Nos Estados Unidos e no Brasil, dois países com histórias profundas de injustiça racial, disparidades nas oportunidades educacionais entre as minoridades raciais e a população branca se manifestam desde a pré-escola. As chances de encarceramento aumentam significativamente entre as populações negras pobres, muito em função de estruturas e políticas que tem início no começo da escolaridade formal. Esse padrão tem sido chamado de School-to-Prison Pipeline em inglês, traduzível como “Via Direta Escola-Prisão” e a União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU) define essa Via como “as políticas e as práticas que impulsionam os alunos do país, especialmente as crianças em maior situação de risco, para fora das salas de aula e para dentro dos sistemas de justiça criminal e juvenil”.
Tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos essa Via se inicia com recursos inadequados direcionados às escolas públicas de bairros vivendo sobre estresse. Devido à falta de oportunidades educacionais combinado com políticas de punição rigorosas e muitas vezes injustas, muitos estudantes negros acabam deixando a escola e, finalmente, se envolvendo em atividades criminosas. Nos Estados Unidos, cerca de 1 milhão de negros representam 43% dos 2,3 milhões encarcerados. Os afro-brasileiros representam 61% dos 622.200 encarcerados no Brasil.
Nos últimos anos, estatísticas chocantes que refletem as taxas de prisão entre as comunidades negras ganharam atenção crescente. Mas não foi feito o suficiente para erradicar esses padrões que se manifestam desde a pré-escola. E embora ambos países reflitam semelhanças flagrantes em termos de taxas de prisão e disparidades educacionais, os Estados Unidos se diferencia do Brasil em termos de estrutura e políticas públicas relevantes.
Contexto Histórico: Estados Unidos
A desigualdade de oportunidade nos Estados Unidos nasceu na escravidão e se manteve depois disso. Após a Guerra Civil, os estados do Sul promulgaram uma série de leis para limitar os direitos civis e as oportunidades dos cidadãos negros. Essas políticas, chamadas de leis Jim Crow, reforçaram a segregação racial e impossibilitaram a população negra de votar em cargos públicos, utilizar bens e serviços públicos e acessar a educação. Crianças negras e brancas eram proibidas de estudar nas mesmas escolas públicas a fim de defender a ideologia “separados, mas iguais” que fora apresentada pelos democratas do Sul na época. A segregação racial nas escolas foi mantida por todo o país até a decisão da Suprema Corte no caso Brown contra o Conselho Educacional em 1954 que determinou a segregação como desigual e ordenou que as escolas fossem dessegregadas o mais rápido possível. Contudo, apenas com a assinatura do Ato pelos Direitos Civis de 1964 que os cidadãos negros ganharam igual proteção sob a lei e liberdade de acesso aos mesmos locais que os cidadãos brancos, sem discriminação.
Embora 1964 tenha marcado uma nova era encerrando a discriminação racial legal, os moradores negros continuaram a sofrer com políticas racistas encobertas (e às vezes completamente abertas), exacerbando as desigualdades sociais. Ao longo do século XX, os bancos recusaram consistentemente empréstimos a proprietários de casas e futuros proprietários em bairros tradicionalmente negros através de uma prática chamada de “redlining” (zona vermelha). Agências federais de habitação determinavam o quanto os bairros estavam aptos a receber investimento dos bancos e companhias de seguros com base em sua proximidade a bairros de negros; aqueles considerados inaptos a receber o investimento eram sombreados em vermelho. A demarcação excluía as comunidades negras das oportunidades de crescimento e mobilidade financeira, prejudicando os negócios locais, os espaços públicos e as escolas dos bairros.
Situação Atual: Estados Unidos
Nas últimas décadas, a exclusão social e racial se manifestam na determinação dos distritos escolares. Nos Estados Unidos, os estudantes normalmente frequentam as escolas públicas mais próximas de onde moram e, devido as disparidades econômicas e as históricas políticas de segregação habitacional mencionadas anteriormente, as salas de aula costumam refletir uma falta de diversidade racial e econômica. Para piorar as coisas, as escolas públicas de distritos com maiores porcentagens de estudantes de minorias raciais e negros quase que universalmente recebem menos financiamento do que as escolas com porcentagens mais altas de estudantes brancos, independentemente da situação econômica do distrito. Nos Estados Unidos, uma grande parte do financiamento escolar provém do IPTU e as famílias de minorias raciais tendem a viver em bairros mais pobres. No entanto, “se você codifica com cores os bairros com base em suas composições raciais, você vê essa ruptura muito forte. Mesmo em qualquer nível de pobreza, os distritos que tem uma maior proporção de estudantes brancos obtém um financiamento substancialmente superior do que os distritos que possuem mais estudantes de minorias”, disse o cientista de dados David Mosenkis. O financiamento desigual para algumas populações resulta em uma lacuna de conquistas raciais que coloca negros e estudantes de minorias em uma grande desvantagem. Com menos investimentos chegam professores de menor qualidade e menos recursos para prover aos estudantes as ferramentas que precisam para ter sucesso.
