No sábado passado, enquanto uma chuva fina caia sobre a cidade do Rio de Janeiro, as famílias que moram na Estrada de Maracajás no Galeão, na Ilha do Governador, encontraram-se para contar as suas histórias e organizar uma marcha de resistência. A sua história dolorosa é de perseverança, apesar de uma tremenda pressão externa; pressão que tem se tornado bem conhecida nas comunidades em todo o Rio. No dia 18 de setembro, elas foram informadas pela Aeronáutica (que tem uma base nas proximidades) que teriam 30 dias para destruir as casas que construíram durante décadas e deixar a terra completamente vazia. Restando cerca de duas semanas, as famílias estão se organizando, unidas em uma tentativa de salvar tudo pelo qual trabalharam. Esta matéria tenta retratar uma fração desta história e documentar as vidas e os espaços físicos que estão penduradas na balança.
A área dentro e ao redor da base militar tem muitas cercas e muros de concreto. Quando a base foi construída em 1945, os bairros foram divididos arbitrariamente e as casas foram destruídas. Uma comunidade na área, Rádio Sonda, não é encontrada no Google Maps porque na realidade foi cortada do bairro do qual fazia parte. Várias reivindicações de terras pelos militares têm confundido as condições legais das diferentes áreas e agora são a base de processos legais altamente questionáveis. Na Rádio Sonda, os restos das casas destruídas em 2015—uma destruída pela própria pessoa que a construiu–ainda continuam em ruínas sem qualquer ação do governo que exigiu a sua destruição. Elas servem como um lembrete sinistro do que pode acontecer.
De fato, em 2015, as quase 20 famílias da Estrada de Maracajás também foram ordenadas a sair. Felizmente, um morador notou que os mensageiros militares estavam apresentando um documento falso, e os soldados partiram. As famílias estavam seguras até um pouco antes do Natal de 2016, quando desta vez vieram mais soldados, mais armas. Intimidação é um traço comum nas suas histórias. Mais uma vez, documentos errôneos atrasaram o processo, mas a reivindicação da terra pelos militares foi finalmente aprovada por um juiz em março de 2017. Agora, após uma breve suspensão, a ordem de remoção está na mesa novamente. A contagem regressiva começou. As famílias que viveram na área durante décadas, muito antes da base militar existir, agora estão enfrentando a decisão de desfazer pessoalmente as vidas que criaram ou unirem-se e resistir. Face à pressão do governo e a intimidação militar, escolheram a última opção.
“Famílias se acabam por causa disso. É muito injusto o governo falar que a terra é dele, sendo que a terra é do povo. O governo acha que tem uma legitimidade que não é tão legítima. As pessoas construíram, deram a vida delas para essas residências. Você pode até ver que elas nem estão acabadas, porque realmente são famílias humildes, que não têm para onde ir, não têm recursos nem para pagar o aluguel de algum imóvel”, falou um líder da resistência, Anderson dos Santos Pereira, cujos pais moram na área em questão.
As casas são lindas e as melhorias que os moradores têm feito vagarosamente ao longo do tempo estão visíveis nas construções. Muitas famílias estão na área há três ou quatro gerações. Há filhos, filhas, mães, pais, e avós, com 18 a 93 anos de idade. “Meu marido já está com 53 anos, nasceu aqui. Minhas filhas nasceram aqui. Já estamos na terceira geração. Fizemos nossa vida aqui. O pai da minha sogra ajudou construir até a ponte da ilha. São muitos anos de luta, muitos anos de moradia de todos aqui”, refletiu Dea Maria Silva.
Juridicamente, o processo de remoção encontra-se em terreno instável. Em 2015, na época em que os militares começaram a sua tentativa de remover os moradores, o governo finalmente deu endereços ao bairro. Antes disso, somente o aeroporto tinha um endereço oficial. Ao fazer isso, no entanto, o governo juntou toda a área em lotes com endereços ligados aos militares, ignorando o fato de que há terras não militares espalhadas em toda a área.
