Foi aprovada no Senado na última quarta-feira, dia 31 de maio, a MP 759/2016, que trata da regularização fundiária em terras rurais, urbanas e na Amazônia. Agora ela segue para aprovação presidencial. A medida enfrenta duras críticas de oposição no Senado, principalmente no que diz respeito ao efeito da nova legislação sobre a área rural, que alega que ela irá fragilizar os pequenos proprietários e incentivar a reconcentração de terras e, no mínimo, aumentar o êxodo rural e a pressão sobre as áreas urbanas. A medida, apesar de propor inovações como o “direito real de laje” e a simplificação de processos de obtenção de títulos, está sendo questionada por movimentos sociais, que alegam que, na prática, ela vai tornar famílias de baixa renda mais vulneráveis e a habitação mais sujeita ao capital imobiliário especulativo.
Segundo Rodrigo Numeriano, do Ministério das Cidades, a MP traz um avanço sobre a legislação existente, ao estender o escopo da categoria “área urbana” a todas aquelas que exercem função urbana e ao inaugurar uma política de regularização fundiária para além da mera concessão de títulos de propriedade. A principal novidade no âmbito da regularização fundiária urbana é o reconhecimento do chamado “direito de laje”. A posse da propriedade de acordo com essa medida provisória não estará mais vinculada a uma fração do solo natural, podendo também vincular-se ao solo artificial, ou seja, à laje. Assim, um imóvel construído sobre uma laje torna-se uma unidade independente, sujeita à tributação. Não só a laje, mas também o puxadinho horizontal passa a ser regularizável como imóvel independente, desde que possua acesso à via pública.
“É o curvamento do direito civil à realidade”, diz Rodrigo, ressaltando como as leis por vezes se distanciam da experiência real das pessoas. Ainda assim, ele diz que alguns juristas ficaram incomodados com a inclusão do termo “laje” em um mecanismo legal formal pela sua falta de “nobilidade”. Esses propunham uma nomenclatura que argumentavam ser mais adequada: direito de superfície e de sobrelevação. Isso ilustra bem a segregação institucional e a estigmatização, para além da segregação socioespacial, que sofrem os moradores de favelas: uma realidade social, que pode ser teorizada academicamente e pode ser objeto de regulação, não tem dignidade suficiente para integrar a lei. É mais uma faceta da criminalização da pobreza.
Outra questão de nomenclatura está na mudança proposta na MP de substituição do termo antiquado “assentamentos informais” por “núcleos urbanos informais consolidados”. Essa mudança, no entanto, não resolve a problemática essencial do termo, contida no termo informal, que pode ser entendido como denotando precariedade e transitoriedade, como se as favelas, em sua diversidade, não contassem com moradias tão formalmente construídas como quaisquer outras, não fossem tão formais quanto qualquer outra parte da cidade.
Além do direito de laje, a regularização fundiária de interesse social (para famílias de baixa renda) será gratuita, não será permitida a cobrança de impostos de doação sobre terrenos que forem transferidos da União para uso social, o registro de usucapião será convertido automaticamente em registro de posse após transcorrer o período definido em lei (5 anos para áreas urbanas), e o processo cartorial para obtenção de titulação será simplificado.
Outra mudança poderá ter impacto na habitação social. Antes, quando o governo arrecadava um imóvel abandonado, ele tinha pouco incentivo para realizar melhorias estruturais nele e arrendá-lo para moradia social, porque dentro do período de três anos o proprietário podia entrar na justiça para reavê-lo, junto com o investimento nele feito. A MP propõe que o proprietário só passe a reaver o imóvel se ressarcir o governo pelas melhorias feitas.
“A questão da regularização, da formalização, não é a prioridade política da maioria dos moradores, mas a provisão de serviços, a garantia de direitos (é a prioridade)”, argumenta Rafael Soares, professor de Serviço Social da PUC-Rio. “Compra, venda e aluguel sempre existiu nas favelas, regularizados ou não.” Para ele, enquanto a regularização fundiária surgir como um programa pontual, e não uma política permanente e integrada, ela não vai gerar bons frutos.
Andreia, doutorando em Serviço Social e moradora do Cantagalo, vê a regularização fundiária como uma ameaça. “Além de aumentar os custos de vida, pela cobrança de impostos, isso significa que se a pessoa não tem condição de pagar, o Estado vai poder vir e tirar a casa dessa pessoa. E ainda abre caminho para o capital imobiliário, para a gentrificação”, disse ela. Segundo analistas, as parcerias público-privadas serão facilitadas por essa medida provisória e a regulação de empreendimentos imobiliários de alto padrão serão flexibilizadas pela criação de mecanismos de regulação distintos para proprietários de baixa e de alta renda, o que é perigoso pois subordina serviços públicos à lógica do mercado e anistia o mercado imobiliário especulativo. “Essas áreas ainda não possuem condições socioeconômicas de disputar com uma lógica de mercado, uma lógica perversa dentro de uma ótica neoliberal que não garante nenhum direito. As famílias vão passar a sofrer uma pressão brutal do capital, vão ter menor probabilidade de manter essas terras”, diz Maria Lúcia Pontes, do Núcleo de Terras e Habitação (NUTH) da Defensoria Pública do Rio de Janeiro.
“Dar títulos de propriedade transfere um problema que é do Estado para o indivíduo”, diz Rafael, defendendo que a propriedade privada não pode ser encarada como a grande solução para a regularização fundiária. É clara a relação causal entre períodos de crescimento econômico e expansão imobiliária e remoções, e entre períodos de recessão e esforços na direção da regularização–que coloca mais terras no mercado e retira do Estado certas responsabilidades. Para Rafael, a aposta deve ser feita no aluguel social, combinado à provisão de infraestrutura (como de transporte) e serviços (saneamento, segurança, coleta de lixo, entre outros).
Outras críticas à MP estão na fragilização das Áreas de Especial Interesse Social, ou AEIS (extinguindo alguns critérios que permitiam a sua definição como tal e acabando com o tratamento prioritário a essas áreas por parte do poder público, que foi um grande avanço das legislações anteriores), a facilitação da transferência de terras públicas para o setor privado (ameaçando o cumprimento da função social dessas e ameaçando especificamente as favelas situadas em terrenos públicos) e o fato dela não conter em si os mecanismos regulatórios para a implementação daquilo que ela mesma propõe. Essa falta de clareza deixa as suas proposições sujeitas a regulamentações futuras, a leis locais e a ações arbitrárias do poder público, fragilizando a sua aplicação, diferente dos mecanismos legais anteriores, que eram autoaplicáveis, ou seja, continham em si toda a regulamentação necessária para sua aplicação.
Uma carta aberta contra a medida provisória assinada por diversos movimentos sociais e instituições públicas, incluindo o NUTH, denuncia os seus retrocessos. Ela coloca que não há urgência para a aprovação dessa MP devido à existência dessas legislações anteriores e que sua publicação no dia 22 de dezembro é suspeita. Uma nova legislação é necessária, mas é preferível manter as antigas que têm garantias robustas de implementação enquanto a mudança é discutida em um processo participativo e integrado.
Outras mudanças previstas na medida provisória podem ser encontradas no site do Senado.