Esta é a segunda matéria de nossa série de três partes sobre Economia Solidária no Brasil.
Com uma compreensão mais ampla sobre a economia solidária no Brasil em mente, os depoimentos dos próprios empreendedores participantes mostram as reais vantagens desse tipo de trabalho, desde evitar a exclusão do mercado, até a criação de novos espaços onde as mulheres estão reimaginando a divisão entre as esferas doméstica e produtiva.
Há mais de 300 empreendimentos econômicos solidários (EESs) participando das 14 feiras que compõem o Circuito Rio EcoSol, o circuito de economia solidária do Rio. Muitos dos participantes são de favelas, e muitos EESs se uniram em redes.
As Mulheres Guerreiras da Babilônia, por exemplo, formam uma associação de dez mulheres que fazem bolsas e acessórios com imagens de sua comunidade, incluindo imagens que representam mulheres fortes afro-brasileiras. Elas juntaram-se a outras EESs para formar uma rede de empreendedores de economia solidária do Pavão-Pavãozinho, Mangueira, Babilônia e Santa Teresa.
A Mara Adell Sustentável, uma associação no Complexo do Alemão, também está no ramo de bolsas e acessórios, mas com foco sustentável. Sua associação de oito pessoas reutiliza banners de PVC, garrafas de água e “qualquer coisa que eles possam obter em suas mãos” para reaproveitar como acessórios criativos. Mara Adell, importante líder da associação, formou uma rede de empresas de economia solidária no Complexo do Alemão, com 13 EESs, incluindo Mara Adell Sustentável, participando atualmente.
A Devas está funcionando no Complexo da Maré há 18 anos, produzindo roupas sustentáveis. Hoje há 12 mulheres participando, embora tenha havido 26 no auge da associação. A fundadora e facilitadora da Devas, Clarice Cavalcanti, desempenhou um importante papel de liderança nos esforços para que o Rio de Janeiro tenha uma política pública que dê mais apoio à economia solidária, conquistando algumas vitórias importantes. Hoje ela coordena quatro das 14 feiras que compõem o Circuito.
Por que economia solidária?
Então, por que essas pessoas, no caso muitas mulheres das favelas do Rio, vivem da economia solidária?
Sobrevivência e ideologia são os dois principais componentes importantes e interligados. Em alguns casos, a mesma pessoa é motivada por ambos os componentes: aqueles que sabem a partir da mais profunda experiência pessoal que “o capitalismo não é para todos e nunca foi“, nas palavras de Clarice Cavalcanti, às vezes acabam sendo mais profundamente convencidos de que outro mundo–e outro trabalho–são não só possíveis mas necessários.
Por outro lado, Mara Adell, do Complexo do Alemão, distingue entre “vendedores” e “militantes”, e existe certamente uma divisão na economia solidária entre aqueles que simplesmente vêem as oportunidades comerciais como uma estratégia de sobrevivência e aqueles que têm um comprometimento mais ideológico com a causa. Mara Adell explica que a rede de economia solidária do Complexo do Alemão que ela estabeleceu conta apenas com as 13 EESs mais comprometidas, porque muitos dos que inicialmente pretendiam participar só estavam interessados em vender produtos. Mara Adell esclarece que “aqueles bens vinham frequentemente da China; nós sabemos que eles são feitos com trabalho escravo, e isso não é economia solidária”.
Economia solidária e qualidade de vida
Clarice Cavalcanti vê como a vitória mais importante da economia solidária no Brasil a “organização social do trabalho”. Essencialmente, os esforços da economia solidária visam reparar as lacunas do mercado de trabalho e as deficiências sociais mais amplas. Isso acontece através de dois mecanismos principais:
- As EESs podem satisfazer uma necessidade de geração de renda onde a exclusão do mercado de trabalho–por meio de disparidades educacionais e discriminação espacial–é forte.
- As EESs podem fornecer espaços solidários de trabalho que atendam a uma necessidade de interação social que trate de trauma relacionado à pobreza e à violência.
Abordando a exclusão do mercado
Em 2016, o desemprego brasileiro saltou para 12%. Não há suficientes empregos bons no país e, além disso, com apenas 40% dos moradores de favela possuindo ensino médio ou superior, muitos não têm a escolaridade necessária para obter os empregos de qualidade que existem.
Além de desajustes entre habilidades e oportunidades, muitos moradores de favela enfrentam discriminação no emprego por causa de seu endereço. Isso é às vezes chamado de “discriminação espacial”. Clarice Cavalcanti, da Devas, aponta que muitos currículos são jogados fora quando um candidato registra um endereço no Complexo da Maré, ao ponto que os moradores da Maré muitas vezes registram o bairro vizinho de Bonsuccesso em seu lugar.
A pesquisadora Janice Perlman resumiu, de forma abrangente, a dinâmica de emprego das favelas, em um estudo de 2005, que revisitou os dados iniciais de pesquisa de 1969. Os moradores de favela pesquisados consideravam um “bom trabalho com um bom salário” (ou “trabalho decente com salário digno” no setor informal) como “o fator individual mais importante para uma vida bem-sucedida”–além de boa saúde, educação, habitação, posse da terra, governança e segurança pessoal.
