Daniel Becker, pediatra proeminente e especialista em saúde comunitária, se graduou em Medicina pela UFRJ e fez seu mestrado em Saúde Pública na ENSP – FIOCRUZ. Além de atender crianças ha anos em seu consultório particular, Daniel é um fellow da Ashoka, organização internacional que reconhece e apoia empreendedores sociais, por seu papel no CEDAPS, Centro de Promoção da Saúde, ONG que atua desde 1993 promovendo a saúde com agentes locais em centenas de favelas cariocas. Até o momento, sua página no Facebook, Pediatria Integral, conta com mais de 74.000 curtidas. Ele está também no Canal Criar e Crescer do YouTube. Daniel esteve no programa Roda Viva para falar sobre infância brasileira nos dias de hoje. O RioOnWatch entrevistou Daniel sobre sua trajetória e suas conclusões sobre a situação da juventude no asfalto e na favela.
RioOnWatch: Brevemente, você pode nos contar sobre seu trabalho como pediatra? Aonde e quando começou, com quais aspectos você têm trabalhado em comunidades de baixa renda e em bairros de alta renda?
Daniel: Eu comecei minha vida em pediatria há trinta anos, e eu fiz a residência em pediatria na UFRJ. Pouco tempo depois eu fui viajar, fiz dois anos de treinamento em Pediatria Clínica, Medicina do Adolescente e Pediatria Social na França e depois passei quase um ano com o Médicos Sem Fronteiras na Tailândia, trabalhando com refugiados cambojanos. Quando eu voltei, eu me associei ao grupo CEDAPS que estava trabalhando numa favela chamada Vila Canoas e a gente criou ali um pequeno posto de saúde. Começei como pediatra, mas depois eu passei a ser coordenador do projeto, apoiado pela Dreyfus Health Foundation, dos EUA. Nós percebemos que a gente estava fazendo mais do mesmo–estávamos fazendo uma repetição do que existia nos postos de saúde, e que na época fazia pouca diferença na vida daquela população.
A gente resolveu, então, mudar esta proposta e criar um modelo que gerasse um vínculo de responsabilidade de relação, de troca com a comunidade. Nós estudamos um pouco as opções e vimos os modelos cubanos e ingleses. Decidimos agregar a figura do agente comunitário de saúde, que no Brasil começava no Ceará, com sucesso. E inauguramos então a primeira equipe de Saúde da Família no Rio. Fomos portanto pioneiros do Programa de Saúde da Família no Rio, e junto com outras entidades em São Paulo, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Ceará, Niterói, nós levamos essa ideia para o Ministro de Saúde que adotou e expandiu o Programa, tornando-o a principal política de saúde no Brasil, um orgulho perante a comunidade internacional.
Então, essa é uma coisa sobre a qual eu tenho muito orgulho. Eu fui um dos pioneiros desse modelo, que é o modelo mais apropriado para o atendimento de comunidades populares. Você tem a equipe de saúde junto com a comunidade, trabalhando aonde a comunidade está, aonde as pessoas vivem. Podemos compreender melhor quais são as necessidades das pessoas a partir do local de moradia delas. E depois nós começamos a trabalhar com essa ideia da promoção da saúde, que é a ideia de que saúde não se conquista através do atendimento médico. A saúde se conquista com o desenvolvimento, com afeto, com uma boa alimentação, com uma boa moradia, com recreação, cultura, educação, paz e segurança. Direitos, né?! Direitos fundamentais.
O trabalho começou a fortalecer as comunidades, empoderando lideranças comunitárias para que elas conseguissem promover mais saúde nos seus territórios. Isso tudo foi ao longo de 20, quase 25 anos. Depois a fundação que nos financiava fechou as portas.
Nessa época em diante eu me dediquei mais ao consultório e isso deu bastante certo. Hoje faço parte do conselho do CEDAPS.