Já em dupla desvantagem (sendo discriminados e recebendo menos recursos educacionais), além disso existe uma tendência comum de tensão entre a instituição policial e as comunidades negras, em particular. Essas tensões começam a se construir em escolas e salas de aula, com suspensões escolares já durante a pré-escola. De acordo com dados de 2014, “estudantes negros representam 18% das crianças matriculadas em pré-escolas e 48% dessas crianças já sofreram mais de uma suspensão escolar. Estudantes brancos representam 43% das matrículas, mas correspondem a apenas 26% dos alunos com mais de uma suspensão“. Em escolas públicas com baixos recursos, por todo o país, policiais intervém desnecessariamente em situações menores, criando uma dinâmica de ressentimento em relação à aplicação da lei e ao tratamento injusto dos estudantes. De acordo com a ACLU, “muitas escolas com poucos recursos depositam uma confiança maior na polícia do que nos professores e diretores para manter a disciplina. Um número cada vez maior de distritos emprega agentes policiais como recurso escolar para patrulharem os corredores, normalmente com pouco ou nenhum treinamento para o trabalho com os jovens. Como resultado, as crianças ficam muito mais propensas a serem sujeitas a detenções escolares–cuja maioria são relativas a ofensas não-violentas”.
O uso inapropriado de policiais nas escolas aumenta as tensões entre as populações de cor e a aplicação da lei, de forma geral. Segundo uma pesquisa feita pelo Projeto de Avanço, “em muitos lugares onde a utilização da polícia é feita de forma exagerada ou de forma inadequada, os jovens também começam a se ressentir e a desconfiar deles. É comum que os jovens percam a confiança na boa vontade por parte da polícia quando eles acreditam que estão sendo tratados de forma injusta em suas escolas. E, infelizmente, esses sentimentos continuam para além das portas das escolas”.
Um dos principais efeitos colaterais da lacuna racial é o aumento da probabilidade de abandono completo do ensino médio. Aqueles que abandonam a escola estão mais suscetíveis a recorrer às atividades ilegais como forma de obter renda. De acordo com um estudo feito pelo Departamento de Educação dos Estados Unidos em 2013, 86,6% dos estudantes brancos concluíram o ensino médio em comparação a apenas 71% dos estudantes negros.
Os Estados Unidos têm um histórico de índices desproporcionais de encarceramento de grupos raciais minoritários. Com base em dados da Associação Nacional para o Avanço das Pessoas de Cor (NAACP), “afro-americanos e hispânicos compreenderam 58% de todos os prisioneiros em 2008, apesar dos afro-americanos e dos hispânicos representarem apenas um quarto da população dos EUA”. Isso não significa necessariamente que as minorias estão cometendo mais crimes. Por exemplo, “cinco vezes mais brancos estão consumindo drogas como negros, mas os negros são presos 10 vezes mais que os brancos por delitos relacionados às drogas”. A fim de combater a Via Direta Escola-Prisão existente desde a pré-escola nos Estados Unidos, devemos implementar políticas para distribuir de forma justa os recursos para as escolas e analisar como estimulamos e repreendemos os alunos.
Contexto Histórico: Brasil
Como os Estados Unidos, a desigualdade de oportunidades no Brasil remonta aos tempos da escravidão. O Brasil importou mais escravos do que qualquer outro país na história mundial. Durante a monarquia constitucional, a coroa portuguesa temeu a existência de uma elite letrada e, portanto, nunca investiu em educação. Este pensamento estava intimamente ligado à ideologia da pureza racial, que mede o status de uma pessoa pelo nível de sangue africano ou indígena. Aqueles considerados “menos puros” e, portanto, inferiores, foram excluídos do acesso à educação e às oportunidades de emprego.
