Modelos de Termos Territoriais Coletivos* e Cooperativas Habitacionais do Mundo Todo

Click Here for English

Esta é a matéria final de uma série de três que resume relatórios sobre leis habitacionais no Brasil, organizados pelo Cyrus R. Vance Centro para Justiça Internacional (Cyrus R. Vance Centro para Justiça Internacional) a pedido da Comunidades Catalisadoras. O segundo relatório, resumido em parte abaixo, foi produzido por Freshfields Bruckhaus Deringer US LL. Para ler o relatório original em inglês, clique aqui.

Como foi abordado na matéria anterior sobre Termo Territorial Coletivo* (Community Land Trust, ou CLT, na sigla em inglês), os valores ofertados no mercado habitacional por definição não atendem as demandas de acessibilidade das camadas socioeconômicas mais baixas (normalmente 20-30%) da população de uma cidade. Logo, transferir a habitação das favelas para o mercado formal não vai atender as necessidades desse grupo–isso vai apenas desloca-los, causando a formação de novas favelas com menos infraestrutura. Sendo assim, estamos explorando opções alternativas frente a titulação individual para garantir habitações acessíveis de longo prazo e a regularização fundiária para os moradores das favelas.

O Termo Territorial Coletivo começou no Estados Unidos como um modelo de regularização fundiária que emergiu do movimento de direitos civis no Sul. O CLT tem ganhado popularidade aos poucos com o passar das décadas, se expandindo bastante nos últimos anos. Ele tem se espalhado através dos continentes e contextos, resultando numa abundância de regras e estruturas. Aqui nós destacamos exemplos específicos de CLT e habitação cooperativa ao redor do mundo em destaque no relatório Freshfields, que poderiam ser modelos informativos ao considerar o potencial das favelas do Rio para serem tituladas coletivamente usando o formato do CLT, ou então pegando emprestado algumas lições da habitação cooperativa.

Estados Unidos: Champlain Housing Trust

CLTs nos Estados Unidos têm se tornado mais comuns ao longo do processo em que várias formas do “habitação do terceiro setor” têm emergido à parte das opções habitacionais tradicionais–do mercado privado e público. A Champlain Housing Trust (CHT) é a maior de pelo menos 240 CLTs nos Estados Unidos, e é localizada em Champlain, no estado de Vermont. A CHT administra 2.200 apartamentos e supervisiona 565 casas próprias. Para dar suporte aos seus membros, é provido o ensino da melhor forma de se comprar uma casa, aconselhamento financeiro, serviços de eficiência energética a preços acessíveis e empréstimos para reparos residenciais.

A CHT começou com um empréstimo de US$200.000,00 com o objetivo de aumentar o número de oportunidades de aquisição de casa própria a preço acessível, prover acesso a terrenos para moradores de baixo poder aquisitivo e promover a preservação e melhora do bairro. Como uma organização sem fins lucrativos, a CHT serve moradores cuja renda não é maior que 80% da renda média da área em que se encontram.

Assim como muitos outros CLTs, a CHT tem um conselho de administração dividido em terços e eleito por moradores: um terço dos membros é constituído por moradores da CHT, outro terço por moradores de áreas próximas, e um último terço abrange autoridades municipais e representantes regionais, os quais se presume que falam pelos interesses do povo (em outras CLTs esse último terço é frequentemente compreendido por especialistas técnicos, como engenheiros, contadores, planejadores, arquitetos, advogados ou assistentes sociais). Em particular, o conselho de administração da CHT é composto de 15 pessoas. Os moradores da CHT obtêm suas parcelas de terra através de arrendamentos de longo prazo por 20 anos. Eles fazem um contrato onde eles têm pleno direito ao terreno, mas só recebem 25% da valorização do valor da terra no caso de optarem por vender a sua propriedade. Essa fórmula permite que os moradores recuperem seu investimento inicial, o capital ganho obtido pelo pagamento em garantia e o valor pré aprovado de aumento de capital, bem como 25% do valor da valorização da terra. É para ser justo, mas também para permitir que a habitação permaneça acessível para os futuros moradores, como foi para eles.

Reino Unido: Termo Territorial Coletivo de Londres (London CLT)

O CLT de Londres está quase terminando as casas CLT no espaço abandonado do hospital St. Clements em Mile End, no Leste de Londres, e será a primeira CLT do Reino Unido localizada numa área urbana (existem mais de 225 em áreas rurais). O London CLT é uma organização sem fins lucrativos aberta para a adesão a qualquer pessoa que vive e trabalha em Londres, atualmente com mais de 1.000 membros. Imobiliárias concorreram pela parcela de 4,5 hectares de terra e foi só após algumas tentativas fracassadas, para garantir o local da St. Clements, que o London CLT finalmente teve sucesso em parceria com uma imobiliária, mas mantendo um compromisso com um processo de planejamento liderado pela comunidade.

