Como parte da semana Julho Negro, o Centro de Direitos Humanos da Diocese de Nova Iguaçu e o Fórum Grita Baixada realizaram um painel para discutir o Atlas de Violência 2017, um estudo publicado recentemente sobre a violência e homicídios no Brasil realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). O estudo mostra que jovens negros são as principais vítimas da violência no Brasil. O painel do Julho Negro, intitulado “Para Além dos Números”, ilustrou a importância da humanização das estatísticas e das pesquisas. Especificamente, os pesquisadores revelaram o racismo institucionalizado por trás dos números surpreendentes que colocam a polícia brasileira como uma das mais assassinas em todo o mundo.
O painel aconteceu em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, região que convive com a negligência do Estado e tem uma forte história de resistência. Como um membro da audiência comentou, “a Baixada sempre gritou” desde suas raízes como o Quilombo de Iguaçu, e continua sua luta para ser ouvida. Esta não é a primeira vez que várias organizações da Baixada manifestam suas preocupações com a segurança pública e a violência policial generalizada. Em setembro de 2016, outro relatório foi divulgado sobre a violação do Estado em relação aos direitos humanos.
O Atlas de Violência 2017 mostra que, em relação aos 48.136 homicídios ocorridos no Brasil em 2005, o número de mortes aumentou significativamente nos últimos dez anos. Em 2015, o país registrou um total de 59.080 homicídios, uma proporção de 28,9 mortes por cada 100.000 habitantes.
Embora a taxa de homicídios do Rio tenha diminuído significativamente em 36,4% entre 2005 e 2015, recentemente, as estatísticas de óbitos associados a intervenções policiais legais (sem contar atividades ilegais ou ilícitas) e as operações de guerra no Rio aumentaram. Este ano, os assassinatos por policiais no Rio de Janeiro aumentaram 60% (178 mortes) em relação a janeiro a abril de 2016 (111). Enquanto trocas de tiro da polícia deixam vítima após vítima inocentes, e moradores de favelas se engajam em protesto após protesto contra a violência, a legitimidade e a eficácia de intervenções policiais como solução para a criminalidade e a violência são cada vez mais debatidas.
Juntamente e para além do reconhecimento desses números, o evento abriu o debate para falar sobre as conseqüências e experiências sociais das comunidades que vivem sob constantes operações policiais militarizadas em favelas e a condição de criminalização. Compreender o contexto social do Rio, e neste caso da Baixada, permite uma análise crítica das estatísticas recentemente publicadas. A Baixada vive o problema grave das milícias. A polícia é altamente militarizada e usa caveirões. Execuções pela polícia são comuns, como o caso em Japeri, onde pelo menos oito pessoas foram assassinadas pelo BOPE. A violência vivida pelos moradores da Baixada e as pessoas que vivem nas favelas do Rio é uma conseqüência da contínua mentalidade escravocrata da sociedade brasileira, que é encarnada e perpetuada pelo Estado. Este entendimento, ao lado do Atlas da Violência, preparou o terreno para um debate produtivo sobre alternativas para garantir uma segurança pública em que as vidas das pessoas são preservadas e valorizadas.
O primeiro palestrante foi Fransérgio Goulart, historiador e assessor político do Centro de Direitos Humanos da Diocese de Nova Iguaçu. Ativista comprometido na luta para acabar com a violência do Estado contra os moradores das favelas, Fransérgio falou sobre o papel da branquitude e da supremacia branca no debate sobre a segurança pública. “No debate de segurança pública sempre se fala de polícia, dos negros, etc. que são dados que de alguma forma a população negra já sabe. Que outros fatores a gente precisa colocar nesse debate?” Fransérgio continuou a explicar que o privilégio branco precisa ser adicionado ao debate para enfrentar a questão da segurança pública: “O fim do racismo só será possível com o fim da branquitude… Se a gente não enfrentar e pautar o tema do privilégio, não vamos conseguir ter uma política de segurança”. Fransérgio continuou confrontando o papel dos pesquisadores brancos: “Os brancos pesquisadores pouco falam que os indices de homicídio entre os brancos diminuem. Têm que se entender como oppressor”. Essa autoconsciência é crucial para erradicar a supremacia branca. Ele continuou enfatizando o potencial do movimento das Mães e Familiares de Vítimas do Terrorismo do Estado: “Se tem hoje um movimento revolucionário, são mães e familiares de vítimas do Estado… Elas são hoje um grupo, maioria mulheres negras muito potente nessa luta. Essa rede nacional hoje é o grande ator protagonista contra a violência do Estado no Brasil”.
O painel incluía outros integrantes, sendo eles: Daniel Cerqueira, pesquisador do IPEA, e Jurema Werneck, diretora executiva da Anistia Internacional Brasil. “A assistência publica tem que enfrentar o racismo em todas suas dimensões”, afirmou Jurema enquanto explicava como a segurança pública é historicamente militarizada no país e, portanto, a “segurança cidadã” deveria ser vista e pressionada como uma política de segurança alternativa. A segurança cidadã, ela explica, realmente serve para proteger seus cidadãos em vez de usar a violência contra eles através da militarização. “O levantamento conduzido pelo CESeC (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania) no Rio mostra que 92% acha que a polícia não tem direito de matar ninguém… A gente precisa contestar a perspectiva e relação entre a segurança pública e a guerra às drogas. Todo mundo sabe que uma guerra produz mortes, mata muito”. Ela continuou argumentando pelo desarmamento da polícia: “O Brasil precisa reconhecer o protocolo internacional para proteger as vidas das pessoas. Se números demonstram que a polícia está matando, essa força precisa ser desarmada”.
Após os palestrantes, a platéia pôde fazer comentários e perguntas, nos quais os participantes, em sua maioria moradores da Baixada, ampliaram as discussões críticas. Os tópicos abordados incluíram a necessidade de centralizar a discussão–em debates sobre segurança pública–nos privilégios e nas estratégias da elite para se manter no poder. A Prefeitura investe em educação, segurança e saúde em áreas ricas, como a Zona Sul da cidade, mas envia policiais militares violentos para favelas e negligência suas necessidades básicas. A violência do Estado funciona como uma ferramenta de opressão e, de fato, serve para preservar a supremacia e privilégio dos brancos. As pessoas também falaram como o Estado está envolvido no planejamento contra-insurgente. A polícia apresentou um manual para contra-insurgência em 2015, e uma lei antiterrorista também foi recentemente aprovada, que criminaliza ainda mais as populações pobres e negras no Brasil. O evento terminou com o reconhecimento de que “as vitórias são realizadas através de processos”, destacando a importância de celebrar vitórias conquistadas na luta contra a violência do Estado e reconhecendo que a luta continua, com mais vitórias por vir.