Construções Sociais da Favela Parte 4: Percepções de Turistas Antes e Depois de Tours em Favelas

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Esta é a quarta matéria de uma série de quatro sobre a construção social das favelas e o potencial do turismo de favela para desconstruir estereótipos negativos.

As duas primeiras matérias desta série analisaram como os estereótipos que recaem sobre as favelas são construídos em filmes populares, e a terceira propôs a perspectiva do turismo comunitário para desconstruir estes estereótipos. Para tornar claro se os estereótipos são de fato contestados através dos tours comunitários, esta matéria foca nas percepções dos turistas sobre as favelas. Vinte e um turistas, majoritariamente da Europa e da América do Norte, foram entrevistados em dois momentos: primeiro sem nunca terem entrado em uma favela e em seguida após terem feito um tour em uma favela.

Percepções pré-visita

Seguindo o raciocínio da criminologista de filmes Nicole Rafter de que filmes sobre crimes nos ajudam a formar a nossa compreensão sobre o crime e o mundo, filmes sobre crimes nas favelas então são vistos como oferecendo em primeira mão uma janela para o mundo inacessível porém incitante da favela e dos treinamentos do BOPE. Assim como em filmes sobre prisão, a popularidade dos filmes sobre favelas pode se dar devido à sua alegação de autenticidade. Cidade de Deus e Tropa de Elite (2007) ambos se iniciam com uma declaração de autenticidade alegando ser “baseado em fatos reais” ou afirmando que “apesar de possíveis coincidências com a realidade, este filme é uma obra de ficção”. Além disso, Cidade de Deus termina com fotos e vídeo de pessoas reais e notícias de eventos reais nos quais a história de ficção se baseou. Em parte, devido a tais alegações de autenticidade, os filmes são uma fonte influente de informações (e desinformação) sobre o que acontece nas favelas.

Quando perguntado sobre como a favela é conhecida, cada turista entrevistado–antes de visitar uma favela–respondia à pergunta sem hesitar: “pobres, sem instrução, criminosos, traficantes de drogas”; “a favela é somente a epítome da pobreza e fica totalmente a margem da sociedade”; “obviamente é realmente perigosa, com traficantes, com pessoas muito pobres e as condições de vida são lamentáveis”; “muitos crimes acontecem lá”.

Stefan*, estudante alemão de arquitetura, disse que a única cobertura de notícias sobre as favelas na Alemanha era “sobre a violência entrando e saindo da favela, traficantes de drogas como chefões das favelas e guerras entre os traficantes e a polícia”. Mark, piloto militar do Reino Unido, disse que “as únicas referências no Reino Unido sobre as favelas são sobre operações anti-drogas, e sempre com cobertura violenta”.

No entanto, quando solicitados a darem uma descrição mais completa de uma favela, percebemos que as ideias das pessoas foram influenciadas pelas cenas dos filmes. Jef, estudante inglês, explicou que acha que os estereótipos das favelas são “tráfico de drogas e pessoas pobres”. Ele acrescentou: “Especialmente nos filmes como Cidade de Deus, frequentemente os afro-brasileiros [são associado a estarem] envolvidos no comércio de drogas com armas. Isso me influenciou enormemente! Após assistir Cidade de Deus, ninguém quer pisar lá. Parece ser o lugar mais perigoso da Terra. Talvez o filme exagerou, mas definitivamente contribui para o que eu penso da favela, após eu ter recebido a cobertura negativa da mídia“.

Outros descreveram as favelas como unidas e auto-construídas (como mostrado em Cidade de Deus) com um forte senso de comunidade. Também falaram sobre uma ordem social onde o auto-policiamento com medidas severas é uma solução mais comum para o conflito do que ir à polícia, uma ideia ilustrada em Tropa de Elite que mostra a brutalidade dos traficantes contra uma ONG, ou em Cidade de Deus que mostra a recusa dos moradores em dar informações à polícia. Os turistas imaginavam que a educação é mínima e que as crianças trabalhavam desde a mais tenra idade, o que corresponde à imagem dos jovens personagens principais em Cidade dos Homens e Cidade de Deus.