O London CLT é governado por regras que permitem que ele funcione fora dos preços típicos de mercado. O London CLT criou uma organização separada que é encarregada de alugar os apartamentos a cada ano e, posteriormente, reinvestir os lucros na comunidade. Sob o modelo do London CLT, todas as casas devem ser propriedade da CLT a fim de garantir a manutenção de aluguéis acessíveis, e essas casas estão disponíveis apenas para os moradores locais. As taxas de aluguel devem ser decididas pela renda local ao invés de taxas de mercado tradicionais.

O site do London CLT explica que a campanha para se criar um Termo Territorial Coletivo surgiu em torno dos planos para a área do Parque Olímpico e afirma que as autoridades Olímpicas ainda não garantiram o número de casas acessíveis inicialmente prometido como legado olímpico durante o processo de licitação.

Quênia: Termo Territorial Coletivo de Bondeni

No Quênia, as questões de posse da terra são de alta prioridade porque os métodos pré-coloniais de posse da terra eram mais baseados na comunidade do que nas estruturas legais atuais, o que levou a sérios conflitos sobre os direitos à terra.

O Termo Territorial Coletivo de Bondeni foi fundado na década de 1980 como uma forma de resolver o complexo problema dos assentamentos urbanos dentro de cidades menores no Quênia. O plano de implementação recebeu importantes contribuições da comunidade graças a uma mobilização sustentada por moradores locais, que estavam determinados a permanecer informados e envolvidos no processo. Os moradores foram identificados, registrados e suas necessidades discutidas e priorizadas, após as quais foi formado um comitê para representá-los.

60% das famílias dos assentamentos possuem suas estruturas habitacionais, 30% são inquilinos, e 10% são inquilinos que vivem com os proprietários das estruturas. A terra é detida pela comunidade, mas o conselho municipal local fornece treinamento e apoio técnico para a colocação de redes de esgoto e canos de água, bem como um escritório para o comitê dos moradores. Moradores são donos de qualquer desenvolvimento no seu lote de terra e podem legar, herdar ou vendê-los de volta para o Fundo Bondeni de acordo com uma fórmula de revenda específica.

O Termo Territorial Coletivo de Bondeni foi financiado por empréstimos do governo central e uma instituição alemã, e foi construído em terras doadas pelo governo municipal. Existem dois órgãos principais que regem a CLT: a “sociedade”, que está encarregada dos assuntos cotidianos da organização comunitária, e os “agentes fiduciários”, que se preocupam com questões administrativas, tais como: a emissão de arrendamentos, a determinação de taxas para o aluguel de terras e a tomada de decisões de uso da terra.

Os desafios incluem a falta de participação das mulheres, apesar da garantia de “lugares reservados” para as mulheres nos órgãos de governança do Fundo, e uma falta de oportunidades de treinamento de liderança, alfabetização e programas de línguas.

Suíça: Habitação Cooperativa, a solução de Zurique para a falta de regulação de terra

Em Zurique, bem como no Rio de Janeiro, não há regulamentos sobre os preços da terra ou controle de alugueis (que são uma estratégia comum para conter os aluguéis desde Washington, DC e Nova Iorque até Los Angeles). Para manter um estoque de habitação a preços acessíveis para os que a precisam, a prefeitura ou constrói e detém apartamentos para pessoas necessitadas (9.700 unidades), ou subsidia a construção de habitação a preços acessíveis por organizações sem fins lucrativos (6.700 unidades). Porém a maioria das unidades acessíveis na Suíça são propriedade de cooperativas (aproximadamente 40.000 unidades). Essas organizações obrigatoriamente são sem fins lucrativos e para fins residenciais. Os governos locais aprovam as taxas de aluguel e têm um representante no conselho de administração das cooperativas. Os estados locais também devem aprovar as contas das cooperativas e são responsáveis por disputas entre inquilinos e moradores de cooperativas.

O governo federal também cumpre um papel importante no financiamento das cooperativas, regula o espaço padrão mínimo, e produz pesquisas sobre habitação a preços acessíveis. A Associação Nacional de Cooperativas aloca dinheiro federal para cooperativas como empréstimos de 10 anos com baixa taxa de juros. Recentemente, cooperativas que enfatizam casas ecológicas e conservação de energia têm recebido mais fundos. Três exemplos de cooperativas em Zurique são:

  • Kraftwerk, criado em 1995 por estudantes ativistas que levantaram 20% do dinheiro para financiar a compra do local. Existem 91 unidades habitacionais, escritório, duas lojas e um café na propriedade.
  • Dreiecke, originalmente um quarteirão da cidade confiscado pelo governo nos anos 1970 para construir uma estrada. Quando a proposta da estrada não foi terminada, o local de moradia ficou em desordem. A cidade quis demolir as propriedades, mas a resistência conduziu à criação de um CLT para manter habitações acessíveis para aqueles que já estavam estabelecidas no terreno.
  • Karthago é uma cooperativa no local de um antigo showroom da Toyota. Um grupo local de ativistas criou a cooperativa com a proposta de converter o prédio em 25 unidades habitacionais, incluindo uma cozinha compartilhada e área de comer.

