No dia 11 de agosto, o Colégio Brasileiro de Altos Estudos (CBAE) promoveu o evento de lançamento do Laboratório de Estudos das Transformações do Direito Urbanístico Brasileiro (LEDUB), “um ponto de convergência de estudiosos, profissionais, especialistas que consideram o direito urbanístico uma peça fundamental à engrenagem das metrópoles brasileiras”. O projeto foi desenvolvido pelo professor Alex Magalhães do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR), da UFRJ, e conta com um grupo de jovens pesquisadores e numerosos colaboradores das áreas urbanística e jurídica. Devido a natureza do tema o LEDUB traz à cena um diálogo interdisciplinar, independente de formação ou titulação, sendo bem-vindos todos aqueles que desejam se aprofundar na dimensão jurídica no fenômeno urbano.
O evento teve início com uma homenagem ao advogado e professor Ricardo Pereira Lira, ex-diretor da Faculdade de Direito da UERJ, que foi o precursor, em 1987, de uma área de concentração em estudos em Direito das Cidades que veio a se tornar um curso de pós-graduação stricto sensu na UERJ em 1991. No início do evento, foi exibido um vídeo com uma entrevista com o professor, onde ele falou da sua trajetória acadêmica e profissional. Ele declarou nesta entrevista que sua maior contribuição doutrinária foi seu livro Elementos de Direito Urbanístico.
Um dos elementos importantes citados no vídeo foi a sua preocupação com a urbanização das favelas, que o levou a formular, em 1979, uma tese acadêmica sobre a necessidade da volta do direito de superfície no ordenamento jurídico brasileiro. Como ele afirmou na entrevista: “O direito de superfície existiu no ordenamento brasileiro até um certo momento e depois deixou de existir porque a primeira lei hipotecária quando relacionou os direitos reais deixou de mencionar o direito de superfície, e com isso o direito de superfície saiu do ordenamento brasileiro. Então eu fiz essa tese, dessa volta do direito de superfície no ordenamento brasileiro preocupado com a ideia fundamental de que o direito de superfície fosse utilizado como uma forma de titulação das áreas favelizadas. Isso foi a minha primeira inspiração, a minha primeira ligação com o direito urbanístico”.
Ricardo Lira conta na entrevista que após sua tese ser defendida, um amigo lhe alertou que o direito de superfície–que é um direito temporário por tempo determinado ou indeterminado–poderia criar as condições para remoção branca das áreas favelizadas já que após “cessado o direito de superfície, esses terrenos, essa gleba de terra voltaria ao concedente da superfície envolvendo uma verdadeira remoção branca”. Ele narra que após esta crítica ele se preocupou bastante com esta possibilidade, e que após refletir ele teve “uma outra concepção: findo o contrato superficiário, você daria ao superficiário uma opção de compra, não por um preço de mercado, mas sim por um preço social, em que ele teria o domínio daquela área”.
A saber: o Estatuto da Cidade, instrumento de política de desenvolvimento urbano, reinseriu o direito de superfície no ordenamento jurídico brasileiro em 2001, porém ele só passou a fazer parte dos direitos reais com o Código Civil de 2002.
Após o vídeo e a homenagem, o evento contou com a presença de quatro palestrantes convidados para dialogar a respeito do conceito e diretrizes que movem o novo laboratório.
O advogado e professor, Miguel Lanzelotti Baldéz–que há décadas assessora movimentos populares na luta pelo direito à terra e à moradia, sendo uma referência na teorização sobre o direito oriundo do povo–destacou que a história do Brasil é a de um país invadido, colonizado e escravocrata, sendo estes os elementos agravantes para a situação econômica-social: “vivemos hoje um golpe de Estado. Nossa terra teve a primeira noção de morar pela posse portuguesa, uma repartição feita por europeus brancos e católicos”. Ele evidenciou a clara distinção de valores étnico-sociais entre os colonizadores e os colonizados. Miguel Baldéz reforçou a “importância da questão da terra como luta política… Precisamos debater e fomentar a luta urbana para a construção de um país democrático”. Ele declarou que se sente orgulhoso em ser advogado do MST e do Horto.