Sem títulos de propriedade, a resistência tem sido difícil. Entretanto, está claro que há leis que apoiam o processo dos moradores para permanecer. As Cláusulas 22-25 do Artigo 5 da Constituição declaram que os benefícios e as desvantagens da urbanização devem ser distribuídos de maneira justa e que a política urbana deve promover o interesse público. As leis permitem que o governo tome a terra por “necessidade ou utilidade pública”, ou interesse social, mas somente se uma quantia justa de dinheiro for dada em troca. Os moradores observaram que não lhes foi oferecida qualquer compensação pela sua terra, e que na realidade, os planos para a terra podem nem ser para fins públicos. Parece que o hospital particular Rede D’Or tem mostrado interesse na terra. Se confirmado, seria mais um caso de interesses privados usando os órgãos públicos para intimidar e remover moradores que não somente têm o direito sobre a sua terra, mas também a um processo legal justo e aberto.
“Eu não acho justo tirar os moradores com mais de 70 anos, 80 anos daqui, pra dar para um órgão particular. Não é pra uso deles. Não é para o governo”, Dea afirmou.
A Lei Orgânica do Rio de Janeiro, promulgada em 1990, oferece bases adicionais de apoio aos moradores. O Artigo 12 declara que crianças e idosos devem ter direito à habitação, alimentação, dignidade, família e vida em comunidade. Mais notadamente, no entanto, é o Artigo 429, que declara que os moradores das favelas não podem ser removidos legalmente a não ser que haja um risco físico direto. Mesmo no caso de risco físico direto, garante-se aos moradores ajuda técnica nas negociações e participação total das partes interessadas. Não há evidência que os moradores de Maracajás morem ou criem uma área de risco, e qualquer ajuda ou comunicação aberta simplesmente foram negadas a eles.
“Já moramos aqui há muitos anos. Minha mãe já morava. A gente fica triste por perder as coisas tidas com tanto sacrifício. Tem muita gente idosa. Não dá! Pra onde a gente vai, me diz? Morar embaixo da ponte? Não é justo”, lamentou Ana Maria Albano Abraão.
Moradores também expressaram que através das décadas, as suas famílias receberam permissão verbal e escrita para morar nas suas casas, inclusive depoimentos assinados permitindo a instalação de energia elétrica nas casas. “Meu pai era funcionário do Aeronáutica. Ele falou com a prefeitura e conseguiu uma casa no Galeão. Fomos criados aqui. Nós não invadimos, foi permitido. E eles nunca chamaram a gente para conversar. A gente tem que sair, mas por que? Quase todos nasceram aqui”, falou Teresinha Parecida Nascimento.
Ao juntar as peças do quebra-cabeça, esta história é um exemplo perigoso do que a prefeitura e os militares são capazes de fazer por um interesse privado. Os moradores não têm sido informados apropriadamente sobre o caso. As suas queixas através dos canais governamentais corretos foram todas recebidas com apatia, o que não é apenas frustrante, mas provavelmente ilegal. A medida em que a prefeitura revela e divulga o seu novo Plano Estratégico, a realidade da atitude do governo para com os direitos dos cidadãos está sendo vista nas comunidades em toda a região. “O governo tem planos, estratégia de moradia, o direito de moradia das pessoas. Porém, as pessoas têm suas moradias aqui e estão querendo tirar as pessoas das suas moradias. Ninguém invadiu. Ninguém invadiu nada”, refletiu Edivalma Souza
A pressão constante do governo e a intimidação dos militares têm sido estressante para os moradores de Maracajás. Muitos são idosos, alguns doentes. O comportamento dos funcionários e organizações do governo não é apenas ilegal, mas claramente desumano. As autoridades públicas responsáveis por este caso devem acatar a lei nacional, estadual e municipal; os moradores expressaram a sua esperança que o juiz descarte a ordem de retomada após consideração à Constituição. Até lá, os moradores de Maracajás e da área ao redor continuarão a perseverar enfrentando as grandes dificuldades, como sempre fizeram.