Na sexta-feira passada, 20 de julho, no último dia da semana do Julho Negro, o Museu da Maré realizou uma mesa redonda sobre o encarceramento em massa e a criminalização de moradores de favelas no Brasil. Participaram do evento representantes da Campanha Pela Liberdade de Rafael Braga, Associação de Familiares de Presos (AFAP) e Eu Sou Eu, Reflexo de Uma Vida na Prisão compartilhando suas experiências como ativistas na área de justiça prisional.
Em 2015 havia 622.000 pessoas encarceradas no Brasil, sendo 28.000 no Rio. Hoje, a população encarcerada do Rio é de 51.000 e continua crescendo. 62% dos encarcerados no Brasil são negros. No Ceará, enquanto 69% da população do estado é negra, 98% das mulheres encarceradas são negras. 41% dos encarcerados são mantidos na prisão sem uma sentença, e 37% acabam absolvidos. A maioria dos brasileiros presos na prisão estão lá por crimes contra a propriedade e não representam uma séria ameaça. Esses números ajudam a situar como o racismo institucionalizado se manifesta.
A discussão se concentrou na conexão entre o encarceramento em massa e os sistemas de dominação, a supremacia branca, o patriarcado, o capitalismo e os legados coloniais. Em particular, as prisões do Brasil de hoje foram descritas como uma continuação da sociedade escravocrata, cuja lógica nunca foi efetivamente desmantelada no ethos cultural, e onde as populações negras, indígenas e de baixa renda são privadas de direitos e liberdades. “O Brasil sempre foi um território de prisão, não foi construído para ter uma população de cor”, disse Clarens Therry, imigrante haitiano e líder da União Social de Imigrantes Haitianos (USIH). Historicamente, a primeira prisão foi construída para receber “escravos desobedientes”.
Os palestrantes discutiram o objetivo de reduzir massivamente a população prisional com base em uma compreensão crítica do sistema de encarceramento enraizada na escravidão e no racismo. A Frente Estadual pelo Desencarceramento foi lançada no Rio em 26 de janeiro em resposta as condições desumanas das prisões (em 2016, pelo menos 256 pessoas encarceradas morreram sob custódia do Estado no Rio de Janeiro), a privatização crescente das prisões e as injustiças causadas pelo sistema judicial. As prisões no Brasil geralmente abrigam 50-70 pessoas em um espaço destinado a 30. É comum que as pessoas durmam diretamente no chão e a propagação de doenças bacterianas é uma questão urgente.
Além de terem que viver em condições traumatizantes nas prisões, o governo não fornece sistemas de apoio para devolver os internos à sociedade e apoiá-los na busca por emprego. Samuel Lorenzo, ex-preso e agora membro ativo da Eu Sou Eu, uma organização que promove o aprimoramento dos direitos e condições dos prisioneiros, explicou: “Uma das principais falhas do Estado é que o reingresso na sociedade das pessoas que foram encarceradas não é priorizado”. De fato, como várias pessoas argumentaram durante a discussão, os interesses econômicos e a mão de obra barata são priorizados sobre o direito à reabilitação, criando assim um sistema de exclusão e injustiça a longo prazo para aqueles que foram anteriormente encarcerados.
Daisy, representante da Campanha pela Liberdade de Rafael Braga, descreveu o julgamento do jovem e a luta pela liberdade. As acusações arbitrárias para a prisão de Rafael atraíram visibilidade global e a campanha para sua libertação ganhou apoio maciço do público. Ela descreveu que ser jovem e negro no Brasil é um perfil válido para ser encarcerado: “O encarceramento de Rafael simboliza a criminalização de pretos pobres“. No caso de Rafael Braga, os termos e a prova de sua sentença são completamente arbitrários. Ao negligenciar outras formas de evidência, os relatórios policiais serviram de prova suficiente para sua prisão. Durante seu julgamento, o juiz rotulou Rafael Braga como tendo “personalidade para o crime”, apesar de ser preso por carregar uma garrafa de Pinho Sol. Daisy explicou que o encarceramento em massa de jovens negros tem um impacto social além das vidas dos condenados: “Quando se prende um homem negro, se prende toda família. A família e as mulheres sofrem essa violência também“.
A discussão foi então aberta ao público. Pessoas como Clarens Therry e Deborah Maria da Silva, fundadora e organizadora do Mães de Maio, falaram e fizeram apelos à ação. A necessidade de aprender com as estratégias de resistência passadas, como a revolução haitiana e a existência de quase 100 anos do Quilombo dos Palmares são necessárias. Além disso, as pessoas falaram sobre a necessidade de criminalizar a escravidão. As pessoas negras e pobres estão sendo criminalizadas no Brasil, enquanto a longa história da escravidão do país e sua continuação através da militarização do Estado ainda não foram criminalizadas. A discussão terminou com um forte apelo à ação e a necessidade de centralizar a experiência e o conhecimento daqueles mais afetados pela violência do Estado. “A gente já sabe que não adianta ter soluções de cima para baixo, temos que lutar de baixo para cima“, disse Clarens. Além disso, “a revolução tem que ir para as ruas“.
A série de eventos, protestos e conversas que compuseram a segunda semana do Julho Negro revelou, claramente, a relação da violência e o crime no Brasil com o racismo e sua utilização como ferramenta para oprimir pessoas de baixa renda, com raízes profundas nos tempos da escravidão. Os espaços, em toda a região metropolitana do Rio–que acolheram os diversos eventos durante toda a semana do Julho Negro–desde um protesto marcando a chacina da Candelária a um painel de discussão sobre dados e estatísticas em uma igreja da Baixada Fluminense–são manifestações crescentes de um movimento contra crimes e injustiças de um aparelho estatal que não funciona. A poderosa e extensa programação reuniu dezenas de organizações comunitárias, grupos de ativistas e indivíduos de comunidades locais e de todo o mundo. Suas presenças evocativas, falas e histórias impulsionam o movimento global de igualdade e dignidade.