Esta é a quinta matéria de uma série de cinco intitulada Lições das Favelas Cariocas para a Política Habitacional. Esperamos que essa série apoie debates sobre habitação e urbanização nas favelas, e que o novo prefeito, Marcelo Crivella, crie políticas voltadas aos desafios que as favelas enfrentam, enquanto reconhecendo e fortalecendo seus atributos positivos, através do engajamento ativo dos moradores na criação e implementação de tais políticas.
Lição 10: Soluções para políticas habitacionais devem ser inspiradas pelas favelas
Através da compreensão das necessidades e experiências das favelas, é possível encontrar soluções para a política habitacional com base nas experiências vividas por essas comunidades, ao invés de impor soluções de cima para baixo, que inevitavelmente falham devido à falta de fundamentação na vida e necessidades reais dos moradores. Este artigo final da série descreve idéias de políticas que emergiram de diálogos com os moradores em mais de 15 comunidades e instituições acadêmicas em todo o Rio. Eles representam uma fração da multidão de idéias que podem emergir de ouvir as vozes daqueles que experimentam impactos de política (ou a falta de políticas) em uma base diária.
1. Fornecer assistência técnica, materiais de construção e empréstimos a favelas à medida que construírem suas casas
Uma dificuldade comum entre os moradores de favelas nas encostas é o desafio de subir com materiais de construção em morros íngremes. Outros se queixaram de sua falta inicial de conhecimentos técnicos que os levou a reconstruir suas casas mais de uma vez, enquanto aprenderam fazendo. Em todas as favelas, ouve-se histórias de quantos anos, muitas vezes gerações, demorou para construir e reconstruir uma casa para deixá-la como está agora. Os moradores que tiveram sucesso falam desta experiência com enorme orgulho, enquanto aqueles que lutam durante décadas e não conseguem melhorar dramaticamente suas condições de vida podem sofrer infinitamente.
Enquanto uma parte de apoiar comunidades deve ser implementando parâmetros que evitem construções inseguras e construção em precárias “áreas de risco“, esse risco é geralmente exagerado no Rio. Em vez disso, nas favelas consolidadas, onde as comunidades se tornaram estabelecidas com qualidades desenvolvidas e bens valiosos construídos, o foco da política deve ser o fornecimento de suporte técnico, materiais de construção e empréstimos para permitir que os moradores completem suas casas e as elevem ao padrão. Na década de 1960, um programa municipal forneceu assistência técnica e materiais aos moradores que construíram suas próprias casas. Mais recentemente, os sub-financiados e marginalizados POUSOs, ou Postos de Orientação Urbanística e Social, foram uma política relativamente popular que forneceu apoio técnico.
Moradores de favelas do Rio também têm dificuldade em acessar crédito para construir ou melhorar as suas casas. Deve ser considerada a implementação de uma política de prestação de pequenos empréstimos a juros baixos a moradores que desejam investir em casas, e um canal simplificado para comprar materiais de construção baratos ou materiais subsidiados. Isso pode ser feito criando contratos com lojas de materiais locais, por exemplo.
“Eu acho que deve haver um programa do governo para ajudar com engenharia e construção, porque cada casa que vai ser construída precisa do básico. Você tem que ter um profissional ajudando a fazer isso.” – Cabritos, Zona Sul
“Às vezes a cidade vem aqui com ajuda técnica e o morador tem o olho mais especializado. Você tem que ter esta parceria de instituições. A equipe que fez a Rio+Social [antes de ser desmantelada] foi sensacional. Eles fizeram realmente um bom trabalho que documentou todas as necessidades aqui. Funcionou muito bem porque o engenheiro fazia parte de muitas instituições. Eles tiveram encontros com as pessoas para avaliar as necessidades.” – Cidade de Deus, Zona Oeste
2. Aprender com programas eficazes de alta participação, inclusive controlado por moradores, como o Minha Casa Minha Vida-Entidades
As novas políticas habitacionais do Rio de Janeiro devem especificar e garantir mecanismos de ampla participação. A inspiração pode ser retirada dos projetos habitacionais auto-construídos associados com o programa Minha Casa Minha Vida-Entidades (MCMV-En), um dos poucos exemplos até o momento no Rio de Janeiro de controle total do cidadão sobre o processo de planejamento de sua moradia pública.
“O governo da cidade do Rio é muito fechado à participação. Ele, no mínimo, tem que instalar e atualizar os conselhos de bairro em toda a cidade. Nenhuma intervenção urbana pode ser implementada sem a participação efetiva das comunidades. Isto é consagrado no Estatuto da Cidade. Não estou falando de nada que não esteja na lei.” – Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ / IPPUR)
3. Projetar leis de zoneamento das favelas que protegem os preços acessíveis das mesmas
As favelas são o mercado habitacional a preços acessíveis do Rio de Janeiro e, sem moradias suficientes para atender as necessidades de habitação a preços acessíveis, devem ser protegidas como tais através do zoneamento, ou então, à medida que a especulação for introduzida, novas favelas precárias se formarão em outros lugares. Um exemplo seria o zoneamento promovendo pequenos lotes e a exclusão de atividades comerciais em larga escala ou a implementação correta da legislação de Áreas de Especial Interesse Social (AEIS) do Brasil.