Um exemplo claro das imagens do filme distorcendo a realidade é ilustrado por um comentário da turista alemã Anja: “É realmente como no filme–aparelhos de som estridentes e altos demais ecoando música funk”. Ao invés de dizer que o filme reflete a realidade, ela enquadra a realidade como confirmação das imagens nos filmes.

Todas as descrições das favelas feitas pelos turistas incluíram crime e traficantes. Alguns turistas estavam cientes de que os filmes tinham o potencial de reforçar os estereótipos negativos retratados na cobertura da mídia. Como Emma dos Estados Unidos disse: “se um filme apenas mostra os criminosos e as coisas ruins, somente reforça os maus estereótipos. Acho que é por isso que meu professor deixou que assistíssemos Cidade dos Homens (2002-2005) na TV. É sobre os meninos que não se envolverem, assim dá uma visão mais equilibrada”.

As respostas de Vilius, um turista da Lituânia, proporcionaram um ângulo diferente quanto à relação entre os filmes e a cobertura da mídia. Ele explicou que na Lituânia a cobertura sobre o Brasil é sobretudo positiva, com foco nos esportes, no turismo e no catolicismo. Ele sugere que os lituanos não querem lembrar-se da história violenta do seu país e por isso tendem a evitar notícias negativas. Como o filme Cidade de Deus contradiz a maioria das notícias positivas às quais foi exposto, ele foi o único turista entrevistado que supos que o filme era uma “história de Hollywood completamente de fictícia”, que não mostrava a realidade aos espectadores.

Em contrapartida, parece que nos países onde a cobertura das notícias sobre as favelas no Brasil é predominantemente negativa, as pessoas supõem que as imagens apresentadas nestes filmes são reais.

Percepções pós-visita

Após participarem de um tour comunitário, foi pedido aos mesmos turistas considerar novamente as suas definições sobre as favelas. Este segundo conjunto de descrições mudou de um foco sobre a criminalidade e perigo para um foco sobre o sentido comunitário nas favelas.

Após uma visita ao Cantagalo, Jef explicou: “Acho que estou surpreso porque sempre pensei que eram lugares sem lei, deixados pra trás, mas é quase como uma mini-versão da sociedade normal onde tudo funciona perfeitamente. Eu esperava encontrar uma comunidade íntima, mas o sentido comunitário era mais forte do que pensava. Andando ao redor, o nosso guia conhecia quase todos, ralhando com um garoto na rua por ter feito algo… É mais sofisticado do que eu imaginava. Quando você ouve falar das favelas e as vê na TV, parecem completamente dilapidadas, com casas e pessoas fazendo uso do que podem encontrar. Eu não imaginava que lá teria um sistema adequado”.

Stefan participou de um tour na Rocinha e disse que a favela “parece tranquila, há um forte sentido comunitário e parece que muitos se conhecem e há muita coisa que fazem juntos. Parece, ao andar pelas ruas, que eles têm a sua pequena sala na frente da casa e de lá interagem com os outros moradores, por isso há uma forte relação comunitária na favela”.

Além das observações sobre a coesão da comunidade, os serviços também foram o centro das novas definições dos turistas. Emma apontou que as favelas “têm serviços bem desenvolvidos, a maioria tem água e eletricidade, cabo, Internet, uma Associação com todo o seu espaço… Isso realmente desmistifica a ideia que as favelas são slums. Há partes ou outras favelas que são como slums, mas favelas são apenas bairros funcionais. Comunidades auto-reguladas funcionais”.

Foi explicitamente perguntado aos turistas se as suas percepções haviam mudado e a maioria confirmou que haviam. Laura admitiu que fora previamente mal-informada, dizendo: “o tour mudou a minha percepção da favela e das pessoas que moram nas comunidades. Eu subestimei como muitas pessoas trabalham… A minha percepção anterior era de pobres, desempregados, sem oportunidades, sem comida. A minha ideia era que não era sequer uma classe trabalhadora, que eram a classe mais pobre“.

