Construções Sociais da Favela Parte 3: Turismo de Favela como Resistência

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Esta é a terceira matéria de uma série de quatro sobre a construção social das favelas e o potencial do turismo de favela para desconstruir estereótipos negativos. Acompanhe toda segunda-feira até 12 de junho.

O sociólogo Anthony Giddens argumenta que, devido à globalização, as relações sociais em todo o mundo estão se intensificando à medida que os eventos e as identidades locais são afetadas por eventos e ideias do mundo todo. O turismo de favela fornece um exemplo claro de como este processo pode ser benéfico nos casos em que o acesso a eventos e ideias locais se encontrem sob o controle das próprias comunidades envolvidas. Tours guiados pela comunidade podem ser armas poderosas para abordar as imagens negativas sobre as favelascom frequência alimentadas por filmes e pelas notícias na mídia, conforme descrito anteriormente nesta série–que têm historicamente moldado ideias sobre as favelas cariocas que atravessam fronteiras internacionais.

Entre 2013 e 2016, as favelas da cidade atraíram cerca de 42.000 visitantes por ano. De acordo com Zezinho, dono da agência de turismo comunitário Favela Adventures, o interesse de estrangeiros nas favelas aumentou depois do lançamento dos filmes Cidade de Deus e Tropa de Elite, ambos apresentados nas matérias anteriores desta série de reportagens.

Tours comunitários responsáveis

Características estruturais específicas definem tours comunitários que podem ser considerados mais responsáveis do que outros tours organizadas por pessoas de fora:

  1.  Composto por guias locais que oferecem informações precisas e experiências pessoais;
  2. São tours feitos a pé, aumentando as interações espaciais dos visitantes com a comunidade e seus moradores;
  3. Esses passeios trazem benefícios para a comunidade, desde o apoio direto a projetos sociais, lideranças e à economia local, até resultados como a desconstrução de estereótipos.

Por moradores locais, para moradores locais

Um dos fatores mais importantes quando um tour é responsável e sustentável está nas informações oferecidas pelos guias turísticos. Quando um guia está bem informado sobre a história da favela, os elementos da vida cotidiana e questões políticas, e é capaz de partilhar suas próprias experiências pessoais, esses tours podem se opor aos efeitos desumanizantes de alguns filmes: eles podem ajudar a (re-)humanizar as favelas ao contextualizá-las nas questões sociais que as influenciaram.

Os tours não devem romantizar ou exotizar a imagem das favelas apenas destacando aspectos culturais e positivos, e ao mesmo tempo não devem fazer sensacionalismo ao apenas destacar questões negativas–normalmente relacionadas à criminalidade. Tours comunitários naturalmente encontram um equilíbrio saudável entre mostrar os lados positivos e negativos, porque, uma vez que vivem na própria comunidade, os guias compreendem suas nuances, seus pontos fortes e fracos, e compartilham isso com visitantes interessados. Eles estão cientes da história da comunidade, das questões sociais que a influenciam, das soluções comunitárias, da infraestrutura, dos serviços sociais, da cultura, dos relacionamentos sociais, das relações com as UPPs e dos efeitos da exclusão social.

Em resposta às reações negativas em relação as agências de turismo de fora das comunidades que oferecem tours em favelas, o vereador Célio Luparelli propôs a Lei n. 1.599/2015  para regular o turismo, estimulando os tours comunitários sob regulamentações específicas. Apesar da lei ter sido aprovada pela Comissão de Constituição, Justiça e Redação e pela Comissão de Desenvolvimento Urbano em 2016, ela ainda precisa passar por outras comissões.

Muitos guias turísticos de favelas apoiam a lei, mas, como o Viva Favela relatou anteriormente, alguns deles, como o guia do Santa Marta Thiago Firmino, apontaram preocupações de que sua implementação efetiva possa criar novas taxas e requerimentos de certificações, que dariam vantagem às iniciativas de fora em detrimento das de dentro da comunidade.

Andar a pé

Para entender porque a caminhada é importante, é útil estudar alguns dos argumentos contra os tours feitos em carros, vans ou ‘jipes de safári’. Moradores da Rocinha, Caio, Maria e Julio*, apresentaram opiniões negativas sobre tours em veículos, especialmente sobre os tours em ‘jipes de safári’, que também resultaram em protestos da comunidadeoficiais e não-oficiais, nos últimos anos. Ironicamente, a companhia Jeep Tour tentou se promover em uma matéria do Al Jazeera falando sobre ética em tours pela favela. A matéria afirma que “no começo, a agência estava preocupada sobre como os tours seriam recebidas pelos moradores das favelas, mas isso não se mostrou um problema”, segundo o dono da agência. O proprietário explica: “Hoje, nossos tours através das favelas são parte das comunidades locais que reconhecem e aprovam totalmente o que fazemos”.

Apesar dos locais não gostarem dos tours em veículos, quando as instituições de turismo do governo Riotur e Embratur foram questionadas sobre empresas de turismo nas favelas, apenas ofereceram excursões em jipes como opção. Isso ilustra uma desconexão entre as instituições governamentais e moradores locais, apesar da resistência por parte das comunidades e até mesmo de um vídeo bastante visualizado criticando satiricamente as excursões em jipes pelo grupo Porta dos Fundos.

