Os Jogos Paralímpicos deveriam ter sido um momento decisivo para os estimados 45 milhões de brasileiros com alguma deficiência física, pois deveriam ter deixado “um legado de acessibilidade”, conforme anunciado pelo Comitê Olímpico Brasileiro. Mas Valdir Mansur, um ex-jogador cadeirante de rugby da Rocinha, vê com ceticismo a entrega desse prometido–e tão necessário—legado.
Não faz muito tempo, Valdir Mansur, 37 anos, sonhava em jogar pelo Brasil no time de rugby nas Paralimpíadas. Agora, ele assiste aos jogos na TV, em seu minúsculo apartamento na Rocinha, a maior favela do Rio, localizada na Zona Sul da cidade. Ele conseguiu chegar ao estádio para assistir a natação, mas somente porque seu patrão lhe deu as entradas e–o mais importante–levou-o para lá em uma van. “Ir no ônibus ao Parque Olímpico não dá para mim”, ele disse.
Valdir trabalha na recepção do Instituto Brasileiro dos Direitos da Pessoa com Deficiência (IBDD), uma ONG que apoia pessoas com deficiência para encontrar emprego ou lutar na justiça por uma cadeira de rodas. Para chegar lá todos os dias, ele levanta às 6 horas da manhã, toma um mototáxi para descer o morro e apanha um ônibus, como diz Valdir, “se o motorista para pra mim”, o que nem sempre é o caso. Mesmo assim, Valdir tem tido sorte. Apesar de ser paralítico desde que nasceu, devido a uma doença genética, ele consegue andar de muletas. Senão seria impossível sair de casa.
Cada rua e beco da Rocinha foi construído pelos próprios moradores, e planejar para a acessibilidade não foi a primeira preocupação deles. Em sua primeira casa, Valdir tinha que subir e descer uma rampa com uma inclinação de 80% usando muletas. Ele fazia isso todos os dias, até não conseguir mais. Em sua casa atual, ele ainda precisa ultrapassar algumas escadarias e um caminho estreito e escuro até chegar a porta da frente de sua casa. Valdir não se queixa: “A deficiência não impede de fazer nada na vida. Sou deficiente, mas posso ir e vir. Agradeço cada dia”.
Muitos moradores da favela que dependem de cadeira de rodas ficam presos em casa durante o dia. Para eles, o acesso à educação, mobilidade ou saúde pode ser muito restrito. A Clínica da Família tem uma rampa que é íngreme demais para um cadeirante, diz Valdir. Além disso, não há tratamento especial, e ele não conhece nenhum fisioterapeuta na favela.
Legalmente, não deveria ser assim. O Brasil foi um dos primeiros a assinar a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, garantindo amplos direitos de participação. A Constituição designa a Língua brasileira de sinais (Libras) como a segunda língua oficial. No ano passado, a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência foi promulgada. As grandes empresas não podem discriminar contra pessoas com deficiência, os prédios públicos e novos blocos de apartamentos devem ser acessíveis, e crianças com deficiência têm direito de frequentar uma escola regular. Mas como acontece com outras políticas públicas no Brasil, a legislação progressista existe, mas falta uma implementação efetiva.
Os Jogos Paralímpicos deveriam ter mudado isso. De acordo com Andrew Parsons, Presidente do Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB): “Os Jogos Paralímpicos Rio 2016 serão grandes catalisadores em termos de avanços para a inclusão social da pessoa com deficiência.” E continuou: “Novas tecnologias em próteses e cadeiras de rodas, por exemplo, surgem primeiro no esporte de alto rendimento, para depois chegarem às pessoas com deficiência em seu dia a dia”.
Mas para Valdir, mesmo uma cadeira de rodas esportiva comum estava fora de alcance. Quando ele jogava rugby, precisava de uma cadeira de rodas do seu clube: “Tem que chegar primeiro para conseguir uma cadeira de rodas boa. Senão você vai pegar uma cadeira muito ruim”. Ele adorava praticar esportes, não apenas rugby, mas também basquete e natação. Mas quando a Petrobrás deixou de patrocinar o clube, a equipe não tinha mais como alugar o ginásio. Agora só há um clube de rugby para cadeirantes na região do Rio, localizado na vizinha Niterói, longe demais para o Valdir.
A falta de acessibilidade na prática é um desafio. Outro é a percepção geral quanto às pessoas com deficiência na sociedade. As Paralimpíadas deveriam ter modificado isso também. “Acompanhar esses atletas tão de perto é uma experiência que muda a percepção que as pessoas têm em relação as pessoas com deficiência. Elas começam a relativizar essa questão”, disse Andrew Parsons. “Primeiro, é uma competição de altíssimo nível, um espetáculo e divertimento. Depois, é uma oportunidade única para ver esses atletas de alta performance no Brasil, será o momento das famílias levarem crianças para viver uma experiência única e ajudar a quebrar barreiras. O efeito educativo será extraordinário”.
Valdir não tem tanta certeza sobre isso. Como brasileiro e ainda mais como carioca, ele estava muito entusiasmado que a cidade estivesse sediando esses eventos, mas não acredita em melhorias mais tarde. “Tudo que foi feito no Rio é só maquiagem“, ele diz, apesar de esperar também que “um dia, em todo o Brasil, uma pessoa com deficiência seja tratada de outro jeito”.
Isso é algo que ele realmente gosta quanto a viver na Rocinha: “Na comunidade, tem menos preconceitos, o tratamento é melhor. É outro olhar. São todos amigos e irmãos. Quando você precisa, aparece uma pessoa para te ajudar. Sempre tem uma pessoa carregando as minhas bolsas depois do supermercado”. Dessa maneira, talvez o espírito comunitário e a solidariedade da favela sejam uma lição de inclusão para o Brasil e para o Rio como um todo.