Janice Perlman então destaca as principais barreiras ao alcance do bem-estar econômico hoje, em relação à pesquisa dela em 1969. Essas barreiras incluem:
- Padrões educacionais mais elevados como um requisito para acesso ao emprego devido a avanços estruturais na educação;
- Prejuízos nas indústrias da área metropolitana do Rio de Janeiro;
- Redução de empregos na construção após o boom das décadas de 1960 e 1970;
- Redução dos empregos no serviço doméstico, que eram a maior fonte de subsistência feminina em 1968, devido ao aperto dos orçamentos das classes médias, à automação e à disponibilidade de alimentos rápidos;
- Estigma generalizado contra os moradores das favelas.
O estudo de Janice Perlman mostra que moradores das favelas são bem conscientes da discriminação espacial: na percepção de barreiras ao bem-estar econômico, 84% dos entrevistados classificaram a residência nas favelas como uma das maiores barreiras, comparado a 80% indicando a cor da pele, 74% a aparência, 60% a origem, e 54% o gênero. Janice Perlman continua a ilustrar que, ao comparar as rendas entre moradores das favelas e outros moradores do Rio, há taxas drasticamente menores de retorno para o investimento educacional para aqueles que vivem nas favelas (controlando por outros fatores demográficos).
O que está claro é que os moradores das favelas são frequentemente excluídos das oportunidades de bem-estar econômico. Esta é uma discussão importante, especialmente dado o fato de que os moradores vêem um bom trabalho como uma chave para a mobilidade.
No entanto, até onde os postos de trabalho são acessíveis, ainda pode haver uma diferença entre os ganhos na economia tradicional e na economia solidária. Por exemplo, Clarice Cavalcanti aponta que cada orçamento de produto da Devas contabiliza custos de mão-de-obra de R$23 por hora, enquanto cita os custos de mão-de-obra típicos em uma oficina de costureira de R$2,50 a R$3 por hora.
Criando espaços de apoio
Salário, benefícios e condições de trabalho muitas vezes diferem entre o trabalho de economia solidária e os empregos da economia tradicional mais acessíveis a moradores de favela.
Quando as EESs são informais, há desafios à sua capacidade de proporcionar benefícios aos trabalhadores-membros. Isto sublinha a importância de criar formas jurídicas acessíveis para as EESs. Nos casos da Devas, Mulheres Guerreiras da Babilônia e Mara Adell Sustentável, todas estão registradas como associações e, portanto, têm a capacidade de pagar benefícios. Clarice Cavalcanti sublinha que as trabalhadoras-membros da Devas recebem benefícios da previdência social e que uma trabalhadora-membro recente, que tinha ficado grávida, foi capaz de tirar uma licença-maternidade, que não teria sido capaz de negociar em outras formas de emprego anteriormente disponíveis para ela.
Existem também benefícios informais para o trabalho numa EES, em particular para as mulheres chefes de família e as mães em geral. O Rio de Janeiro é uma cidade que tem relegado muitos trabalhadores de serviço aos morros e à periferia suburbana, fazendo do cuidado com as crianças um desafio para as mães que trabalham longe de casa, devido aos deslocamentos longos. As trabalhadoras-membros da EES freqüentemente vêm de comunidades onde seu local de trabalho está situado ou, em alguns casos, trabalham em casa, encontrando-se apenas para reuniões, organização e comercialização, o que permite maior flexibilidade para cuidar dos filhos.
Numa cooperativa de economia solidária de serviços alimentares no Rio Grande do Sul, durante o trabalho de campo conduzido com minha colega, a psicóloga Marilene Liége Daros, e os membros da cooperativa, as trabalhadoras-membro falaram muito sobre essas dinâmicas:
“Aqui você pode sair correndo se sua filha doente tiver um problema em casa, por exemplo. Porque dá para ir a pé, sabe? Esse era o objetivo.”
“Se você está cinco minutos atrasado para o trabalho regular, você está na rua no dia seguinte.”
“Ontem nenhum de nós pôde vir devido a (programação de) protestos, por isso decidimos vir sexta-feira.”
Realizamos um exercício pedindo a essas trabalhadoras-membros que comparassem o trabalho tradicional e o trabalho da economia solidária através da livre associação:
Trabalho Tradicional | Trabalho de Economia Solidária |
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Reimaginando a relação entre vida privada e vida profissional
Emprego que obscurece a linha entre cuidar da vida doméstica e o trabalho formal pode parecer um retrocesso para os direitos das mulheres, relegando as mulheres à esfera privada, sem oferecer oportunidades para o avanço profissional. Além disso, as EESs neste artigo são todas em indústrias que podem ser consideradas tipicamente femininas: artesanato, alimentação, alfaiataria.