Em oposição aos passeios em jipes, iniciativas comunitárias trabalham com guias turísticos locais que guiam os grupos por suas próprias comunidades a pé, ocasionalmente usando opções de transporte comunitário (por exemplo, kombis e mototaxis). Apesar dos tours durarem apenas algumas horas, ao andar os turistas ganham maior compreensão acerca da rotina diária dos moradores, além de terem oportunidades de interagir e de enfrentar dificuldades resultantes de ruas estreitas, becos e escadas. Os guias explicam sobre instalações ou questões específicas–como redes de esgotonegócios locais, arquitetura–em detalhes quando caminham por lugares relevantes.

Tours a pé também oferecem aos turistas a chance de absorverem o ambiente e fazerem perguntas sobre coisas que vão percebendo ao longo do caminho, o que, de outra forma, não lhes chamaria a atenção. Dirigir pelas vias principais leva menos tempo e é extremamente superficial, uma vez que as favelas são comunidades destinadas primariamente a pedestres. Além disso, andar pela favela evita uma hierarquização simbólica que surge com turistas sentados atrás de uma barreira em um jipe de 1,5 metro mais alto que os pedestres.

Benefícios para a comunidade

Os tours mais benéficos são aqueles que além de serem guiados por moradores e conduzidos à pé, reinvestem parte de seus lucros em projetos sociais ou em negócios comunitários.

Favela Adventures, na Rocinha, investe parte de seu lucro com o turismo em seu próprio projeto social: uma escola de DJs. A cada semestre 12 estudantes aprendem truques como DJs, com alguns deles eventualmente ganhando dinheiro com suas apresentações. Turistas e outros apoiadores são encorajados a doar itens específicos que a escola precisa, por meio da iniciativa “Pack for a Purpose” (Faça a Mala para Um Propósito).

Ágatha, operadora turística no Cantagalo, também investe em iniciativas comunitárias como um museu que funciona como centro comunitário, os projetos do grafiteiro local Acne com crianças no Pavão-Pavãozinho, e um jardim, o Jardim do Céu, que serve como ponto de observação durante os tours.

Ela explica suas motivações por trás dos investimentos: “Isto é algo das favelas, precisamos uns dos outros… É assim que crescemos e fomos ensinados, e eu queria manter isso no meu negócio. É muito fácil ganhar dinheiro e não dividir. Mas eu vou sempre depender de alguém na favela. O que você faz, você recebe de volta”.

Outros tours comunitários, particularmente um número crescente de tours realizados por ativistas comunitários, focam explicitamente em desconstruir estereótipos ao aumentar a rede de pessoas de fora de suas comunidades que enxerguem as favelas com maior precisão e que possam ser mobilizadas para agir em seu favor. Entre eles estão Cosme Felippsen na Providência e André Constantine na Babilônia, entre outros.

Apesar de nem todos os tours comunitários apoiarem projetos sociais ou focarem em desconstruir mitos, todos eles, por definição, empregam moradores locais como guias e comumente apoiam micronegócios através dos próprios tours. Os tours podem incluir almoço em um restaurante local, bebidas e lanches em algum estabelecimento pelo caminho, pontos de observação em lajes de moradores em troca de R$1, ou visitas à lojas de souvenirs locais.

Benefícios indiretos: turismo como resistência diária

Guias turísticos locais procuram desconstruir estereótipos oferecendo perspectiva, conhecimento e informação interna a respeito de suas comunidades.

O sociólogo Zygmunt Bauman destaca a importância da mobilidade na atual era da modernidade líquida‘: aqueles que superam tempo e espaço se beneficiam da globalização e aqueles que são excluídos, não. Tours comunitários podem ser vistos como uma forma de mobilidade para superar uma compressão específica dominante de tempo-espaço nas imagens globais sobre favelas. Agências turísticas gerenciadas por moradores locais e que trabalham principalmente com guias locais se empoderam ao mostrar a coisa real, que é uma imagem das favelas que se difere daquilo que é regularmente mostrado pelo governo e pela mídia.

Como fontes de imagens cotidianas e de experiência vivida que operam para refutar a narrativa dominante, tours comunitários também podem ser vistos como resistência diáriasem drama–estando integrados às vidas normais dos guias turísticos (como emprego). Ao mesmo tempo, moradores de favelas acabam por incluir a si mesmos naquilo que veem como oportunidades geradas pelo turismo global.

Zezinho começou o Favela Adventures em 2007, quando um morador o pediu para realizar tours porque Zezinho tem seu corpo completamente coberto por tatuagens com o tema da Rocinha, e ele acreditava que seria uma ótima propaganda para a comunidade. Ele lembra que, inicialmente, recusou, mas mudou de ideia por duas razões. Primeiro, quando ele dizia às pessoas de fora da favela que era da Rocinha, ele relata que elas “olhavam com cara feia e diziam: ‘ai, sério? Eca!'”. Segundo, ele diz que as sete maiores agências turísticas que operavam na Rocinha naquela época eram de fora da favela, e levavam o dinheiro com elas e davam informações falsas ou imprecisas. “Eu queria fazer algo que fosse mais sustentável. Eu ouvi um desses caras uma vez dizendo: ‘olha! Buracos de bala!’ Ok, talvez sejam, talvez não sejam, mas por que apontá-los dessa forma? [Apenas porque] isso torna o tour mais excitante e vão ao encontro dos estereótipos”.