Logo após, o geógrafo, Jailson de Souza Silva, diretor do Observatório de Favelas, trouxe à discussão suas experiências pessoais as quais incluem a inserção de jovens da favela da Maré na universidade e sua intensa busca por direitos da população excluída. Ele também pontuou as condições adversas do mercado imobiliário e do transporte público que atingem a maioria da população trabalhadora das periferias: “não basta colocar uma saída de metrô no Complexo do Alemão. A cidade deve se preparar para receber as pessoas”. Jailson, nascido e criado em favelas da Zona Norte, reconhece o racismo como institucional em diversas estruturas do poder que visam fins privados, e que possuem uma visão negativa das favelas e de seus moradores. “Um dos pressupostos é o paradigma de ausência, denotando tudo que as periferias carecem do ponto de vista burguês“, disse Jailson. E ele prosseguiu: “Todo morador de favela é um potencial criminoso através de uma perspectiva sócio-centrada que não nos permite ver a realidade”, alastrando preconceitos globalmente.
Jailson de Souza Silva reconheceu a força de vários movimentos sociais como os coletivos de mulheres, negros, LGBT buscando igualdade no meio urbano. “Vivemos numa dinâmica golpista onde vai surgindo em meio a escuridão, polos de força da sociedade em luta pela democracia e radicalização social”, disse ele. E continuou: “Diante de padrões estéticos impostos por uma minoria, manter o cabelo de negro não alisado já é um ato de revolução”. Afirmando que um dos privilégios de se viver no meio urbano é conviver com as diferenças, Jailson expressou que “precisamos parar de entender a favela como problema da cidade, e sim como integrante da mesma. E o Estado deve em seu poder reconhecê-la como tal, fortalecendo o princípio de igualdade territorial”.
A advogada, Letícia Marques Osório, da Fundação Ford, enfatizou a discussão sobre o conceito de direito à cidade no contexto da Nova Agenda Urbana da ONU e seus preceitos que costumam ser revogados e praticados de forma incorreta, e sobre as sensíveis questões relacionadas ao direito à moradia. Letícia enfocou a importância de dialogar sobre o fato do setor privado ser o principal modificador do espaço público acarretando mudanças na conjuntura social. “Os ônus da modificação do espaço privado vão para o setor imobiliário, a maioria dos recursos do Estado estão congelados. Precisamos mudar a regularização voltando ao meio social”, ela afirmou. De acordo com Letícia esta situação resulta em gentrificação de favelas e em propriedades públicas virando empresas. Ela também destacou que “precisamos incorporar movimentos da sociedade civil, assim como o empoderamento da mulher que hoje é possessora de apenas 1% das propriedades privadas”.
O diálogo foi finalizado com a presença do próprio professor Ricardo Pereira Lira ressaltando a importância de não deixar o Estatuto da Cidade ter o mesmo caminho que o Plano Diretor que está sob competência municipal e tem tido seus regulamentos vulgarizados. Ricardo Lima afirmou que “o proprietário tem deveres para com a sociedade e isso atravessa, permeia, todo o Estatuto da Cidade”, invocando um pensamento coletivo e social no qual os proprietários de terras tenham em mente sua contribuição para a preservação do meio ambiente e da igualdade social, de acordo com as diretrizes do Estatuto da Cidade. O professor falou das dificuldades dos planos diretores serem postos em prática, pois segundo ele muitos municípios são criados “pelo desejo de participar do fundo estadual e federal. Eles não têm uma realidade social”. E como ele afirmou na entrevista no vídeo exibido, “muitas vezes [estes municípios criados] não tem plano diretor ou compram do Instituto Brasileiro de Administração Municipal que tem um modelo específico”.
No final, o coordenador do LEDUB, advogado, escritor e professor de planejamento urbano, Alex Magalhães, juntou-se à mesa agradecendo a presença dos palestrantes e apresentou os preceitos do projeto, dando início à celebração do evento. O LEDUB inicia suas iniciativas na direção de implementar corretamente o direito urbanístico nas ruas e no cotidiano da cidade. Ele tem como objetivo retirar qualquer rótulo de inacessível do direito urbanístico, para torná-lo popular e emancipador.