Então minha experiência com comunidades não é só com a pediatria, é com a vida, com o dia a dia das crianças, e das famílias em geral. No consultório trabalho com famílias e crianças de classe média e alta que podem pagar um pediatra que não tem convênio. Mas também na minha prática de consultório, eu continuei a me preocupar com o coletivo. Não fico só restrito ao mundo da família. Sempre tento entender e fazer refletir sobre o contexto social, ambiental e cultural que nos cerca. Então eu comecei a conversar, falar, palestrar e escrever no meu blog sobre o que é ser pai e mãe hoje em dia, no século 21, nessas condições que a gente vive no Brasil com as características da nossa sociedade, e tentar fazer as pessoas entenderem que os fatores sociais são muito influentes na vida das famílias e na forma que a gente cria nossos filhos.
RioOnWatch: E foi nessa época que você fez o Tedx Talk?
Daniel: O TedTalk foi nessa época, 2015. O Tedx justamente foi uma síntese de vários aspectos, que eu resumi com essa ideia de “sete pecados“. E agora estou escrevendo um livro sobre isso também, pela Editora Objetiva.
Os ‘sete pecados’ contra as crianças, seguindo o Dr. Daniel Becker:
1 – Privação do nascimento natural e do aleitamento materno
2 – Terceirização da infância
3 – Intoxicação da infância
4 – Confinamento e distração permanente
5 – Mercantilização da infância e consumismo infantil
6 – Adultização e erotização precoce
7 – Entronização e superproteção da infância
RioOnWatch: O que você vê como as maiores diferenças entre jovens criados na favela e no asfalto?
Daniel: Isso é justamente uma diferença de acesso a direitos. A criança da favela tem uma moradia ruim, em geral. Muitas vezes ela não tem saneamento básico ou adequado. Muitas vezes vivem ao lado de esgoto a céu aberto. Ela não tem serviços de educação e de saúde de boa qualidade. Ajuda muito quando tem Clínica da Família em casa, mas por exemplo se a criança precisa de um especialista ou de um exame mais complexo, isso é mais difícil conseguir.
Apesar que no Rio de Janeiro nessa parte melhorou bastante. O que tem hoje está bem mais organizado. Isso é uma grande melhoria que houve na gestão anterior, uma das poucas coisas que realmente que se pode apreciar no governo do Eduardo Paes–a melhoria da organização da rede de saúde. A equipe de saúde dele era boa. É claro, o acesso e o direito à liberdade–o direito ao brincar e o direito à circulação–ficam muito ameaçados pela presença da violência, tanto policial quanto pelo crime organizado. Isso é terrível e a violência é impeditiva da implementação de outros direitos. Então a criança [nesta situação] não pode brincar na rua, não pode acessar uma área natural. Ela não pode acessar sequer a praia porque às vezes não tem dinheiro para o ônibus. É muito trágico.
A gente estava feliz na época em que as UPPs conseguiram funcionar bem. Depois elas entraram em decadência, e agora está pior do que estava antes. Agora você tem a violência da polícia e a violência do crime organizado, configurando uma opressão de todos os lados, com consequências terríveis para o bem estar físico e emocional de todos os moradores. Há também o problema da alimentação. As crianças da periferia têm pouco acesso à comida natural, que é mais cara que a industrial. Nas biroscas do entorno não se encontra frutas e legumes, só comida de baixa qualidade–o salgadinho, o refrigerante, o biscoito. Essa comida tem mais açúcar, mais sal e mais gordura, e é mais cheia de substâncias químicas. Então as crianças comem pouca comida saudável, e tendem a ficar mal nutridas e com sobrepeso, até obesidade. Então o direito à alimentação saudável é um problema sério também para estas crianças.
Além disso, as famílias que são pobres e têm que trabalhar muito, convivem pouco com as crianças. Ficam trabalhando mais tempo, trabalham mais longe, são comunidades na periferia. Então, a mãe e o pai levam mais tempo para chegar lá. O percentual de famílias chefiadas por mulheres, em que o pai abandona, é muito alto — por isso o trabalho com a paternidade é muito importante.
Uma outra coisa que eu sempre coloco é que a criança tem que ter acesso ao ar livre e à natureza para se desenvolver bem. Uma área natural aonde têm árvores, pedrinhas, terra, bichos, é tão importante para o desenvolvimento dela. Às vezes têm favelas em áreas verdes, só que as crianças não chegam lá porque o tráfico não permite.