Para Zezinho, não é sobre ganhar dinheiro: “Eu tenho 53 anos, vivo em um apartamento alugado, nenhum Nike, sem carro ou medalhas de ouro. Isso é sobre criar empregos, é sobre o aumento da autoestima e também sobre poder mostrar para as pessoas de fora, a partir da perspectiva local, como é a vida aqui”. Zezinho dá braceletes “EU ♥ ROCINHA” aos moradores para tentar aumentar o sentimento de orgulho em relação ao lugar de onde eles vêm.

Para Erik Martins do Rocinha by Rocinha, os tours são uma forma de resistência porque “nós estamos falando sobre identidade, empoderamento. Nós sempre fomos sobreviventes e sempre iremos sobreviver. O mundo olha para a gente [brasileiros em geral] como se fôssemos uma piada, com todas as questões acerca dos Jogos Olímpicos, mas é importante que a gente mantenha nossa identidade e é importante focarmos nas coisas positivas. Nós precisamos aumentar nossa autoestima, que é muito baixa, tendo orgulho do lugar de onde viemos, o que pode ser feito através do turismo!”

Ágatha explica: “É sobre mostrar minha vida. Eu estou contente de poder mostrar que as pessoas aqui são boas. Eu quero mostrar aos turistas que não somos violentos porque somos pobres–somos famílias trabalhadoras que sobrevivem”.

Reações da comunidade

A moradora do Cantagalo Laís não acha que os tours são intrusivos: “Eu não me importo com as pessoas andando e olhando para dentro da minha janela. Quando vêm, gosto que vejam minha vida. Isso é uma coisa que a mídia não mostra, então é legal que as pessoas venham e olhem por si mesmas”.

Muitos moradores acham os tours positivos devido ao desenvolvimento de uma percepção contrária aos estigmas. Como explica o morador da Rocinha Luciano, os tours são “valiosos para a comunidade, pois criam consciência e visibilidade para a comunidade. Os tours mostram coisas diferentes daquelas mostradas nos filmes, e como as pessoas são receptivas aqui, a maioria não liga”.

Dono de um negócio e morador da Babilônia, Diogo aponta os benefícios financeiros: “Os tours são bons, eles trazem pessoas de fora para cá e isso trás capital para a favela. Se a comunidade realmente não aprovasse os tours, eles não iriam acontecer!” Sua única preocupação é sobre agências turísticas de fora: “Eu prefiro guias turísticos locais. É mais justo, porque nós lutamos por nossa comunidade”.

Conclusão

Os operadores turísticos específicos neste matéria buscam humanizar favelas construindo uma realidade coletiva através de suas narrativas. Tours comunitários podem ser vistos como sustentáveis devido a seu conteúdo e estruturas organizacionais. Esses tours contrariam percepções induzidas pela mídia de pânico e violência, retratando a realidade das favelas como bairros da classe trabalhadora com negócios bem-sucedidos e amenidades.

Os operadores e guias turísticos locais reagem à globalização das favelas pelos filmes e pela mídia, em termos gerais. O conteúdo de seus tours pode ser encarado como uma resistência diária que enfrenta percepções dominantes sobre suas comunidades. Através de uma experiência matizada que apresenta ‘os dois lados da moeda’–tanto as qualidades quanto os desafios que essas comunidades enfrentam–os tours liderados por moradores oferecem uma compreensão mais acurada dos processos locais e nacionais acerca das favelas. E apesar desta matéria abordar apenas alguns dos tours comunitários, em geral os tours de base comunitária com as três qualidades mencionadas nesta matéria (sendo operados por moradores, baseados em caminhadas e não veículos, e beneficiando a comunidade local) podem ser amplamente reconhecidos como agentes importantes que contribuem com a desconstrução de estereótipos negativos a respeito das favelas, incrementando a consciência global e aumentando a autoestima da comunidade.

Para agências turísticas comunitárias previamente cobertas pelo RioOnWatch, clique aqui.

Esta é a terceira matéria de uma série de quatro sobre a construção social das favelas e o potencial do turismo de favela para desconstruir estereótipos negativos.

Phie van Rompu, M.A., graduou-se em Criminologia Global na Universidade de Utrecht, na Holanda. Ela pesquisa o crime organizado de Estado, a (des)criminalização, resistência, e questões relacionadas às drogas. Esta série do RioOnWatch é baseada em sua pesquisa de mestrado.

*Alguns nomes foram alterados.


Série completa: Construções Sociais da Favela

Parte 1: Estereótipos em Filmes Populares
Parte 2: Glorificação da Guerra e da Violência
Parte 3: Turismo na Favela como Resistência
Parte 4: Percepções de Turistas Antes e Depois de Tours Comunitários em Favelas