As Melhores e Piores Reportagens Internacionais Sobre as Favelas Durante as Olimpíadas

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Esta é a contribuição mais recente da nossa série de matérias analisando as Melhores e Piores Reportagens Internacionais sobre Favelas do Rio, que faz parte do atual debate do RioOnWatch sobre a narrativa e os retratos midiáticos acerca das favelas cariocas.

A mídia internacional tem estado ativa nas suas avaliações dos Jogos Olímpicos, mas como é que a própria mídia se saiu nas suas reportagens sobre a cidade do Rio e suas favelas?

As palavras “slum” e “shantytown” infelizmente estiveram de volta com toda a força durante os Jogos, devido a jornalistas ‘caídos de pára-quedas’–menos familiarizados com o Rio–que se esforçaram para explicar as favelas para a audiência estrangeira. Um grande número de matérias cobriram atletas visitando favelas. Porém, enquanto atletas Olímpicos como o astro do basquete, Carmelo Anthony, tinham apenas coisas positivas para falar sobre sua experiência, no caso dele no Santa Marta, os jornalistas que reportaram a visita dele, com frequência, completavam suas reflexões com pressupostos estigmatizantes.

Ainda assim, nós vimos mais mídias do que nunca se esforçando para desmascarar, explicitamente, a estereotipização da favela, incluindo programas de alta visibilidade como da NBCThe Today Show. Ainda outros, experientes correspondentes do Rio e outros repórteres perspicazes, se recusaram a ser totalmente levados pela euforia Olímpica, mantendo em evidência as questões críticas enfrentadas pelas favelas, dando destaque as qualidades dessas comunidades ao lado de seus desafios. Aqui está nossa visão sobre as melhores e as piores reportagens sobre favelas nas Olimpíadas.

As Piores

A reportagem com o mais atordoante e descuidado erro factual, que assistimos, foi veiculada em um vídeo do USA Today que afirmou que 40% dos moradores das favelas no Rio usam crack. A alegação parece ter sido informada por um pastor de uma igreja que trabalha com usuários de crack, e que pode ser ouvido, durante a reportagem, dizendo este dado estatístico em português, mas o narrador da reportagem apresentou o dado em inglês como um fato ao invés de uma citação. Essa é uma afirmação absurda, uma vez que nem mesmo o número de usuários regulares de crack em todas as capitais brasileiras chega ao número equivalente a 40% dos moradores de favelas no Rio, e o uso de crack não é limitado a áreas de baixa renda. O exagero grosseiro do USA Today é uma deturpação fundamentalmente improdutiva das favelas e o artigo como um todo nada contribui para desestigmatizar o vício.

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Uma matéria no Sporting News sugere que é válido “entrar em pânico” devido às ameaças à segurança no Rio, “porque as vizinhanças agradáveis estão sempre abraçadas pela pobreza viciosa que define as favelas das cidade–slums, essencialmente”. Não está claro o que concedeu a esse autor a autoridade para proferir o que define as favelas, especialmente porque não parece que ele sequer visitou uma favela ou falou com um de seus moradores na preparação da matéria. Além do mais, contrastar favelas com “vizinhanças agradáveis” sugere um elitismo que está cego para a cultura, a inovação e o espírito comunitário que também podem “definir” as favelas. O autor descreve a “violência que transborda das favelas” sem nenhum aceno para a violência sistêmica do país que tem transbordado desde a era pré-colonial até o Rio moderno que continuamente marginaliza moradores pobres e negros da favela. A falta de contexto não surpreende, dado que a principal fonte para a matéria foi um “especialista em segurança” que passou “duas semanas” no Rio antes das Olimpíadas.

Uma curta matéria da AP que acompanha uma série de fotos, sugere que a pobreza, as drogas e a violência “dominam a vida” nas favelas do Rio, descritas como “sombrios slums” e “shantytowns“. Embora o fracasso da política de pacificação do estado seja importante de se destacar, essa matéria deixa os leitores com a impressão de que há muito pouco nas favelas além de conflitos com traficantes de drogas, e esconde o fato de que menos de 1% dos moradores das favelas estão envolvidos com o tráfico. Legendas nas imagens identificam onde cada foto foi tirada, mas o artigo em si diz que “cenas macabras de morte e impunidade acontecem diariamente nas centenas de shantytowns do Rio”, como se todas as favelas viviam os mesmos níveis de violência e da mesma forma. Na realidade, a maioria das favelas não tem presença do tráfico, enquanto algumas outras têm presença do tráfico, mas poucos conflitos.

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Em uma manchete duplamente impactante, uma matéria no Christian Today chama as favelas de “slums infestadas de crime” e “centros de bruxaria”. Chamar de bruxaria é um óbvio ataque ao Candomblétradicional religião afro-brasileira que tem enfrentado enorme preconceito no Brasil há séculos. A descrição feita na matéria da amigável a visitável favela Santa Marta, como a “parte mais violenta da cidade” onde “a maioria… dos maridos estão nas prisões” é tão imprecisa quanto rotular o Rio de Janeiro a “capital brasileira” na matéria. A ruidosa criminalização dos moradores da comunidade é exatamente o tipo de reportagem que serve para justificar políticas violentas do estado contra favelas.