No ‘asfalto’ ha muitos privilégios, mas também há muitos problemas. Você tem crianças hoje que têm boas moradias, que têm casas adequadas, que têm saneamento e comida e babás. Mas, são crianças que veem pouco os pais também. Os pais são ausentes a maior parte do tempo. Você tem a questão também da alimentação industrial porque as pessoas não têm tempo para cozinhar, e assistem a televisão ou a internet e ficam influenciadas pela propaganda. São crianças que muitas vezes não podem sair de casa. Interessante notar que na favela as crianças brincando ficam mais na rua–apesar do risco de violência ser muito maior [em favelas com tráfico]–a percepção de risco é diferente. Um vizinho fica olhando. Ela fica bem mais fora de casa, que pode ser muito bom para [o desenvolvimento] dela. As famílias do ‘asfalto’ tem mais medo. A criança não pode sair porque [teme que] vai ter tiroteio, vai ser atropelada. Você acaba de verdade brincando menos fora de casa, na praça. Fica ali passando muito tempo em frente ao tablete, à televisão, e isso é ruim para o desenvolvimento dela.
RioOnWatch: Quais são as vantagens de ter sido criado na favela?
Daniel: Muitas vezes você tem uma rede de afeto, uma rede amorosa mais presente na favela. É comum você ter na mesma área, avó, tia, vizinha, todo mundo–uma rede social mais presente. Então, a criança é mais mergulhada numa rede afetiva e de cuidadores que conhecem ela e que cuidam dela duma forma mais amorosa. E isso é bom para ela, para seu desenvolvimento. Ela tem mais liberdade de brincar, porque muitas vezes tem um quintalzinho lá, têm árvores ali perto, e muitas vezes ela não tem tanto medo assim de sair na rua. Essas são as principais vantagens. O resto é mais desvantagem. Talvez haja menos superproteção também. A tendência de não conseguir dar limites, educar com um mínimo de disciplina positiva é muito forte na classe média-alta. É uma superproteção tóxica mesmo.
RioOnWatch: Você pode elaborar um pouco mais sobre isso?
Daniel: É a chamada ‘criação de helicóptero’. Quando um pai que trabalha muito está com seu filho, ele já se sente culpado, pois quase não viu a criança durante a semana. Então, no fim de semana você o leva ao shopping. Se quiser brinquedo, dá brinquedo. Se quiser um presente, dá mais presentes. Leva no play, não deixa ele se machucar. Fica o tempo todo em cima, ‘não pode isso, não pode aquilo, não faz isso, não faz aquilo, você vai se machucar, você vai cair’. A criança vive sem possibilidade de ter um pouco mais de risco na vida dela. Qual é o risco? O risco de cair e ralar o joelho, por exemplo: uma coisa muito importante porque a criança vai aprender a ter coragem, a avaliar riscos a perceber que os problemas passam e as feridas cicatrizam, a considerar a vida uma aventura. Uma criança superprotegida vai achar que ela manda na família e ela vai se tornar mais narcisista por isso–mimada. A possibilidade de sentir dor e sentir frustração e saber que ‘isso aqui não pode agora’ é muito importante para a criação dela. Talvez numa favela aonde há mais pobreza, a criança acaba tendo que enfrentar um pouco mais isso e ela tem mais afazeres, tem que ajudar em casa. Enfim, ela acaba mais preparada, mais bem-educada. A superproteção pode ser muito nociva para a criança. Ela é muito comum na classe média-alta.
RioOnWatch: Qual foi a maior mudança, ao longo dos seus anos de trabalho, no desenvolvimento de jovens de favelas?
Daniel: Na época em que as UPPs começaram a funcionar melhor, houve mais atividade econômica. Houve uma melhoria da vida em geral nas comunidades. Atividades sociais, havia mais liberdade com isso. De novo, a violência é muito opressora para as crianças, especialmente a violência policial em caso de jovens negros.
RioOnWatch: Você poderia elaborar um pouco mais por favor, sobre o impacto do estigma social nos jovens da favela?
