baianinho”) no Jacarezinho, Zona Norte do Rio. Durante aquele tempo, dançarinos conheciam-se através do boca-a-boca e os bailes funk tornaram-se locais para competições de dança entre diferentes favelas. Embora os bailes sejam considerados o local de nascimento do passinho, muitas competições na verdade ocorriam em uma pequena rua ao lado do Madureira Shopping. Este local histórico foi onde muitos dançarinos fizeram sua reputação, competindo em alguma das muitas rodas informais que se formavam todos os sábados, uma tradição que continua até os dias de hoje.
Em 2008, no momento considerado o início da divulgação do passinho na internet, um dançarino chamado Beiçola do Jacarezinho postou no YouTube um vídeo dele e de seus amigos dançando. O vídeo espalhou-se rapidamente, inspirando jovens das favelas de toda a cidade a usar as mídias sociais para compartilhar vídeos de dança como aquele, e o passinho transformou-se praticamente do dia para a noite, de uma dança isolada a um fenômeno cultural.
Em 2011, o escritor Julio Ludemir e o músico Rafael Mike Soares organizaram a primeira Batalha do Passinho, no SESC Tijuca. Essas competições legitimaram mais o passinho como um estilo de dança e inspiraram o cineasta Emílio Domingos a fazer em 2012 o documentário A Batalha do Passinho, no qual ele retrata as vidas dos dançarinos pioneiros, como o Cebolinha e o Gambá. Tragicamente, Gambá, o “Rei do Passinho”, foi assassinado em 2012 no auge da sua carreira de dança. Ele não chegou a ver o lançamento do filme ou o impacto que causou. Sua morte, cujos detalhes ainda são um mistério, foi muito dura para a comunidade. Aqueles que o conheciam decidiram continuar dançando em sua honra. Gambá vive na história do passinho, imortalizado através das suas coreografias que contribuíram aos movimentos da dança.
O passinho ganhou sua primeira exposição internacional quando Julio Ludemir levou um grupo de dançarinos das competições de passinho para se apresentarem na cerimônia de encerramento dos Jogos Paraolímpicos de Londres em 2012. Logo ícones do pop americanos participaram do fenômeno: Chris Brown dançou Passinho do Romano; Beyoncé incluiu movimentos do passinho em sua apresentação no Rock in Rio de 2013; e Ricky Martin apresentou o Dream Team do Passinho em seu vídeoclipe “Vida”, em 2014. Durante a Copa do Mundo de 2014, o passinho foi apresentado no vídeo oficial da BBC e o New York Times chamou o funk de “trilha sonora do Rio”.
Os aspectos estilísticos do passinho
O passinho é caracterizado por sequências de rápidos movimentos com os pés, que são facilitados por rápidos movimentos com a cintura. O passinho mistura elementos de break e funk com ritmos tradicionais do Brasil, como o samba, frevo e capoeira. Tradicionalmente, é realizado sem coreografia, com os dançarinos improvisando conforme a música.
Uma das assinaturas do passinho é o olhar fixo do dançarino para os seus pés. Frequentemente confundido com olhar para o chão–algo inaceitável no mundo da dança clássica–esse aspecto não é um sinal de amadorismo, mas sim um estilo. Os dançarinos dizem seguir o movimento de seus corpos, e o movimento no passinho está nos pés.
Embora existam passos básicos do passinho, não há regra que diga o que é “certo” ou “errado”. Isso dá aos dançarinos a liberdade de interpretar movimentos de uma forma diferente e mudanças individuais podem se tornar estilos únicos, como o famoso Passinho do Romano em São Paulo. O objetivo do passinho não é imitar, mas sim reinventar. Essa divertida competição é a força criativa que conduz a contínua evolução do passinho.
Estigmação da cultura do funk
Porque o passinho é tipicamente dançado ao som do funk carioca, a dança recebeu muito do estigma associado ao estilo musical. Funk carioca, uma fusão das batidas do funk norte-americano e ritmos afro-brasileiros originado nos anos 70 e 80, enfrentou criminalização e críticas por ser associado a músicas cujas letras ultrapassam os limites do senso comum ao retratar violência, drogas e referências sexuais. Muitos artistas dizem que estão falando sobre a sua realidade e apontam para outros gêneros musicais que também incluem temas tabus, mas que não enfrentam reações com a mesma magnitude. Para muitos, a criminalização do funk, e por extensão a criminalização do passinho, é uma expressão da criminalização da pobreza.
O passinho também tem sido afetado pela criminalização dos bailes funk, um espaço fundamental para o passinho. Em 2000, o Estado do Rio aprovou a lei 3410 , restringindo a organização do bailes funk através de exigências, como entre outras, que os organizadores instalem detectores de metal e somente realizem bailes com a presença da Polícia Militar. Em 2009, o movimento teve uma vitória com a aprovação da lei estadual 5543, que oficialmente reconhece o estilo como um movimento cultural e proíbe a descriminação contra o funk.
