Esta é a primeira de uma série de duas matérias de monitoramento e crítica ao acompanhar a ausência do Prefeito Marcelo Crivella até então, e suas políticas nas áreas de cultura, segurança pública, intervenções urbanas e sociais. Veja a segunda matéria aqui.
O prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, tem uma gestão marcada por ausências. Até meados de fevereiro desse ano, eram pelo menos 36 dias longe da cidade. Ele não só se ausentou durante o Carnaval, no qual o prefeito desempenha um papel simbólico, mas estava “acompanhando à distância” quando chuvas torrenciais no Rio mataram quatro pessoas e deixaram mais de 2000 desabrigadas e não estava na cidade no momento do anúncio da intervenção federal militar.
Sua ausência não é só do território da cidade, mas consiste no seu silêncio e suas não entregas políticas. O Plano Estratégico da cidade, que deveria ter sido revisado pela prefeitura ainda em 2017 após o engajamento e sugestões de revisão por parte da sociedade civil, nunca foi entregue. Está engavetado na prefeitura. A então Subsecretária de Planejamento e Gestão Governamental Aspásia Camargo, que encabeçou o Plano, foi deslocada para a Assessoria de Inovação da Secretaria da Casa Civil, e a Subsecretaria passou a se chamar Subsecretaria de Planejamento e Acompanhamento de Resultados. Resta saber quais resultados são esses.
Se compararmos com o processo de consulta do Plano Estratégico (lá chamado Plano de Metas) de São Paulo, uma cidade de dimensões e desafios comparáveis aos do Rio de Janeiro, vislumbramos onde a prefeitura do Rio poderia ter almejado chegar. A prefeitura de São Paulo entregou a versão final após consulta pública do Plano ainda em julho de 2017 e criou um site de acompanhamento dos indicadores das metas para o acompanhamento cidadão das mesmas.
Vejamos as ações e inações que marcam os 15 primeiros meses de gestão do Crivella:
“Não vamos ter cultura” em favelas
No âmbito da cultura, o Plano Estratégico não prevê iniciativas de fomento a projetos culturais. Verbas existentes de fomento, inclusive, foram suspensas ou redirecionadas para outras áreas e os editais lançados foram em menos quantidades e com menores valores que no passado. Somente prevê o programa Vale Cultura, que no seu programa de governo Crivella prometeu ampliar, de forma que pelo menos 1% do orçamento municipal fosse destinado à promoção da cultura na cidade já no primeiro ano de governo, mas sem cumprir.
Para Crivella, arte e cultura não precisam ser remuneradas e, portanto, não demandam investimentos. Isso porque, ao criar o projeto “Rio Big Walls” para a valorização de espaços urbanos por meio do grafite, ele declarou: “Nós vamos ser premiados e isso não custou absolutamente nada para a Prefeitura. Veja que coisa interessante, estamos discutindo tanto sobre patrocínio da Prefeitura e aqui está uma parceria linda, feita por uma jovem idealista, junto com o seu produtor, numa oferta gratuita à Prefeitura”.
Nesse sentido, a cidade testemunhou o corte de verbas para o carnaval, do subsídio à Casa do Jongo (que inclusive provocou seu fechamento temporário) e dos repasses devidos ao Instituto Pretos Novos desde que Crivella assumiu. É difícil acreditar em coincidência quando os três são fortemente associados à cultura negra, especialmente diante de um cenário de crescente intolerância por parte de alguns setores da Igreja evangélica em relação à cultura negra e religiões de matriz africana. A alegria pela nomeação de Nilcemar Nogueira, mulher negra, periférica, neta do sambista Cartola, para a Secretaria de Cultura durou pouco, quando percebeu-se que sua agenda não se contrapõe à do prefeito e privilegia apenas o Museu do Amanhã como aparato cultural.
Na mesma linha, o Museu da Escravidão e da Liberdade, apesar de previsto no Plano Estratégico e criado oficialmente por decreto em maio de 2017, não saiu do papel e não há informações se seu nome controverso foi colocado para consulta pública conforme prometido. Nas favelas, as Bibliotecas Parque da Rocinha e de Manguinhos foram reabertas, muitos meses após o previsto e após o descumprimento de vários prazos colocados pela própria prefeitura. Já a Biblioteca Parque do Alemão, que está desde janeiro de 2017 ocupada por policiais militares (que ocupam o teleférico onde ela se localiza), continua fechada. Em setembro do ano passado, anunciou a criação de uma Nave do Conhecimento na Rocinha, mas até agora nada mais foi dito. Prometeu ainda em sua campanha investir em lonas culturais, o que tampouco foi cumprido até o momento.
