Esta é a terceira e última matéria de nossa série de três sobre Economia Solidária no Brasil.
Os empreendimentos de economia solidária vão além da lógica de que “qualquer trabalho é um bom trabalho” as vezes usada em tentativas de combater a exclusão do mercado de trabalho. Ao invés disso, estes espaços de trabalho com suporte holístico podem ajudar os empreendedores da economia solidária a transformar a “cidadania do consumidor” em uma cidadania participativa mais profunda, tornando-os protagonistas.
Mas o que significa cidadania em um contexto de políticas institucionais não confiáveis e em uma realidade onde as pessoas se encontram isoladas de uma educação de qualidade e de serviços públicos básicos? Enquanto alguns estudiosos se referiram à condição de pessoas que vivem em áreas periféricas de cidades no século 21 como subcidadania, o sociólogo português Boaventura de Souza Santos argumenta que a cidadania não pode ser adquirida por meio da simples concessão de direitos a essas pessoas. Ao contrário, a obtenção da cidadania requer a transformação de processos globais de socialização e modelos de desenvolvimento. Na prática, os direitos não estão lá esperando para ser acessados. Mesmo com ascensão no status socioeconômico, essas pessoas podem vir a precisar de uma ação coletiva.
O antropólogo James Holston escreve sobre o que ele considera como uma “cidadania inclusiva desigual” caracteristicamente brasileira. É a combinação de dois componentes conflitantes: filiação formal e princípios de incorporação ao estado-nação (estabelecido pela Constituição de 1988 quando o país fez sua transição para a democracia), junto com “a distribuição substantiva de direitos, significados, instituições e práticas que a filiação ocasiona para aqueles considerados cidadãos”. Considerando que estes dois fatores muitas vezes estão em desacordo, Holston investiga o que ele chama de “cidadania insurgente”, uma forma de enfrentar essa lacuna nos direitos formais e substantivos de um modo insurgente nas periferias, através da autoconstrução da periferia, de protestos e petições e de identidades que desafiam as normas de exclusão da sociedade e da cidadania.
Poderia ser argumentado que as iniciativas de economia solidaria são um exemplo de “cidadania insurgente” e de modelos transformadores de socialização e desenvolvimento. O sociólogo Pedro Demo resume a capacidade de acessar os direitos de cidadania como um tipo de ação, descrevendo a cidadania como “a capacidade humana de se tornar um indivíduo, de fazer sua própria história organizada coletivamente”. Ele argumenta que as bases desse tipo de capacidade crítica são construídas através da educação, organização política, identidade cultural, informação e comunicação.
Então, quais são os direitos que os atores da economia solidária estão se organizando para acessar, ou para estabelecer de forma significativa, para si mesmos e para suas comunidades? O sociólogo Paulo Henrique Martins divide os direitos de cidadania em três categorias: direitos civis (liberdades individuais, igualdade, propriedade e segurança), direitos sociais ao bem-estar e bem social (direito ao trabalho, saúde, educação e aposentadoria), e direitos políticos (participação eleitoral e liberdade de associação, reunião e organização política e sindical).
Direitos Sociais e Economia Solidária
Em termos de direitos sociais, empreendimentos econômicos solidários (EESs) oferecem aos membros-trabalhadores, meios de construir acesso a condições de trabalho dignas, tanto com relação ao espaço físico de trabalho como em termos de benefícios informais, tais como flexibilidade de horários e ausência de ameaça de rescisão inesperada.
As EESs também proporcionam aos trabalhadores um canal de acesso à educação continuada por meio de organizações de apoio, como incubadoras de empreendimentos universitários de economias solidária ou, no caso do Rio, a Secretaria de Desenvolvimento Econômico Solidário. Além disso, um outro direito social que a participação nas EESs pode favorecer é a exposição a novos espaços físicos através de oportunidades de comercialização, como o Circuito Rio EcoSol, que tem o potencial de alterar o relacionamento do membro-trabalhador com sua cidade e consigo mesmo como protagonista.
As condições de trabalho vão além de dignidade (trabalho não-abusivo), sendo geradoras também de ganhos positivos referentes ao bem-estar, tais como benefícios terapêuticos da socialização, com referência a trauma, depressão e dependência de drogas. “Fuxico saindo da boca, criando fuxico com as mãos”. Eu ouvi isso pela primeira vez numa alfaiataria coletiva em Porto Alegre. Uma mulher tocou a garganta e uma outra a língua, enquanto me explicavam o significado da frase: “Fuxico–fofoca–sai de nossas bocas, enquanto fazemos fuxico com nossas mãos”.