No entanto, como argumenta a socióloga brasileira Helena Bonumá, os arranjos da economia solidária podem trazer “o privado para a esfera produtiva”, reimaginando ambas as esferas e “destacando a esfera reprodutiva como fundamental para a produção da vida”. No exemplo dos serviços de alimentação cooperativa, a liberdade das trabalhadoras-membros de responder às necessidades da família tem influência nos arranjos de trabalho, e sua constante reflexão sobre a vida familiar é indicativa disso.
De fato, muitas estudiosas feministas apontam para a rigidez da divisão entre as esferas públicas do trabalho e as esferas privadas do trabalho doméstico como parte fundamental da manutenção de estruturas que são opressivas para as mulheres. A proeminente cientista política feminista Nancy Fraser disse que “não pode haver ’emancipação das mulheres’ desde que essa estrutura […] de gênero, de divisão hierárquica e diferenciada entre ‘produção’ e ‘reprodução’ permaneça intacta”.
Muitas mulheres em comunidades de baixa renda do Brasil estão envolvidas tanto na produção como na reprodução como chefes de família, ou estão envolvidas em trabalhos de cuidado em dois contextos–para sua própria família, bem como sendo empregada por uma família mais rica. Nessa segunda circunstância, Nancy Fraser observa que é importante estar ciente das maneiras pelas quais um feminismo de buscar ascender no ambiente tradicional de trabalho (masculino) significa “apoiar-se” na mão de obra feminina barata: na estrutura atual, as mulheres na classe profissional-gerencial só podem se beneficiar de mais tempo gasto em suas carreiras se elas dependem de outros para o trabalho de cuidados e de casa. Este pode ser um parceiro que apóia, mas é muitas vezes uma empregada de baixa renda.
Uma história de organização comunitária e política
Uma história de sucesso bem conhecida nos círculos da economia solidária brasileira e que destaca como as EESs podem oferecer uma alternativa ao feminismo “que se apóia” é a da Univens, uma cooperativa de alfaiataria em Porto Alegre. Quando membros da Univens tiveram dificuldade sem ninguém para cuidar de seus filhos, foi criada uma creche comunitária. A cooperativa oferece cursos, que os membros sentem que são especialmente importantes, pois o crack tem uma forte presença no bairro. Eles estão interessados em expandir essas aulas de alfaiataria para teatro, pintura e outros programas culturais. Os cursos começaram com 18 pessoas, mas agora têm uma grande lista de espera. A Univens também tem um fundo de solidariedade para ajudar com crises na comunidade e está pensando em criar um banco comunitário.
A líder Nelsa Nespolo atribui o sucesso da cooperativa a três fatores importantes: primeiro, os relacionamentos–todos na cooperativa vivem no bairro e continuarão a se ver na comunidade, não importa o que aconteça na cooperativa; em segundo lugar, a experiência com a organização–Nelsa já esteve envolvida na organização de jovens e trabalhadores de fábricas, o que leva a uma compreensão das práticas democráticas; e, finalmente, a transparência–há um bom controle financeiro na cooperativa e, devido à transparência, nunca houve um problema com a aplicação dos recursos internos. Possivelmente como um fator transversal, Nelsa aponta que a Univens não quer crescer além de 30 pessoas, porque sua democracia interna funciona bem nesta escala.
A história da Univens é de organização comunitária e política. Há vinte anos, nesse bairro, os moradores não tinham nenhuma infraestrutura em termos de ruas pavimentadas ou coleta de lixo. Naquela época, a política de orçamento participativo da prefeitura de Porto Alegre teve um enorme impacto–o bairro se uniu para pedir que as necessidades fossem atendidas uma rua de cada vez. Em face do alto desemprego na década de 90, as mulheres do bairro começaram a se unir para ganhar dinheiro através do trabalho de costureira. Inicialmente trabalhando em suas casas, elas finalmente começaram a cooperativa. Não havia apoio para as cooperativas na época, então artigo por artigo elas criaram seu próprio estatuto, modelado a partir de uma cooperativa de habitação. Hoje elas têm previdência social, licença de férias (dez dias em julho e 20 dias em fevereiro), licença por motivo de doença e saldo positivo no final do ano.
Dadas as realidades de dupla jornada e de trabalho não remunerado no domicílio, EESs como Univens, que re-imaginam a relação entre o lar e o trabalho, podem ser liberadoras, mesmo que não se encaixem em certas noções ocidentais sobre o avanço das mulheres. De fato, as EESs podem ser um meio para que os empreendedores da economia solidária construam uma cidadania mais participativa, que será o tema do artigo final da série.
Anna Cash realizou uma pesquisa sobre a economia solidária como uma plataforma para aumentar a inclusão social, em 2015, na área metropolitana de Porto Alegre, como parte de uma bolsa Fulbright em parceria com o Grupo de Pesquisa Ecosol da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), com a orientação do Professor Luiz Inácio Gaiger. Atualmente, ela é mestranda em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade da Califórnia em Berkeley.
Série Completa: Economia Solidária no Brazil
Parte 1: Desenvolvimento Criativo no Rio e Além
Parte 2: Mulheres Protagonistas
Parte 3: Expandindo a Cidadania nas Favelas Brasileiras