‘Surubinha de Leve’ Para Quem? [OPINIÃO]

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A música brasileira andava bem até o lançamento de “Só Surubinha de Leve”. Depois de muita polêmica e uma tonelada de hipocrisia, de muitas pessoas (famosos e anônimos) protestando contra a letra do funk do MC Diguinho, especialmente do verso “Taca a bebida, depois taca a pica e abandona na rua”, que configuraria abuso de vulnerável, e pedindo a cabeça do funkeiro em uma bandeja de prata, resolvi entrar nessa “suruba” e trazer algumas lembranças importantes para a conversa. Além do que a letra diz, é preciso entender por que ela diz o que diz.

Me chamo Edilano Cavalcante, sou morador da favela de Manguinhos, Zona Norte do Rio de Janeiro, e convivo com a rotina de um lugar empobrecido financeira e culturalmente. Aqui a “surubinha” acontece diariamente, e ela vem em vários formatos.

Primeiro ela vem pela televisão nacional, que entra na casa das pessoas todos os dias e exerce grande influência sobre a cultura popular. Em seus programas, telenovelas e propagandas, a TV brasileira tem a tradição de usar o corpo feminino hipersexualizado como forma de atrair público e vender produtos, estimulando suas espectadoras a almejarem aquele corpo, enquanto os homens são estimulados a verem esse corpo como objeto de uso e descarte, ou a torná-lo submisso a seus desejos. Pode parecer que estou falando coisas de outro mundo, mas, antes da discordância, peço que avaliem com atenção programas de entretenimento, comerciais de TV, suas novelas preferidas, e observem como as mulheres são vistas e apresentadas.

Logo em seguida ela vem pela internet que, diferente da TV, consegue levar o usuário para diferentes mundos em poucos minutos. Entre esses mundos, os que mais recebem a atenção da população (e não por acaso) são as janelas de entretenimento e diversão. Nas “janelas” com maior índice de seguidores, adivinhem o que é mais estimulado? O consumo rápido e inesgotável de produtos e prazeres. Para isso é utilizada a mesma técnica da hipersexualização do corpo feminino. A diferença é que na internet pode-se tudo e mais um pouco: a mulher é vulnerabilizada desde em videosclipes (nacionais e internacionais) carregados de apologias ao estupro e à cultura do prazer acima de tudo, até em redes sociais exigentes de apresentação explícita e constante da beleza física, nas quais a exibição de corpos é a maior arma para alcançar atenção. Isso sem mencionar a infinidade de sites pornográficos de fácil acesso, nos quais os corpos disponíveis para uso e descarte são predominantemente femininos e de jovens, conhecidas popularmente como “novinhas”, um dos termos mais buscados nos sites desse gênero no Brasil.

É importante, no entanto, falar da hipocrisia cultural que o país vive, construída sobre o racismo, o machismo e a escravização. Como podemos pedir que seus moradores favelados, renegados filhos da pátria, tenham como inspiração para falar de suas vidas a mesma poesia que Tom Jobim escrevia, praticando seu ócio criativo no alto de seu apartamento em Ipanema ou bebendo uma água de coco na beira da praia? Como podemos pedir que os guetos empobrecidos e diariamente abusados contem a “beleza de ser brasileiro”, ou sobre a “garota de Ipanema” numa tarde de sol?

Somos, pelo contrário, diariamente estimulados a sermos machistas, a olharmos para as “novinhas” e exigirmos que seus corpos sejam apenas instrumentos de prazer momentâneo. Se olhamos uma jovem sem essa “malícia”, somos tarjados por nossos pares de bobão, Zé Mané. Nossa posição de “macho pegador” é posta em dúvida. As meninas da favela, por sua vez, são pressionadas a se renderem às ordens de submissão e à busca pela beleza tão cobiçada, que é reproduzida nas telas de TVs, celulares e computadores. Suas musas inspiradoras são artistas, cantoras, atrizes da classe média, que, por seu meio social, cultural e financeiro, têm uma seguridade maior em exibir seus corpos e não serem vistas só como objetos de consumo, ainda que desejadas.

A distância entre os patamares sociais determina a diferença entre ser percebida como “vadia” ou “diva”. Para as meninas dos videoclipes e da TV, o glamour. Para as meninas da favela, o “papo reto”: “taca bebida, depois taca a pica e abandona na rua”, muitas vezes grávidas, com marcas físicas e psicológicas de abuso, desrespeitadas e com uma vida inteira pela frente pra tentar sobreviver com as migalhas que lhes restam.

Aqui no morro estamos todos abandonados. E não é de hoje que essa denúncia é feita. Todos os dias nos negam um emprego digno, sem exploração, nos negam uma educação de qualidade, capaz de nos levar à universidade, nos negam uma segurança de qualidade, que não seja homens de preto matando jovens pretos. Todos os dias nos negam o direito à saúde básica, capaz de resolver os traumas e sintomas causados por dias tão sofridos, como também nos negam cultura, esporte, lazer.

E quando a poesia é dita por uma mulher e declara que ela é malandra, ela muitas vezes acaba enfatizando esse estereótipo, dizendo não intencionalmente que a mulher gosta disso. Nesse momento todas e todos aplaudem, a TV e internet ficam eufóricas, chamam de diva, rainha, feminista, mulher independente, e enfatizam que todas as garotas devem ser “malandra” pra rebolar até o chão e não se deixar levar pelo garanhão. É o campo ilusório perfeito para mantermos uma sociedade hipócrita, machista, homofóbica e cruel.

É muito fácil culpar o funk, a favela e seus moradores por suas histórias nada encantadoras e constantemente sofridas. Difícil é se questionar por que uma grande parte da população sobrevive de migalhas, enquanto uma pequena porcentagem vive como reis e rainhas, dando a si próprios o direito de dizer o que é certo ou errado.

Não queremos nenhum tipo de surubinha, nem de leve nem pesada. Se você também não quer, lute por um país mais justo, pela garantia dos direitos da população, principalmente do povo empobrecido desse país. Agora, se você só se manifestou contra a música porque ficou com medo de seu filho ou filha dançar e cantar essa letra na hora do almoço em família, você é só mais um hipócrita e egoísta, disfarçado de patriota defensor dos bons costumes.

Matéria escrita por Edilano Cavalcante, morador e comunicador comunitário de Manguinhos.