Eu ouvi isso de novo quando Clarisse, da Devas, uma associação que fabrica roupas de forma sustentável no Complexo da Maré, na Zona Norte do Rio, me contou que a própria Devas nasceu de um “grupo de fuxico”. Ela explicou que um projeto na Clínica de Saúde da Maré, no início da década de 90, ensinou mulheres a costurar, incluindo como fazer flores de fuxico, e juntas elas se engajaram também no outro significado da palavra fuxico, discutindo sobre “dramas pessoais, crianças que morreram, crianças que se envolveram em crimes e o impacto do tráfico na comunidade”.
A assistente social que trabalha com as costureiras da cooperativa Univens, em Porto Alegre, relatou que a primeira coisa que ela notou sobre o grupo é que “vai além da produção”. Esse além inclui, segundo ela, “a troca de informação e o fortalecimento dessas mulheres como pessoas”. A conversa no grupo não é apenas fofoca, é também uma forma de arejamento dos problemas pessoais, um espaço para dar e receber conselhos, e para falar sobre as questões da comunidade.
O fato de que mulheres se reúnem para fofocar e desabafar sobre suas vidas poderia ser menosprezado. No entanto, levando em conta o contexto de algumas dessas mulheres, fica claro porque esse espaço é tão essencial. Como definido pela assistente social, “esse é o espaço”. Ela explicou que muitas das mulheres acabaram socialmente isoladas em razão de questões de segurança em suas comunidades, ou por agendas sobrecarregadas entre trabalho e cuidados, especialmente para aquelas mulheres que são chefes de família.
Embora esse isolamento não seja uma realidade universal em todas as favelas ou outras comunidades de baixa renda, que podem ser espaços altamente sociais, muitas das mulheres com quem eu conversei durante minha pesquisa fizeram referência a ele, e talvez tenham procurado o trabalho coletivo por essa razão. Mesmo em comunidades com alto grau de interação social, pode haver uma diferença entre espaços de trabalho de economia solidária e outros espaços estritamente sociais em relação aos temas que são fundamentalmente discutidos.
Uma das integrantes da cooperativa de costureiras de Porto Alegre deu voz a essa questão: “Como eu cuido do meu filho portador de deficiência, não tenho outros espaços onde possa encontrar amigos”. Outra participante do mesmo grupo chorou explicando como o grupo é uma família para ela.
Clarice, do grupo Devas, acredita que “pertencer a um grupo” fora da família é essencial para todo mundo. Ela identificou parte da importância do grupo como a oportunidade de lidar com violências relacionadas a traumas: “Se houve um tiroteio hoje, a violência te deixa mal, mas o grupo faz você forte, você tem pessoas para falar a respeito, pessoas para saírem com você”.
De fato, os temas de depressão e a natureza terapêutica do grupo vieram à tona nas entrevistas realizadas com Clarice, do grupo Mulheres Guerreiras de Babilônia, e também com as costureiras e participantes do grupo de produção coletiva de alimentos do Rio Grande do Sul. Na Devas, uma mulher que sofria de depressão grave e ataques de pânico assumiu um papel de liderança dentro da associação. Clarice fala sobre a história dela: “A sociedade nos diz que, enquanto mulheres, não somos capazes de nada, e aqui nós trabalhamos contra isso”. As costureiras do grupo Babilônia resumem seu trabalho de forma simples: “É terapia”.
Na cooperativa de alimentos no Rio Grande do Sul, os membros definem o trabalho da seguinte forma: “é um tempo puro” e “isso aqui é o paraíso, você esquece de tudo, e faz o que gosta. Antes eu me sentia sozinha; aqui eu falo o que sinto”. Uma outra participante que sofreu de depressão debilitante fala: “Esse trabalho representa não ficar focada nas coisas que me incomodam. Sair de casa e me manter ativa, então as coisas que me incomodavam internamente vão embora. É esperança”. De fato, a liderança dessa cooperativa teve essa ideia em mente desde o principio: “A cooperativa é um sonho, é camaradagem, ele resguarda coisas que somente podem ser faladas no grupo. Com quem mais você diria essas coisas?”
As EESs também apoiam a educação continuada, através da criação intencional de habilidades. Frequentemente membros do grupo ensinam uns aos outros novas habilidades. E, através de processos de treinamento com a sociedade civil ou atores do setor público, os trabalhadores membros aprendem novas habilidades técnicas, gerenciamento de negócios e como trafegar por outros serviços.
