Há quem pensa que o catolicismo é retrógrado e até se recusa a dialogar sobre as complexidades da sociedade contemporânea. Entretanto, duas iniciativas originárias de movimentos sociais vinculados a Igreja Católica da Baixada Fluminense ilustram como que este discurso pode ser equivocado. Por meio da coordenação do Fórum Grita Baixada e de respectivos religiosos desses municípios, o que antes era considerado tabu agora passa a ser encarado como um problema de inevitável discussão. Pela primeira vez em suas histórias, as Dioceses de Nova Iguaçu e Duque de Caxias/São João de Meriti promoveram debates públicos sobre as possibilidades de descriminalização e/ou legalização das drogas.
Em dois momentos, nos dias 26 de outubro e 18 de novembro de 2017, as dioceses articularam a vinda de renomados especialistas nas áreas de segurança pública, defensores de uma visão antipunitivista da lei para quem consome drogas ilícitas. Os debates fizeram parte do seminário Política de Drogas e Violência: Um debate necessário. Sem temer juízos de valor, a primeira intenção dos religiosos na promoção desse debate, foi o esclarecimento. “Considero sempre muito válido todo o debruçar-se sobre os problemas reais que nossa sociedade vive e enfrenta. É dever da Igreja querer um mundo melhor, refletir com seriedade sobre os efeitos, as causas e, sobretudo, as raízes de um sistema que oprime, humilha e mata. Encher as cadeias por crimes pequenos praticados por jovens será o caminho certo para termos mais paz e segurança?”, perguntou Dom Luciano Bergamim, bispo da Diocese de Nova Iguaçu, durante o seminário ocorrido em outubro.
O discurso seguiu afinado entre os sacerdotes católicos. “O problema das drogas, do tráfico e a violência a isso associada é gravíssimo e afeta toda a sociedade. Não se vê perspectivas de saída. Está claro que a atual política de drogas é um fracasso: tantos jovens sendo assassinados, sobretudo negros, policiais sendo mortos, cadeias que são escola do crime superlotadas”, descreve Frei Toni, coordenador da pastoral da Diocese de Duque de Caxias/São João de Meriti, que fez questão de mediar a mesa do segundo seminário, que aconteceu em novembro.
O coordenador do Fórum Grita Baixada, Adriano de Araujo, ao mediar o primeiro seminário, em outubro, teceu algumas considerações em relação à Lei 11. 343/06, a chamada Lei de Drogas, que para muitos é “uma das grandes responsáveis para o aumento da população carcerária no Brasil”, segundo ele. Pelos números apresentados pelo INFOPEN, o sistema de informações do Ministério da Justiça sobre unidades prisionais brasileiras, incluindo dados de infraestrutura, população prisional, e perfil das pessoas presas, constata-se que, em 2005, 9% dos encarceramentos em todo o país eram relacionados a entorpecentes. O número saltou para 28% em 2014. “Na teoria, a lei endureceu a pena para os traficantes e abrandou para usuários. De fato, a grande novidade trazida pela lei foi distinguir a maneira de tratar traficantes e usuários. Entretanto, essa distinção não é objetiva. Na prática deixa nas mãos do juiz (ou policial) decidir em que categoria de crime será enquadrado”, explica Adriano.
Uma das convidadas para as duas edições debates, foi a professora de direito penal e criminologia da UFRJ, Luciana Boiteaux. Ela disse que o caráter proibicionista do Poder Judiciário brasileiro apenas pegou carona no contexto histórico dos Estados Unidos. “Negociações políticas e diplomáticas criaram a chamada política proibicionista. Nunca ouve um estudo sobre quais substâncias deveriam, de fato, ser proibidas. Não houve nenhum congresso com especialistas que qualificassem a periculosidade desses produtos. Por outro lado, essa política de proibição que temos hoje é muito parecida com a que já existia nos EUA na década de 1960. É a ideia de proibir, criminalizar e colocar a tarefa para a polícia reprimir. As campanhas eram: ‘as nossas crianças estão morrendo e temos que decretar uma guerra contra as drogas’. Mas é uma guerra contra as pessoas. O lema era ‘não use drogas, você será preso’. Todos acharam que essa política de drogas daria certo”, explica Luciana.