Passinho e mudanças sociais
Acredita-se que o passinho é capaz de ajudar a amenizar a tensão entre diferentes favelas, uma vez que os dançarinos têm a capacidade de ultrapassar barreiras que separam territórios comandados por traficantes rivais. O passinho dá aos praticantes uma afirmação do seu valor enquanto indivíduos.
Para os dançarinos do passinho, ele dá a jovens homens negros, o grupo demográfico mais propenso a ser vítima de violência policial e coerção ao mundo do tráfico de drogas, um refúgio da violência e meios alternativos de ganhar status e dinheiro. O passinho tem um cunho político inerente através da afirmação do orgulho da cultura negra e da favela em um país que historicamente estigmatiza ambos.
Também inerente ao movimento do passinho é o senso de comunidade e pertencimento. Muitos dançarinos referem-se aos seus colegas como “família” e os mais veteranos possuem um sentimento de responsabilidade como guias da próxima geração, não somente na dança mas em suas escolhas de vida.
O passinho também ajudou a romper o sexismo dentro da comunidade da dança. Ele criou um espaço para homens mostrarem suas habilidades na dança, desafiando a noção pré-concebida de que apenas mulheres podem fazer apresentações de dança. Os movimentos divertidos e unissex da coreografia também permitem que os homens desafiem a expectativa de demonstrações de hiper-masculinidade.
Essa desconstrução de regras de gênero indiretamente abriu a possibilidade para artistas mulheres entrarem em cena e usarem o funk e o passinho como meios de empoderamento. Inicialmente, quando dançarinas entravam no passinho, elas enfrentavam discriminação e exclusão. Embora garotas estivessem envolvidas em batalhas de passinho desde 2012, havia uma regra implícita que dizia que um homem não podia perder para uma mulher.
Em 2015, finalmente, foi criada para as meninas uma categoria própria na Batalha do Passinho da Cidade Alta, uma vitória para aquelas que esperavam por reconhecimento em um estilo dominado pelos homens.
Educadores estão agora reconhecendo o potencial físico e sócio-cultural do passinho, e o estilo está sendo introduzido como uma ferramenta educacional em algumas escolas do Rio. Membros do Dream Team do Passinho atuam como embaixadores culturais, usando sua fama para disseminar mensagens sobre assuntos como saúde reprodutiva e direitos.
O passinho hoje
Hoje o passinho cresceu de um pequeno grupo de dança no Jacaré para grupos ativos por todo o Rio. As competições de dança são muito organizadas e têm patrocínios de empresas. Os competidores são escolhidos ou nomeados democraticamente por seus colegas por meio de curtidas nos vídeos de dança nas redes sociais. A partir disto, os dançarinos são colocados lado a lado e cada um tem 40 segundos para se apresentar para a banca de três jurados. Os jurados, especialistas em passinho, decidem quem deve seguir à próxima etapa, levando em consideração habilidades e técnicas básicas. Os juízes também buscam avaliar se o dançarino apresenta estilo único e personalidade. Os vencedores recebem um prêmio em dinheiro, além dos aplausos e o reconhecimento ao ganhar uma batalha.
Os dançarinos têm atualmente se preparado para competir nas finais do Passinho de Ouro hoje, dia 20 de agosto, um desafio preparado pelos organizadores da Rio 2016. Enquanto isso, o passinho continua a ganhar reconhecimento dentro da cultura pop–participantes do Imperadores da Dança farão uma apresentação na comédia Tô Ryca, filme que estreará no dia 22 de setembro.
Mas ao mesmo tempo que o passinho ganha exposição nos palcos e no cinema, artistas ainda estão lutando por reconhecimento no mundo artístico formal e por espaços para os treinos. Muitos grupos de dança, como os Imperadores da Dança, ainda não possuem um estúdio em que possam treinar.
Além disso, conforme o passinho e o funk tornam-se mais populares, estas manifestações culturais enfrentam apropriações da indústria com o intuito de vender a “marca” funk. Casas noturnas da rica Zona Sul e até mesmo clubes dentro de favelas pacificadas realizam caras festas temáticas de funk ou passinho que atraem brasileiros e turistas de renda alta. Essa exclusividade é contrária à natureza inclusiva do passinho, e é especialmente problemática para aqueles que acreditam que a diferença fundamental entre valorização e apropriação é a presença de representantes da comunidade original do passinho. Dançarinos esperam que, ao invés disso, a atenção internacional trará mais respeito pelo passinho enquanto um estilo de dança legítimo e gere mais oportunidades para artistas da favela.
A história do passinho está longe do fim. Na verdade, muitos artistas dizem que o movimento só cresce. Como tal, passinho é uma história em movimento, um legado construído passo a passo.
Confira nosso vídeo com William Severo dos Santos preparando-se para sua apresentação nas Olimpíadas:
Hugo de Oliveira, Caroline Feliz “MC Carolzinha”, William “Severo” dos Santos, Iguinho Pontes e Thiago de Paula contribuíram nesta matéria.