Daniel: Eu acho a questão de estigma muito importante. Mais do que isso, tem o agravamento da desigualdade no Brasil, especialmente com o governo recente, que irá agravar essa desigualdade. A desigualdade em saúde é reconhecida como uma das coisas mais nocivas. É cientificamente estudado pela saúde publica, pela economia e as ciências sociais, que a desigualdade faz mal a todos, a sociedade inteira. O afastamento extremo entre dois lados da sociedade cria uma noção de que o ‘Outro’ é meu inimigo. O ‘outro’ que é o pobre, e alguém que eu desprezo, que é meu inimigo, que eu tenho medo, que eu prefiro não ver, ou até eliminar. A vida do outro passa a não ter o mesmo valor. Então jovens pobres e negros entram num processo de estigmatização terrível aonde eles representam o crime, a ameaça, o outro. E a população branca e rica começa a desprezar e odiar essas pessoas. Numa sociedade onde a ética da vida fica tão deformada, onde a vida não tem o mesmo valor, tudo fica desprovido de ética. E daí a corrupção, e a tolerância com ela. O rico não se importa com a qualidade do transporte público por que não usa, e aí todos ficam engarrafados. O rico não se importa com a qualidade da escola pública por que suas crianças estudam na particular, mas aí os pobres ficam pouco educados, e facilmente manipulados por políticos corruptos ou fascistas. E por aí vai, numa espiral que deixa tudo pior para todos.
RioOnWatch: Como isso impacta o desenvolvimento social e emocional de uma criança?
Daniel: Um jovem negro e pobre, morador de favela, não tem direito, sequer, de andar nas ruas da Zona Sul. Ele é visto como um inimigo. Se alguém achar que ele roubou alguma coisa, ele vai ser espancado. Há pouco houve uma operação da polícia que não permitia que as crianças negras que não tivessem dinheiro chegassem até à praia. A praia é um programa público e gratuito, um dos poucos. Acho que a sensação também de ser menos, de não ter direitos, de ser estigmatizado como criminoso, é muito cruel para a psique de uma criança ou de um jovem. Isso torna a vida dele mais difícil, com menos propósito e menos sentido. É bem difícil.
RioOnWatch: O que os pais de crianças que estão crescendo em bairros formais poderiam aprender com pais de crianças de favelas, e o que os pais de favelas podem aprender com os pais do asfalto?
Daniel: Para os pais da favela, eu diria que eles devem saber que eles podem ocupar os espaços culturais e recreativos da cidade. Você vai na praia ou no Parque Lage, espaços gratuitos, e você vê pouca gente de classe baixa. Tem gente do Alemão que nunca foi a praia–são 20km. Você vai no Centro Cultural Banco do Brasil, que tem espetáculos e exposições incríveis, tudo de graça. Ao redor tem a Casa França-Brasil, o Centro Cultural Correios, o Centro Cultural da Justiça Federal–todos na mesma área–e não precisa pagar nada. Mas muitas pessoas não sabem que elas podem ir nesses lugares. Em geral, nestes espaços só têm branco, não têm pessoas negras, não têm pessoas pobres. E aqui tem o Vidigal, tem a Rocinha, tem a Mangueira, é um ônibus de distancia também. Alguns podem vir a pé. Da Rocinha dá para chegar no Jardim Botânico a pé. Então, eu diria para os pais das favelas que eles têm que ocupar esses espaços culturais e naturais da cidade porque esses espaços são deles também. Não é só para os ricos, mas são só os ricos que aproveitam.
Para os ricos, diria a mesma coisa, que eles devem continuar a ocupar esses espaços e permitir que seus filhos se encontrem com as crianças da favela e brinquem com as crianças da favela. Quanto menos segregação, quanto mais encontro e afeto melhor. Esse encontro é que vai gerar empatia, compreensão. Vai gerar uma redução de estigma, o que é muito importante para essa cidade. Para entendermos que todos precisamos de uma cidade mais justa, mais igualitária, mais sustentável–e que isso só é possível pressionando os governantes, exigindo mais transparência e um governo voltado para os reais interesses da população, e não de grupos de interesse que circulam em torno dos políticos. É o que chamo de governança participativa. Para isso, temos que nos encontrar e debater.