Em 1889, um ano após a abolição da escravidão, a monarquia foi substituída por um governo republicano. A Constituição Republicana não estabeleceu a educação como um direito básico para todos os cidadãos. Os afro-brasileiros, que constituíam a maioria da população, foram excluídos do acesso à escola. Contudo, devido ao desejo de “europeizar” o Brasil, os líderes educacionais não impediram que os afro-brasileiros fossem à escola, pois viam a educação como a solução para a “degeneração cultural”. Embora o governo federal subsidiasse os estados para investimento escolar primário e secundário, os fundos atingiam menos da metade da população. Devido à pressão do grupo político “Pioneiros da Educação Nova“, a Constituição de 1934 incluiu o direito universal à educação.
A ditadura militar de Getúlio Vargas interrompeu todas as leis educacionais em 1937, levando a uma nova rodada de reformas. A reforma educacional foi estabelecida a nível federal e um currículo nacional foi desenvolvido para todas as faixas etárias. Com o fim da ditadura após a Segunda Guerra Mundial, a Constituição de 1946 alterou as leis de educação para quatro anos de ensino primário gratuito e obrigatório para todas as crianças de 7 anos ou mais. Entretanto, os que estavam em extrema pobreza foram excluídos dessa obrigação.
A demanda popular por educação no fim da ditadura militar (1964-1985) levou a um aumento da oportunidade de se matricular. Mas a qualidade da educação diminuiu devido à falta de investimento público.
Apenas após a ratificação da Constituição de 1988 que a escola pública passou a ser considerada um direito legal. Com o novo sistema democrático, 18% do orçamento federal anual foi dedicado às despesas com educação.
Situação Atual: Brasil
Nas últimas décadas, vários fatores agravaram a desigualdade educacional no Brasil. Um quarto das escolas no Brasil são privadas e atendem estudantes cujos pais podem pagar as mensalidades caras, enquanto as escolas públicas costumam atender alunos de famílias de baixa renda. O financiamento para estas escolas está ligado aos orçamentos estaduais e municipais, de modo que as escolas das cidades mais ricas são mais bem financiadas do que as dos estados mais pobres e as áreas fora das grandes cidades.
A deficiente educação pública nos níveis primário e secundário é visível no número de estudantes brasileiros analfabetos funcionais. Com base em um estudo feito pelo Instituto Paulo Montenegro (IPM) em 2012, 65% dos alunos com diploma de ensino médio são incapazes de compreender textos básicos. Na tentativa de combater estes números, o governo lançou o Plano Nacional de Educação em 2014, no qual incluiu medidas para aumentar os anos de educação obrigatória (agora de 4 a 17 anos), aumentar as taxas de matrícula e melhorar a qualificação dos professores.
Um relatório de 2015 do Instituto Unibanco mostra que mais de metade dos estudantes negros ou pardos estão agora matriculados em escolas secundárias, mas que as lacunas nas matrículas raciais ainda são significativamente grandes. O Relatório do Programa de Avaliação Internacional de Estudantes (PISA) da OCDE sobre o Brasil em 2015 concluiu que “os gastos com educação aumentaram desde 2012, mas o Brasil ainda enfrenta o desafio de traduzir as despesas adicionais em melhores resultados de aprendizagem”. 71% dos jovens de 15 anos estão agora na escola ou matriculados na 7ª série ou acima, 15% maior do que em 2003. No entanto, o Brasil tem uma grande porcentagem de alunos desfavorecidos. Os estudantes no Brasil obtêm notas abaixo da média da OCDE e comparáveis as da Indonésia e do Peru. E “no Brasil, os diretores das escolas públicas estão mais preocupados com os recursos materiais em sua escola do que os diretores das escolas privadas”. O desempenho médio do Brasil permaneceu inalterado desde 2006.
É importante ressaltar que os programas de matrícula obrigatória e Bolsa Família têm incentivado a escolarização no Brasil. De acordo com um estudo realizado pelo Banco Mundial em 2007, que assinala que “há uma relação próxima entre educação, condições socioeconômicas e crime”, em São Paulo, de 20-25% dos crimes entre aqueles cujas idades são conhecidas, são cometidos por jovens com menos de 18 anos. Este estudo constatou que o Bolsa Família, ao garantir uma renda básica e escolaridade em famílias de baixa renda, efetivamente reduz as taxas de criminalidade entre 6-18%.
