O filme longa-metragem de Dan Jackson, deste ano, “Na sombra do Morro“, humaniza as mudanças muito reais impostas aos moradores da Rocinha quando a cidade se preparava para sediar a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos 2016. Em meio aos retratos de abuso policial, corrupção, e remoções, o filme focaliza principalmente no caso de Amarildo de Souza, um pedreiro e morador da Rocinha que desapareceu após ser chamado para interrogatório pelos oficiais da UPP, em 2013.
Capturado em entrevistas pessoais, vislumbres do dia-a-dia, e cenas de ação da luta pela justiça que se seguiu, o diretor australiano Dan Jackson conta a história de uma família e comunidade que ao mesmo tempo critica as políticas municipais e tem esperança no futuro. Na Sombra do Morro foi lançado em maio de 2016, no Hot Docs: Festival Internacional de Documentários do Canadá (Hot Docs: Canadian International Documentary Festival), e desde então tem sido apresentado em exibições em todo o mundo.
Na Sombra do Morro tem um estilo quase de ficção, com altos e baixos na ação entre uma introdução radical e uma conclusão otimista. Antes de entrar na história do Amarildo, o filme contextualiza o programa da UPP instalado nas favelas do Rio, para preparar a cidade para sediar os megaeventos. Quando as forças militares declararam a Rocinha “pacificada”, após a operação policial em novembro de 2011, o que se seguiu não foi o respeito e a segurança associados a uma paz verdadeira. Sob o sistema repressivo estabelecido, os moradores da favela ficaram sujeitos a batidas violentas, discriminação de raça e de classe, e prisões arbitrárias.
Quando Amarildo de Souza desapareceu após ter sido chamado para interrogatório, em 2013, sua família não recebeu quaisquer informações ou ajuda para encontrá-lo. O Major Edson Santos, então comandante da UPP para a Rocinha, nega a culpa da polícia e culpa as relações criminosas de Amarildo alegadas pela mídia, em uma tática característica da mais ampla criminalização da pobreza. A corrupção entre as posições legislativas e executivas no Rio de Janeiro também fica aparente quando o Major Edson Santos é favorecido por certos políticos em troca de sua ajuda nas suas campanhas. Se o Major Edson Santos é o vilão num papel chave para encobrir a verdade e perpetuar um sistema corrupto, então o filme tem o advogado de direitos humanos João Tancredo em alta estima, pelo seu apoio pro bono no caso do Amarildo.
Além da narrativa principal do desaparecimento de Amarildo e da luta pela justiça da sua família, personagens centrais convincentes dão muita humanidade ao filme. Aurélio Mesquita, fundador e diretor do grupo de teatro Via Sacra, lidera os membros da comunidade em recriações anuais da jornada de Cristo para a cruz enquanto aborda a violência policial e outras questões sociais pertinentes. As peças são retratadas como uma forma de resistência e empoderamento para os moradores da Rocinha.
Entremente, quando o governo a remove junto com sua família, Maria Clara dos Santos–a “Mãe Santa” da Rocinha–também perde o seu meio de subsistência preparando ervas medicinais. Devido à necessidade econômica, ela cria a personagem da Mulher Maracujá e logo ganha atenção nacional com o seu estilo de dança funk. A sua história é de uma desenvoltura empreendedora e desafia as expectativas de sucesso da sociedade para com os moradores da Rocinha. Ela junta-se à luta por justiça para Amarildo usando sua fama e habilidades para produzir música politizada.
Os protagonistas de Na Sombra do Morro são um grupo de indivíduos fortes que exigem seus direitos e criam um movimento coletivo que transcende raça e classe. O documentário rompe os estigmas da favela, mostrando a criatividade, a organização e os valores dos moradores da Rocinha. Liderados por Michelle Lacerda, sobrinha de Amarildo e uma narradora forte durante todo o filme, a família e os moradores da comunidade recusam-se a calar seus protestos apesar das ameaças e calúnias da mídia sobre o caso. Brasileiros e estrangeiros em todo o mundo expressam sua união com a campanha virtual perguntando “Cadê o Amarildo?“. A publicidade internacional proporcionou maior segurança aos esforços dos ativistas, impedindo que o governo se evadisse das exigências da comunidade e da verdade.
Na Sombra do Morro aborda a aliança formada entre o movimento pró-Amarildo e os protestos simultâneos contra os gastos com a Copa do Mundo e a ineficiência do governo naquela época. Enquanto este último movimento estava associado à classe média do Rio, os grupos construíram a solidariedade no entendimento mútuo da necessidade de uma reorganização das prioridades do governo brasileiro e do fim da violência patrocinada pelo estado. Michelle Lacerda comenta que “há 20 anos um morador negro de favela teria merecido a sua morte aos olhos da opinião pública, mas hoje não”.
As cenas finais do filme ressaltam a unificação destes dois grupos distintos e o poder da ação coletiva. Os moradores da favela dão-se as mãos em protesto com pessoas de classe média, cantando e marchando em direção à casa do governador. O tom é esperançoso, unido, e espirituoso. Na Sombra do Morro dá voz a moradores de favelas que foram tradicionalmente marginalizados e continuam a enfrentar barreiras no exercício dos seus plenos direitos como cidadãos brasileiros. No final, os espectadores ficam sabendo que os protestos foram bem sucedidos ao responsabilizar a polícia; após 25 prisões, no início de 2016, o Major Edson Santos e 12 dos seus colegas foram declarados culpados pela tortura e pelo assassinato de Amarildo. Como Michelle Lacerda diz, “Há justiça neste país. É lenta, complicada e às vezes corrupta. Mas ela existe”.
As próximas apresentações de Na Sombra do Morro podem ser encontradas no site do filme. O filme fez parte do Festival do Rio – Rio International Film Festival.