Mara Adell, líder da Mara Adell Sustentável no Complexo do Alemão, me contou que o treinamento que ela fez através da SEDES foi “tudo”. Ela explicou: “Antes, eu não estava separando a renda domiciliar da renda do negócio. Eu não tinha ideia de quanto lucro meus produtos estavam rendendo”. No caso das EESs do Rio Grande do Sul, eles estavam mais engajados com incubadoras de empreendimentos universitários de economia solidária do que com agencias governamentais. Embora o apoio técnico muitas vezes fosse exaustivo, em outros casos foi bem recebido, em razão das habilidades aprendidas e pelas oficinas sobre temas mais amplos, como o funcionamento de agências governamentais locais.
Finalmente, saúde é um outro direito social cujo acesso pode ser ampliado pela participação em EES. Flexibilidade significa não só que os cuidadores são capazes de atender melhor os membros de suas próprias famílias, mas também que, em muitos casos, são capazes de cuidar melhor da própria saúde. Por exemplo, dois dos membros da cooperativa de alimentos do Rio Grande do Sul foram capazes de continuar trabalhando, apesar de graves lesões músculo-esqueléticas que os impediram de continuar em seus empregos anteriores.
Direitos Civis e Economia Solidária
Em termos de direitos civis, os direitos fundamentais de liberdade e segurança estão implicados no papel que as EESs desempenham como espaço de apoio para mulheres em situações de violência doméstica. Essa dinâmica esteve presente em pelo menos dois casos de associadas da cooperativa de alimentos do Rio Grande do Sul. Uma dessas mulheres disse que, para ela, parte da importância da cooperativa era que “aqui eles levam você à sério”, enquanto ela relatava que muitas vezes não acreditava quando compartilhava episódios de violência domestica com pessoas fora da cooperativa. Clarice, da Devas, parafraseou uma das cooperadas que saiu de um relacionamento abusivo com o apoio da cooperativa: “Antes, se ele me maltratasse, eu não tinha para onde ir. Agora eu sei que poderia vir aqui para dormir”.
Direitos Políticos e Solidariedade Econômica
Em termos de direitos políticos, os laços de solidariedade entre os membros, que nascem da participação nos EESs, podem ser plataforma para ações coletivas. A extensão com que esses membros dos EESs acessam esse potencial é mediada por diversos fatores, tanto pessoais como relativos ao grupo, incluindo experiências com ativismo, obstáculos existentes às ações coletivas, liderança interna e tipos de assistência externa presentes.
Além disso, o tipo de ação coletiva varia, em alguns casos específicos voltada para espaços de movimento da Economia Solidária (fóruns, conselhos, etc.) e em outros casos requerendo uma ação comunitária mais ampla. Praticar a democracia no âmbito da gestão coletiva do EES pode funcionar como um espaço para o desenvolvimento de liderança que se traduz no envolvimento com a ação coletiva, embora esse seja limitado ao contexto dos EESs onde o gerenciamento coletivo é informal e desestruturado.
O fato de que os EESs estão radicados em comunidades de membros-trabalhadores, e oferecem um espaço regular para se reunir e falar sobre dinâmicas da comunidade, pode levar a uma maior participação comunitária. Na confecção coletiva do Rio Grande do Sul, o grupo discute constantemente questões da comunidade, e um membro foi capaz de falar, na universidade, em uma reunião com a sociedade civil, sobre as dinâmicas de sua comunidade. Isso ocorreu através do apoio técnico de uma incubadora universitária, e demonstra uma função política de conexões com esses atores da sociedade civil. A cooperativa de serviços alimentícios do Rio Grande do Sul também se envolve constantemente em discussões sobre a comunidade e seus desafios. No Rio, Clarice diz que os membros tornaram-se mais ativos nas Associações de Moradores da Maré, enquanto Mara Adell relata que os membros passaram a usar mais serviços da comunidade do Alemão agora que eles têm sua base de trabalho situada na comunidade e podem trocar informações.
Os EESs buscam frequentemente retribuir suas comunidades de forma direta. A cooperativa de serviços alimentícios funcionava anteriormente num espaço comunitário com oportunidades para educação popular, contudo isso acabou junto com a administração de um governo municipal mais progressista que subsidiava a atividade. A Mara Adell Sustentável é subsidiada pela empresa de material de construção LafargeHolcim, e, em troca do espaço gratuito, a cooperativa ministra cursos de costura e reaproveitamento de materiais no Complexo do Alemão. O grupo também cede seu espaço para eventos culturais com empreendedores locais, que pagam apenas pela manutenção dos equipamentos proporcionalmente ao seu uso.