Um dos resultados do excesso de proibicionismo, segundo a pesquisadora, é a dificuldade em se criar políticas públicas mais humanizadas para os usuários. “O usuário precisa de apoio da família, das igrejas e também do Estado. Precisamos dar uma política de acolhimento, moradia, processos terapêuticos. O perfil do traficante preso é formado por jovens flagrados com quantidades irrisórias. Pessoas sendo presas com uma grama de cocaína. Não se prende quase ninguém que tenha porte de arma, com quantidades [para configurar tráfico] que a lei determina. Essa conversa precisa encontrar eco nas políticas sociais”, diz a especialista.
Outro presente nas duas edições do Seminário foi o coronel reformado da Polícia Militar, Ibis Pereira, profundo defensor, dentre outras lutas, de um processo de desmilitarização da PM, além de um ferrenho crítico do racismo que impera nas instituições de controle social. “A grande maioria dos crimes que resultam nessas prisões são: homicídio doloso, latrocínio e mortes que decorrem de conflitos contra a intervenção policial. Em números absolutos, nenhuma democracia mata mais que a nossa”, explica o militar.
Ele também fez duras críticas à falta de investigação e vigilância sobre o tráfico de armas, segundo ele muito mais letal que o mercado paralelo de drogas varejistas. “A Baixada Fluminense é um dos territórios onde mais se matam no país e não temos um plano de redução de homicídios. Cerca de 56% das vítimas que são assassinadas têm entre 15 e 19 anos. A Polícia Federal fez uma pesquisa em 2012 e chegou a conclusão de que existem, pelo menos, cerca de 16 milhões de armas em circulação pelo país que não têm nenhum tipo de controle. E quem vão ser as vítimas dessas armas? O negro e o pobre”, salienta o coronel.
O terceiro convidado das duas edições foi Ricardo André de Souza, subcoordenador de Defesa Criminal da Defensoria Pública do Rio de Janeiro. Em seu relato sobre a população carcerária sob o olhar da criminalização das drogas, ele disse: “O último levantamento através do Instituto de Segurança Pública (ISP) em 2016 apontava 51.000 presos para apenas 27.000 vagas. Isso quer dizer o seguinte: os níveis de encarceramento não resolvem os problemas da segurança pública e são caros em termos de investimento. Substitui-se os presídios por cadeias públicas, mas servem apenas para superdimensionar a quantidade. As duas últimas unidades prisionais foram feitas em São Gonçalo em 2013. Cada uma delas custou R$30 milhões e tem capacidade para 800 vagas. Para promover um desafogamento mínimo do sistema, seriam necessárias a construção de mais 30 cadeias ao custo de mais de R$1 bilhão”.
E como pontuou o delegado da Polícia Civil, Orlando Zaccone, presente na 1ª edição: “Só 8% dos atos infracionais por menores de idade são de casos violentos. A Anistia Internacional pesquisou 20 países em que há a instituição da pena de morte. Em um ano esses países registraram 685 mortes. A polícia no Brasil, no mesmo período, e em apenas dois estados, Rio de Janeiro e São Paulo, registrou 976 mortes. A maioria dos inquéritos sobre autos de resistência são arquivados, pois basta para os policiais dizerem que agiram em legítima defesa. E essa justificativa sempre se dá em comunidades faveladas, nunca em bairros ricos ou de classe média”.
Matéria escrita por Fabio Leon e produzida por parceria entre RioOnWatch e o Fórum Grita Baixada. Fabio Leon é jornalista e ativista dos direitos humanos e assessor de comunicação no Fórum Grita Baixada. O Fórum Grita Baixada é um fórum de pessoas e instituições articuladas em torno da Baixada Fluminense, tendo como foco o desenvolvimento de estratégias, o fomento de articulações e a incidência política no campo da segurança pública, entendida como elemento para a cidadania e efetivação do direito à cidade. Siga o Fórum Grita Baixada pelo Facebook aqui.