Os turistas também focaram nos aspectos das favelas que precisam ser melhorados e também que existem diferenças entre as favelas. Estes comentários sugerem que os tours não glamourizaram ou romantizaram às favelas, mas forneceram informações que refletem ‘os dois lados da moeda’. O turista holandês Roy refletiu: “Eu não diria que eles têm a vida melhor do que eu pensava, obviamente as suas condições são mais difíceis. Mas há muita coisa positiva que eu não imaginava antes. Apesar de saber que às vezes o crime ocorre, tenho um sentimento positivo sobre as pessoas que vivem aqui”.

Algumas das reflexões mais significativas foram expressadas por um casal brasileiro de São Paulo, dois dos poucos brasileiros encontrados nos tours estudadas para esta pesquisa. Para Flávio, “o tour mudou a maneira que nós vemos as favelas e o Brasil. Uma das coisas que mais nos impressionou foi ouvir do nosso guia que muitas pessoas ficam na favela e nunca vão embora porque eles têm tudo lá. Parece que são uma parte invisível da cidade e do país e nenhuma das propostas que temos na nossa política hoje em dia inclui um plano de longo prazo para eles. Mais do que isso, pudemos ver que apesar dos problemas e questões que eles têm lá, encontramos pessoas ótimas, prontas para ajudar uns aos outros”.

Antes e depois em palavras

Também foi pedido aos turistas que resumissem a favela em três a cinco palavras, tanto antes de entrar em uma favela pela primeira vez como após um tour.

A nuvem de palavras acima com as respostas antes do tour mostra diferenças significativas quanto à nuvem de palavras abaixo com as suas respostas após o tour. É interessante notar que, embora as respostas sobre como as suas percepções mudaram incluíram aspectos tanto negativos como positivos das favelas, este exercício de palavras passou de palavras que refletiam criminalidade e perigo para palavras que ressaltam aspectos positivos das favelas, com poucas exceções que incluem “pobreza”, “sobrevivendo” e “primitivo”.

Conclusão

Para aqueles que nunca estiveram em uma favela, os filmes podem moldar o modo de pensar das pessoas sobre estes lugares, reforçar os estereótipos existentes e causar a estigmatização da favela em um nível global. Embora a mídia tradicional tenha um papel importante em moldar as percepções dos estrangeiros e brasileiros do asfalto, os filmes proporcionam uma imagem mais detalhada da favela que as pessoas usam para definir as suas percepções.

Os tours comunitários são uma oportunidade para desconstruir estas imagens, especialmente nas mentes daqueles que nunca entraram em uma favela. Das percepções estreitamente ligadas às notícias e às imagens dos filmes, as percepções dos turistas entrevistados após o tour apresentaram opiniões com mais nuances nas quais os aspectos positivos da favela foram salientados enquanto os desafios ainda eram reconhecidos.

A desconstrução dos estigmas e a construção da conscientização global sobe as favelas podem ser vistas como um primeiro passo fundamental para mudar o panorama de abandono e repressão policial que têm caracterizado as políticas referentes a estas comunidades. “Este tipo de cobertura é usado para afirmar certas políticas do Estado contra nós“, a jornalista comunitária da Maré, Thais Cavalcanti, declarou no programa de rádio On The Media da estação da Rádio Pública Americana (NPR), WNYC de Nova York, no ano passado. Talvez todos deveríamos ler além da cobertura sensacionalista e dos filmes, e enxergarmos com os nossos próprios olhos.

Esta é a quarta matéria de uma série de quatro sobre a construção social das favelas e o potencial do turismo de favela para desconstruir estereótipos negativos.

Phie van Rompu, M.A., graduou-se em Criminologia Global na Universidade de Utrecht, na Holanda. Ela pesquisa o crime organizado de estado, a (des)criminalização, resistência, e questões relacionadas às drogas. Esta série do RioOnWatch é baseada em sua pesquisa de mestrado.

*Alguns nomes foram alterados.


Série completa: Construções Sociais da Favela

Parte 1: Estereótipos em Filmes Populares
Parte 2: Glorificação da Guerra e da Violência
Parte 3: Turismo na Favela como Resistência
Parte 4: Percepções de Turistas Antes e Depois de Tours Comunitários em Favelas