Fora de suas comunidades, o aumento da interação com diferentes tipos de atores também representa uma maior liberdade de mobilidade e até mesmo uma reivindicação insurgente ao “direito à cidade” dessas mulheres. A Constituição Brasileira de 1988 estabeleceu “o direito de ir e vir” e o plano diretor da cidade do Rio de Janeiro, de 1992, afirma explicitamente o objetivo de “integrar as favelas à cidade formal” e “preservar seu caráter local”. A busca pelo acesso real ao direito de ir e vir tem sido uma questão central em muitas lutas recentes das favelas por direitos, especialmente porque os moradores de favelas continuam sendo injustamente estigmatizados no asfalto ou cidade formal.
As feiras do Circuito de Economia Solidária acontecem tanto na periferia como nas áreas centrais, em alguns dos espaços mais proeminentes da cidade. Dado isso e a dominância dos moradores de favelas no Circuito, as feiras podem ser vistas como um espaço de interação entre a favela e a cidade formal, uma forma do “morro descer”, enquanto essas mulheres afirmam seu direito à cidade. Como diz Ana Asti, “a amplitude em que os produtores e consumidores interagem diretamente nas feiras do Rio é uma característica definidora”. A cidadania insurgente e sua ação não ocorrem apenas por meio de marchas, protestos e manifestações, mas também através de praticas mais cotidianas para reivindicar espaços públicos.
Conclusão
A participação na economia solidaria através do trabalho coletivo realizado nos EESs pode ser uma oportunidade para todo tipo de pessoa, mas especialmente para aqueles que vêm sendo sistematicamente marginalizados com relação às oportunidades econômicas e a muitos outros direitos como cidadãos. Para moradores de favelas e outras comunidades economicamente desfavorecidas, por exemplo, os níveis educacionais e a discriminação podem agir como barreiras para “bons empregos”. ESSs podem ser “bons empregos”, não só do ponto de vista da geração de renda e aprendizagem de habilidades, mas também em termos de um local de trabalho não abusivo e flexível, em termos da criação de novos espaços de interação social (dentro e fora dos EESs), que possam aumentar a segurança, combater o isolamento e promover a alegria; e ainda em termos de aumentar a conscientização, engajamento e liderança da comunidade.
EESs deveriam ser avaliadas em função de sua lógica interna, que difere de empresa para empresa. Embora os EESs entrevistados no circuito de feiras do Rio estejam conseguindo prover uma remuneração digna para seus membros, o mesmo não se mostra como verdade para muitos dos EESs ouvidos no Rio Grande do Sul. Embora nem todos os EESs se mostrem financeiramente sustentáveis, seus membros acabam permanecendo neles, seja por falta de melhores oportunidades, seja em razão dos benefícios sociais compensatórios. A lógica interna de alguns EESs pode incluir oferecer às mulheres uma oportunidade de conciliar família e trabalho de uma forma mais conveniente do que nos espaços de trabalho convencionais. Isso pode ser considerado mais como uma radical reimaginação de como os diferentes tipos de trabalho são valorizados do que como uma regressão na luta pelos direitos das mulheres.
Em termos de política pública, a crise econômica e política que afeta o Brasil está levando a cortes em todos os tipos de programas sociais e instituições de economia solidária também estão sendo vítimas desse processo. No entanto, atores desse movimento apontam que, dada à natureza relativamente autônoma, protagonista e pós-desenvolvimentista das iniciativas de economia solidária, a necessidade de apoio governamental, embora importante, é mínima. EESs, como estratégia de desenvolvimento, não visam tornar os indivíduos completamente autossuficientes, mas sim ajudá-los a assumir papéis mais ativos em suas vidas, incluindo lutar por acesso a direitos que lhes são devidos enquanto cidadãos.
Atualmente, no Rio de Janeiro, onde o Circuito da Economia Solidária está em risco, os empreendedores destacam que seus principais custos referem-se aos espaços públicos essenciais que a cidade concede às feiras, bem como à manutenção das instalações subsidiadas. Esses custos fracionários têm ajudado a manter à tona não só outro tipo de economia, mas também todo tipo de efeito cascata para a vida desses empreendedores, suas famílias e comunidades de origem. O grito de guerra deles é: “A economia solidária é nossa”.
Anna Cash realizou uma pesquisa sobre a economia solidária como uma plataforma para aumentar a inclusão social, em 2015, na área metropolitana de Porto Alegre, como parte de uma bolsa Fulbright em parceria com o Grupo de Pesquisa Ecosol da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), com a orientação do Professor Luiz Inácio Gaiger. Atualmente, ela é mestranda em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade da Califórnia em Berkeley.
Série Completa: Economia Solidária no Brazil
Parte 1: Desenvolvimento Criativo no Rio e Além
Parte 2: Mulheres Protagonistas
Parte 3: Expandindo a Cidadania nas Favelas Brasileiras