A revitalização de equipamentos culturais e bibliotecas está prevista de fato no Plano Estratégico, mas não a criação de novos equipamentos culturais nessas áreas ainda marcadas pelo déficit dos mesmos, nem a publicação de editais que possibilitem a ocupação dos equipamentos existentes com atividades culturais. Além do mais, o prefeito declarou que as atividades culturais devem acontecer no espaço da escola.
Além disso, a produção de eventos culturais na favela é cada vez mais difícil, especialmente diante da criação de um gabinete ligado à prefeitura que burocratiza e aumenta o número de licenças necessárias para se fazer um evento na rua, podendo inclusive vetá-lo durante a sua realização. Assim, vê-se um esforço do poder público em tornar verdadeira a profecia da então Subsecretária de Planejamento de Crivella de que “não vamos ter cultura” em favelas–esforço esse resistido na vida cotidiana de pessoas como Daiana Oliveira, do Ballet Manguinhos, que assumiu por conta própria o funcionamento da Biblioteca enquanto ela esteve oficialmente fechada.
“Jamais ficaremos ausentes [da segurança pública]”
Em seu discurso de posse, Crivella afirmou que a “questão da Segurança Pública–sabemos–é dever do Estado, não do Município. Mas jamais ficaremos ausentes”. De fato, a gestão municipal tem pouca ingerência sobre a segurança pública, já que ela é tradicionalmente competência do governo estadual e, atualmente, submetida ao governo federal, devido à intervenção federal militar, que colocou nas mãos do Interventor Braga Netto a Secretaria de Segurança do Estado. Ainda assim, o prefeito sentiu-se à vontade para se posicionar sobre a dita intervenção, indo na direção contrária da Câmara dos Deputados, da OAB/RJ e algumas organizações da sociedade civil e da academia que se propuseram a monitorar e limitar os efeitos dessa intervenção: para ele, “[é] impossível também você fazer uma incursão na comunidade carente sem que haja uma certa ação de violência”, discurso que contribui para a legitimação e naturalização dessa violência.
Além disso, sua atuação frente à situação da Rocinha no final de 2017 foi lenta—demoraram 15 horas após estouraram os conflitos para que ele se posicionasse sobre o ocorrido em nota oficial, que dizia:
É com muita tristeza que o prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, acompanha a situação de medo e insegurança provocada por traficantes de drogas, nessa sexta-feira, dia 22, na Rocinha, em São Conrado, na Zona Sul. Crivella se solidariza com os moradores que vivem na localidade e estão passando por dias extremamente difíceis. […] Apesar de ser uma responsabilidade do Governo do Estado, a Prefeitura do Rio não vai se eximir de contribuir com o que for possível para combater a violência na cidade. […] O prefeito considera que, com a colaboração de todos, o Rio vencerá essa batalha.
Na narrativa da Prefeitura, comum também na grande mídia, o medo é causado por traficantes de drogas e o Rio vive um cenário de “batalha”, que justifica a necessidade do emprego de tropas federais.
Já nas instâncias sobre as quais o prefeito pode agir mais ativamente sobre a segurança pública, essa atuação privilegiou as áreas já mais privilegiadas da cidade, visando reduzir a ocorrência de crimes “na orla da cidade”, como colocado no Plano Estratégico. A Prefeitura criou o programa Rio+Seguro, com aumento de efetivos da Guarda Municipal e uso de tecnologias como câmeras em Copacabana e no Leme, renovou o Programa Presente no Centro até o meio de 2018, em parceria com a Fecomércio, que garantiu também a continuidade do programa no Méier, na Lagoa e no Aterro do Flamengo até pelo menos o final de 2018. Além disso, deu motos à Guarda Municipal, conferiu-lhe a função de patrulhamento urbano (para além de proteção ao patrimônio, podem fazer policiamento preventivo) e colocou-a à disposição das forças federais de segurança para, segundo ele “atacar o varejo do crime”. Envolveu-se ainda em uma polêmica após a prefeitura distribuir um questionário para saber a opção religiosa dos Guardas, e que só possuía as opções “Católico”, “Evangélico”, “Espírita” e “Outros”.
Outras polêmicas incluíram a proposta que as escolas municipais fossem revestidas de uma argamassa blindada (que já teria sido encomendada em abril do ano passado, mas nunca apareceu), após a morte da menina Maria Eduarda, e a declaração do prefeito de que, apesar de segurança não ser sua prioridade, estava buscando tecnologias modernas para o combate à violência durante sua viagem pela Europa, que fez com que ele se ausentasse quando houve as grandes chuvas de fevereiro–o que foi desmentido pela agência alemã que visitou, que disse que a visita foi de caráter pessoal.
Esta é a primeira de uma série de duas matérias de monitoramento e crítica ao acompanhar a ausência do Prefeito Marcelo Crivella até então, e suas políticas nas áreas de cultura, segurança pública, intervenções urbanas e sociais. Veja a segunda matéria aqui.