Uruguai: Habitação familiar e cooperativa Nuevo Amanecer, COVIFAM, e Cooperativa Ufama al Sur

Cooperativas habitacionais surgiram no Uruguai em 1968, na sequência de uma crise de habitação generalizada. O sistema é chamado de “cooperativa de auxílio mútuo” e depende do trabalho físico conjunto de seus membros, que devem contribuir com pelo menos 10% do trabalho e capital para construir as casas. Uma vez que os membros têm coberto os custos da habitação através de pagamentos mensais, tornam-se proprietários das propriedades.

Nuevo Amanecer (NA) é localizado em Montevidéu e consiste em 423 famílias. A comunidade foi construída nos arredores da cidade e homens e mulheres foram requisitados a contribuir com 21 horas de trabalho duro toda semana na construção. Casas foram construídas para atender famílias de diferentes tamanhos e necessidades, e a comunidade construiu com as próprias mãos todo o sistema de infraestrutura, como rede de água e eletricidade.

A Cooperativa de Habitação e Família (COVIFAM) é membro da federação nacional de 300 cooperativas de habitação. Semelhante a Nuevo Amanecer, membros da comunidade contribuíram para a construção da comunidade. Cada família tem o direito pleno de usar sua casa, mas as casas são de propriedade da cooperativa. Todas as decisões tomadas na cooperativa são democráticas e são realizadas através de reuniões semanais que continuam mesmo após a conclusão da construção.

Finalmente, a Cooperativa Ufama al Sur foi criada em 1998 por uma organização local de base comunitária. Esta cooperativa específica é formada por famílias afro-uruguaias chefiadas por mulheres que vivem em um prédio abandonado que foi vendido à cooperativa pelo município a uma taxa subsidiada para criar 36 apartamentos.

Bolívia: “Habitat para la mujer”–a Comunidade Maria Auxiliadora

Localizada em Cochabamba, o projeto de moradia de mulheres–de base e gestão comunitária–na comunidade Maria Auxiliadora enfatiza o papel das mulheres nas posições e decisões de liderança, de tal forma que a posição de liderança na comunidade é reservada a uma mulher, a ser elegida para um mandato de dois anos. O projeto foi criado em 1999 por um grupo de chefes de família sem teto, que obteve um empréstimo de US$36.000 para financiar a compra de um terreno de 17 hectares. Depois que o terreno foi dividido, os moradores originais tiveram a oportunidade de construir no terreno ou de sair da comunidade depois de receber um reembolso apropriado para a local.

A partir de janeiro de 2014, um total de 152 casas foram construídas, além de uma série de instalações comunitárias, e 250 famílias de baixa renda adquiriram terras lá. As famílias de baixa renda com filhos e, em particular, as famílias chefiadas por mulheres que são sem-teto têm prioridade no processo de seleção. Ganhando reconhecimento, os projetos iniciados e gerenciados pela comunidade Maria Auxiliadora têm aproveitado o apoio de numerosas ONGs e demonstraram que as condições de vida das famílias de baixa renda podem ser grandemente melhoradas com pouco financiamento externo, desde que os recursos próprios das famílias sejam mobilizados e canalizados através de esquemas de poupança, formas tradicionais de solidariedade e de ajuda mútua, mutirão e acesso ao crédito. Embora seja importante para a comunidade manter a autonomia e o controle do processo, o apoio das ONGs tem sido crucial para o sucesso da comunidade Maria Auxiliadora.


Série Completa: Leis Habitacionais no Brasil

Parte 1: O Que as Leis Brasileiras Dizem Sobre o Direito à Habitação?
Parte 2: A Favela como Fundo de Posse Coletiva: Uma Solução para Evitar a Remoção e a Gentrificação?
Parte 3: Modelos de Fundo de Posse Coletiva e Cooperativas Habitacionais do Mundo Todo

*A partir de junho de 2018, adotamos a nomenclatura ‘Termo Territorial Coletivo’ (TTC) para traduzir o conceito, em inglês, de  ‘Community Land Trust’. Anteriormente, o conceito foi traduzido livremente como ‘Fundo de Posse Coletiva’. A nova nomenclatura melhor descreve o instrumento internacional que atualmente está sendo adequado às especificidades brasileiras, especialmente sob o aspecto jurídico.