Com dez dias de jogos, o ex-correspondente do Brasil Roger Cohen escreveu no The New York Times que ele estava “cansado, muito cansado, de ler reportagens negativas sobre esses Jogos–sobre o rancor nas favelas, a violência que continua… o abismo que separa ricos e pobres”e assim por diante. Roger Cohen não se dá conta que os moradores de favelas, também, estão “cansados, muito cansados” da violência? Ele prioriza seu próprio desejo privilegiado de desfrutar de edificantes histórias de esportes, impassível diante da incômoda desigualdade social e passando por cima da necessidade urgente por parte dos moradores do Rio de chamar atenção da mídia internacional para suas lutas de longo prazo. Pedir por um apagão das histórias negativas é descartar as experiências sofridas de milhões de pessoas com os impactos desses Jogos. Escrever inequivocamente e sem evidências, como Cohen faz, que “estes Jogos Olímpicos são bons para o Brasil e para a humanidade” é abandonar a nuance jornalística inteiramente.

As Melhores

A matéria de Matt Sandy, “O Esquecido Legado da Escravidão no Rio de Janeiro Obscurece as Olimpíadas para a TIME magazine é uma investigação vital sobre a história da escravidão no Rio no âmbito do desenvolvimento do porto Olímpico no lugar exato onde dois milhões de africanos escravizados chegaram, e as relações problemáticas do Brasil em relação à raça e à mão-de-obra que permanecem até hoje. Cuidadosamente pesquisado e baseado em entrevistas com uma gama de especialistas e moradores locais, o artigo traz um olhar essencial para as formas como a história de escravidão do Rio é lembrada, esquecida e impacta a cidade hoje. A cobertura do Bloomberg da intensa presença corporativa no Porto revitalizado em contraste à “marginalizada” história escrava oferece mais uma excelente análise sobre esse tópico.

A soberba vídeo-reportagem de Johnny Harris, “Por dentro das favelas do Rio, os bairros negligenciados da cidade para a Vox é um olhar que explicitamente dá um golpe nos estigmas que as favelas da cidade enfrentam. Com um âmbito ambicioso, visualmente cativante e magistralmente produzido, o vídeo é uma viagem dinâmica e de ritmo acelerado através das favelas pela cidade, cobrindo a história, a definição, as qualidades e mais contundentemente, a criatividade das favelas do Rio. Johnny Harris não encobre os problemas das gangues de drogas e da violência policial, mas faz uma observação matizada e persuasiva sobre o fato desses serem os enfoques menos interessantes através dos quais se pode ver e compreender essas comunidades vibrantes.

A reportagem de Simon Romero para o New York Times, Para Além do Fulgor Olímpico, uma Cruel Guerra às Drogas se Intensifica no Rio“, expõe a chocante realidade de violência enfrentada pelos moradores do Complexo do Alemão, na Zona Norte, durante os Jogos Olímpicos. Operações policiais e tiroteios se intensificaram nas últimas semanas, porém a mídia focou nos Jogos e nas operações de segurança para tornar a cidade segura para visitantes. O relato de Simon Romero destaca a crise da segurança no Alemão com o foco crucial na experiência de moradores vivendo em meio à violência. Lulu Garcia-Navarro, da NPR, e Jonathan Watts, do The Guardian merecem crédito semelhante por colocar em primeiro plano as perspectivas dos moradores sobre a violência corrente.

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A reportagem de Olga Khazan, “Uma Solução Barata e Fácil para Consertar o Problema do Esgoto do Riopara The Atlantic dá visibilidade importante aos endêmicos problemas de saneamento do Rio e à solução em pequena escala com o uso de biodigestores que poderiam resolver o problema. Focando no estudo de caso da comunidade Vale Encantado na Floresta da Tijuca, onde um biossistema de tratamento de esgoto foi instalado com sucesso, Olga Khazan explica a tecnologia de biodigestão, seus benefícios e dificuldades, e oferece um contexto essencial para os desafios sistemáticos que poderiam impedir uma ampla implementação da solução.

A extensa matéria de David Biller e Michael Smith, “O Rio Prometeu Limpar a Baía da Guanabara Antes das Olimpíadas no Bloomberg é uma incrível reportagem investigativa que conta a história de Priscila de Goes Pereira, uma administradora dedicada do orgão responsável pela limpeza da Baía de Guanabara que foi assassinada em 2015. Através da história trágica de Priscila de Goes Pereira, contada através de extensas entrevistas com seus amigos, família e colegas de trabalho, o artigo elucida o escandaloso fracasso do Rio em limpar a Baía de Guanabara, apesar de ter recebido milhões do Banco de Desenvolvimento Inter-Americano.

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O artigo de Alex Cuadro, “As Olimpíadas do Brasil Encontram suas Favelaspara The New Yorker explora a tensão inerente entre a representação comemorativa das favelas na cerimônia de abertura das Olimpíadas e o tratamento do governo destinado as favelas durante a preparação para os Jogos. Sem perder de vista o fracasso do programa das UPPs e a política de remoções da prefeitura, Alex Cuadros apresenta histórias de moradores que destacam as contradições em apresentar a cultura da favela no espetáculo de abertura dos Jogos, enquanto se negligencia e destrói as comunidades que deram origem a essas formas de arte.

Outras matérias altamente recomendáveis desse período de Olimpíadas inclui a avaliação, por parte do Real Sports with Bryant Gumbel, da HBO, do rastro de destruição deixado de cidade em cidade pelo Comitê Olímpico Internacional (COI), o relato de Jonathan Watts sobre as péssimas condições de trabalho e pagamentos de faxineiros na Vila dos Atletas e a forte crítica das Olimpíadas feita por Aaron Gordon.