É uma velha história para alguém familiarizado com as favelas do Rio: a primeira favela denominada como tal foi fundada em 1897, quando os veteranos da Guerra de Canudos, a maioria ex-escravos, estabeleceram uma comunidade em um morro com vista para o Centro do Rio, depois que o governo não cumpriu a promessa de dar-lhes em troca terras por terem lutado. O assentamento, inicialmente chamado “Morro da Favela”–devido a uma planta resistente que cresce no sertão nordestino onde Canudos se encontra–hoje em dia é conhecido como Providência, a favela mais antiga do Rio, que este ano está comemorando 120 anos desde a sua fundação. Boa parte da história, tanto antes como depois da data de fundação, no entanto, permanece no esquecimento no Rio e no Brasil. “Morro da Favela à Providência de Canudos” uma exposição do fotógrafo Maurício Hora, em exibição no Espaço Cultural BNDES até 14 de julho, busca mudar essa percepção.
A exposição nasceu das viagens de Maurício Hora à Canudos no estado da Bahia em 2013, em um empenho para documentar a vida no sertão e buscar a memória da guerra “que não deve ser esquecida”. Maurício Hora, nascido na Providência, encontrou-se com moradores na área ao redor de Canudos e gravou as suas histórias. Uma das partes mais marcantes da exposição refere-se a duas instalações, uma representando o interior de uma casa em Canudos, a outra na Providência. Ambos os espaços estão centrados em torno de televisões mostrando entrevistas com os moradores das duas áreas.
As justaposições e os paralelos entre Canudos e Providência aparecem ao longo de toda a exposição. A água–tanto a sua presença como a sua ausência, uma diferença crucial para os moradores do sertão–destaca-se nas fotografias de Canudos, com a imagem de um barco de madeira pousado sobre a terra seca e poeirenta próximo a outro barco cheio de água boiando em um lago. A luz também tem um papel central nas fotografias de Canudos, às vezes impiedosamente clara e em outras vezes sinistra e escura, ressaltando o poder dos elementos sobre as pessoas, plantas e animais que as imagens retratam.
Em contrapartida, as imagens da Providência são mais movimentadas, com o Centro da cidade preenchendo o fundo por trás das cenas da favela. As fotografias da Providência, lar de Maurício, têm como foco a vida cotidiana, os moradores buscando água, as crianças brincando, uma mãe trançando os cabelos da filha do lado de fora da sua casa. Embora as fotografias das duas áreas ocupem lados diferentes do salão de exposição, não há uma divisão explícita entre as duas partes da exposição, enfatizando a continuidade histórica entre os dois locais. Ocasionalmente, o conteúdo das fotografias também conecta as duas seções. Uma imagem de Canudos retrata uma ponte construída por engenheiros confiantes feita para durar “mil anos” e que foi quase imediatamente submersa pela subida das águas. Enquanto isso, na Providência, os moradores lembram de um incidente em 1967 quando uma rocha enorme caiu da montanha e matou muitas pessoas, um evento que deixou os engenheiros do Rio perplexos, pois tinham predito que isso nunca poderia acontecer.
Além de documentar a vida cotidiana em ambos os locais, a exposição também traz partes da história para primeiro plano, preenchendo as lacunas entre 1897 e 2017. A Guerra de Canudos aconteceu quando Antônio Conselheiro, um líder religioso carismático, começou a manifestar-se contra o governo da jovem República Brasileira na área ao redor de Canudos. Depois que três expedições militares foram incapazes de desalojá-lo, o governo federal no Rio instruiu o líder do quarto e último exército enviado ao Nordeste que “não deixasse pedra sobre pedra em Canudos”. Após a destruição da cidade e a morte de quase 25.000 habitantes, a antiga cidade foi inundada e coberta de água. Apenas nos períodos de seca, em 1994, 2000, e 2013, é que algumas das estruturas originais foram descobertas. Maurício aproveitou-se das últimas secas para fotografar a região com os destroços centenários expostos.
Na Providência, a primeira rua ocupada e construída pelos veteranos e suas famílias era conhecida como Rua dos Cajueiros. A população da comunidade e de outros assentamentos informais como este aumentaram na primeira década do século vinte, pois as políticas do Prefeito Pereira Passos deixaram muitos vivendo na pobreza e sem lar. Não se sabe ao certo quando a favela ficou inicialmente conhecida como “Morro da Providência”, mas nos anos trinta os documentos da cidade referiam-se a ela como tal.
Esta não é a primeira exposição em que Maurício Hora voltou a sua câmera sobre a sua comunidade. Ativista e mobilizador comunitário de longa data na Providência, Maurício colaborou com a instalação do escultor português Vilhs e o artista francês JR em projetos como a sua instalação Mulheres São Heroínas e o Espaço Cultural Casa Amarela, também na Providência. Maurício também realizou exposições fotográficas tanto no Brasil como na França. Ele é o diretor da ONG Favelarte e em 2011 lançou a novela gráfica, “Morro da Favela”, com o artista André Diniz.
A exposição “Morro da Favela” liga o sertão nordestino às favelas do Rio, duas áreas marginalizadas no Brasil contemporâneo que têm muito em comum apesar das diferenças geográficas. A exposição de Maurício Hora faz uma ligação explícita entre estes lugares, mostrando que a favela não foi um acidente, mas uma manifestação da cultura nordestina, afro-brasileira que precisou adaptar-se às circunstâncias difíceis no Rio. Em uma parede do salão da exposição estão pendurados quadros de uma pequena igreja que se encontra na Providência atualmente. Em 1901, as esposas dos veteranos de Canudos construíram esta estrutura para abrigar uma estátua de Cristo que supostamente pertencera a Antônio Conselheiro. A igreja ficou conhecida como a capela do Cruzeiro, mesmo depois que a cruz que originou o seu nome foi perdida. Acompanhando estas imagens, a legenda das fotografias desafia o espectador: “E a sua? Onde está sua cruz agora?”
Detalhes da Exposição
Datas: 24 de maio à 14 de julho, 2017
Segunda à sexta, exceto feriados, de 10 às 19 hs.
Visitas guiadas de segunda à sexta, exceto feriados, às 12:30 hs; Quarta e Quinta às 18:15 hs.
Local: Espaço Cultural BNDES
Av, Chile, 100 – Centro, Rio de Janeiro
Próximo à Estação Carioca