Contudo, continuam a faltar melhorias estruturais, o que afeta predominantemente as famílias de baixa renda. Devido a escolas públicas pobres, famílias de classe média e alta colocam seus filhos em escolas privadas, agravando as lacunas entre as conquistas. As diferenças entre os estudantes das escolas públicas e privadas se tornam ainda mais evidentes quando competem por um lugar nas universidades públicas, especialmente agora que mais crianças de famílias de baixa renda terminam o ensino médio. No Brasil, as universidades mais competitivas são públicas e também gratuitas. No entanto o vestibular para essas universidades é formulado para aqueles com treinamento extensivo. As famílias que podem investir em escolas privadas e pagar por um caro curso preparatório têm a melhor possibilidade de entrar em universidades públicas, comumente excluindo os estudantes de baixa formação socioeconômica.
Como primeiro passo para diminuir a desigualdade educacional nas universidades, em 2012 o governo federal aprovou a Lei nº 12.711 que aloca 50% das vagas das universidades federais para estudantes de escolas públicas. Um certo número dessas vagas foi destinado a estudantes com renda familiar igual ou inferior a um salário mínimo e meio, e outra parte foi garantida para estudantes negros, mestiços e indígenas. Embora incrivelmente eficaz em fornecer acesso a estudantes de todas as origens raciais que chegam à universidade, as cotas não abordam a maior responsabilidade do governo de melhorar a qualidade da educação pública no ensino fundamental e médio.
As escolas públicas brasileiras também são marcadas por altas taxas de abandono escolar e de repetição, muitas vezes devido à falta de engajamento dos alunos. Entre jovens de 15-17 anos que não frequentam a escola pública, 19% tem o diploma do ensino médio. Entre a população branca, esse número é de 28%, enquanto entre a população negra, é de apenas 15%.
Existem inúmeros fatores que levam ao abandono escolar. Em muitos casos, os alunos perdem o interesse devido à má qualidade do ensino e um currículo rígido que permite pouca flexibilidade. Além disso, uma pesquisa de 2009 sobre o preconceito e a discriminação em ambientes escolares concluiu que as taxas de falta de engajamento e abandono estão ligadas à discriminação. O estudo identificou a raça como uma das principais fontes de bullying, e descobriu que as taxas mais altas de abandono ocorreram em escolas com um maior nível de preconceito.
Em 2015, a Câmara dos Deputados aprovou uma emenda constitucional (PEC 171/93) que reduz a idade de responsabilidade criminal por crimes violentos de 18 para 16 anos. Os opositores argumentam que reduzir a idade e aumentar a duração das penas de prisão só piora as disparidades raciais no sistema de justiça brasileiro. Devido à falta de oportunidades para ressocialização, condenados libertados da prisão possuem 70-80% de probabilidade de reincidência.
Devido a um legado colonial de desigualdades raciais e oportunidades inadequadas de educação, certas populações têm maior probabilidade de deixar a escola e acabar no sistema de justiça criminal no Brasil. Embora a reforma ainda seja necessária, o governo teria que quase dobrar as despesas de educação federal e estadual em 2017, a fim de cumprir as metas estabelecidas pelo governo no Plano Nacional de Educação. Entretanto, no entanto, o governo federal recentemente aprovou a emenda de austeridade PEC 55, que criou um limite de 20 anos de gastos públicos. Até que o Brasil mude drasticamente sua abordagem da política educacional, as estatísticas das prisões continuarão a refletir as lacunas de oportunidade raciais.
Conclusão
Embora as políticas dos Estados Unidos e do Brasil tenham sido influenciadas por fatores históricos únicos, ambos os países compartilham um racismo sistêmico enraizado desde os tempos de escravidão, com altas taxas de encarceramento e lacunas de acesso acadêmico e conquistas. Ambos os países são caracterizados pela existência de uma Via Direta Escola-Prisão. A “Guerra ao Crime”, uma iniciativa norte-americana iniciada pelo Presidente Johnson em 1965 para investir no combate ao crime a nível federal, tomou força não só no país, mas no mundo todo. O movimento resultou em um crescimento exponencial das taxas de encarceramento, especificamente para crimes de drogas de pequeno porte. Hoje, os Estados Unidos e o Brasil são o lar de algumas das maiores populações carcerárias do mundo. Além de sistemas de justiça objetivamente injustos em ambos os países, a falta de oportunidades educacionais agrava os padrões de criminalidade e prisão. Infelizmente, essas disparidades se manifestam desde o período pré-escolar.