“Quando a legislação proíbe lotes grandes e proíbe o uso comercial ou residencial em um nível elevado, o que está fazendo? Está protegendo os moradores. Em seguida, isola a área um pouco do mercado. Isso pode ser uma barreira que inibe a gentrificação.” – UFRJ / IPPUR
“Por lei, estas são Áreas de Especial Interesse Social. Eles devem ter um plano de atualização que está definido no Plano Diretor do Rio de Janeiro – uma lei de uso de ocupação discutida pela comunidade. Nenhuma das favelas têm isso, nem uma delas.” – UFRJ IPURR
4. Implementar a urbanização plena de favelas em toda a cidade
A cidade deve priorizar a urbanização em vez de remoções. Globalmente agora, a política urbana de senso comum, em relação à Nova Agenda Urbana, prioriza a urbanização. A legislação brasileira, os profissionais do planejamento urbano do país e os próprios políticos do Rio, que na década de 1990 instituíram o primeiro programa de urbanização de favelas em larga escala do mundo, por décadas já chegam nesta conclusão. No entanto, essa mensagem foi deixada para trás pelos responsáveis políticos no Rio desde 2008, quando o Favela-Bairro foi concluído e seu sucessor, o tão anunciado programa Morar Carioca, foi abandonado e efetivamente desmantelado pelo prefeito olímpico Eduardo Paes (2008-2016). Isso significa que, por quase dez anos, o Rio não experimentou nenhuma política de urbanização global das favelas. É hora de voltar a essa política, sob a forma de Morar Carioca ou uma versão melhorada.
“[O ideal] seria ter uma política de urbanização para tudo, para reforçar as casas que já existem. Assim, a estrutura da favela seria melhorada.” – Rocinha, Zona Sul
“Você tem que olhar para ambos os lados. Você tem que criar novas casas para resolver o déficit. E, por outro lado, é preciso melhorar a moradia já existente para superar o problema da moradia inadequada”. – UFRJ / IPPUR
5. Adaptar a implementação do programa federal Minha Casa Minha Vida para incluir um melhor design, priorizar áreas centrais e não usar o programa para vítimas de remoção
Como o programa habitacional federal Minha Casa Minha Vida (MCMV) é descentralizado, a cidade do Rio tem margem para adaptar a política de acordo com as necessidades da cidade. Deve reajustar drasticamente o atual programa mal implementado para melhor integrar as unidades de habitação pública no tecido urbano da cidade e inspirar-se nas qualidades positivas encontradas nas favelas do Rio. Em nível técnico, isso poderia envolver o fornecimento de moradias que podem ser facilmente adaptadas pelos moradores para atender às suas necessidades, garantir espaços públicos e a capacidade de realizar eventos e organizar coletivamente para construir um senso de comunidade, localizar habitações com melhor acesso a hospitais, emprego e escolas. As unidades habitacionais públicas são frequentemente demasiado pequenas, de 36m2. Para uma família de 4-5, o tamanho adequado para uma apartamento deve ser de cerca de 100m2.
“O programa deve ser projetado de modo que favoreça não apenas a construção de habitações em grande escala, mas de qualidade. Ou seja, moradia adequada às necessidades da população diversa, não projetos grandes, monótonos ou repetitivos.” – UFRJ/IPPUR
6. Garantir que serviços importantes como saúde, educação, transporte, lazer e saneamento sejam obrigados a acompanhar qualquer política habitacional, bem como medidas de participação sólidas
Um problema primário que muitos moradores de favelas descreveram não era a qualidade da habitação, mas sim o resto do ambiente construído de que dependem. Uma vez que a maior parte do salário de um morador típico vai para melhorar o ambiente doméstico, muitas vezes é a infra-estrutura pública dentro e ao redor das favelas é o que mais precisa de investimento. Seja no planejamento de habitações públicas ou no melhoramento das favelas, as políticas devem enfatizar a integração de todos os serviços urbanos na concepção do programa. Saneamento, educação e saúde são consistentemente os serviços considerados mais inadequados e, consequentemente, mais demandados pelos moradores das favelas em reuniões públicas.
“Primeiro, eu acho que você tem que colocar mais serviços. Não funciona ter a intenção de colocar habitação, sem colocar serviços. Hoje, por exemplo, temos um posto de saúde na Cidade de Deus que não atende a toda a favela. Precisamos de políticas públicas mais coletivas e que escutem a voz da população.” – Cidade de Deus, Zona Oeste
7. Oferecer títulos coletivos como uma opção para as comunidades que querem proteção adicional e têm fortes instituições comunitárias
O modelo de Termo Territorial Coletivo* (em inglês, Community Land Trust, ou CLT) poderia ser uma ótima opção para explorar entre as favelas onde os moradores estão mais interessados em garantir seus ativos coletivos e com a segurança da terra, do que com a capacidade de especulação dos moradores individuais.
“CLTs podem ser muito bons, desde que sejam negociados internamente. Eles não podem ser impostos de fora, porque isso não funcionaria. Eles têm de ser negociados entre os moradores que têm de ter informações sobre as vantagens e desvantagens de cada tipo de título. As CLTs podem proteger mais o morador e podem fortalecer as organizações internas.” – UFRJ/IPPUR
Série Completa: Lições das Favelas Cariocas para a Política Habitacional
Parte 1: Construção e Comunidade
Parte 2: Ação Coletiva e Necessidades Diversas
Parte 3: Desconfiança, Titulação e Gentrificação
Parte 4: Habitação Pública
Parte 5: Propondo Soluções
*A partir de junho de 2018, adotamos a nomenclatura ‘Termo Territorial Coletivo’ (TTC) para traduzir o conceito, em inglês, de ‘Community Land Trust’. Anteriormente, o conceito foi traduzido livremente como ‘Fundo de Posse Coletiva’. A nova nomenclatura melhor descreve o instrumento internacional que atualmente está sendo adequado às especificidades brasileiras, especialmente sob o aspecto jurídico.