Esta é a primeira matéria, de uma série de cinco partes, sobre museus comunitários e resistência nas favelas do Rio em homenagem à 16ª Semana de Museus (16 a 20 de maio de 2018).
“A história é fruto do poder, mas o próprio poder nunca é transparente a ponto de sua análise ser supérflua. A marca infalível do poder pode ser sua invisibilidade; o desafio inescapável será expor suas raízes ” – Antropólogo-historiador Michel Trouillot
Nas semanas que se seguiram ao assassinato de Marielle Franco, assistimos tentativas descaradas (mas no geral mal-sucedidas) de minar seu legado inspirador. Disseminada primeiramente pelo liberal conservador Movimento Brasil Livre, pela Desembargadora Marília Castro Neves e pelo Deputado Federal Alberto Braga, uma série de mentiras ligando Marielle a narcotraficantes se espalhou rapidamente no Facebook e no WhatsApp. Apesar do fato de que 88% das menções na mídia nas primeiras 19 horas após seu assassinato serem favoráveis, esta campanha de difamação se tornou viral.
Essas invenções visavam não apenas minar o caráter de Marielle, mas também os detalhes em torno do assassinato: embora as balas usadas para matar Marielle Franco e Anderson Gomes fossem de um lote vendido à Polícia Federal em 2006, o Ministro da Segurança Pública Raul Jungmann fez uma declaração alegando que as balas foram roubadas de uma sede dos Correios na Paraíba (isso foi posteriormente negado pelos Correios).
O que emerge é uma imagem de pessoas poderosas refutando e resignificando evidências factuais para manipular o modo como Marielle e seu assassinato são lembrados. Além disso, serve como um lembrete sobre as formas que o passado pode ser (re)apresentado para servir aos interesses presentes. Nesses casos, os interesses estão voltados para encobrir o envolvimento da Polícia Federal no assassinato e em manchar a imagem de Marielle para neutralizar sua política radical, baseando-se em venenosos estereótipos de mulheres negras de favelas.
Esta série de matérias da Semana de Museus 2018 explorará o surgimento de museus comunitários nas favelas do Rio de Janeiro como ferramentas de resistência contra a manipulação do passado pelo Estado. Esta matéria introdutória fornecerá o contexto para a série. A segunda matéria descreverá o surgimento dos museus de favela e ilustrará as maneiras pelas quais os museus são locais de resistência. As matérias finais enfocarão na produção de contranarrativas de três museus para subverter representações dominantes de favelas específicas. Usando exemplos do Museu da Maré, do Museu do Horto e do Museu das Remoções na Vila Autódromo, a série mostrará como os museus oferecem espaços para reescrever a história a partir das perspectivas de suas comunidades.
Mitos da marginalidade
Desde que a primeira favela conhecida como tal foi formada em 1897, essas comunidades foram representadas como pertencentes a um mundo sociocultural diferente da cidade formal:
“As favelas não constituem puramente impiedoso crime contra a estética, elas são particularmente uma grave e permanente ameaça à tranqüilidade e à salubridade pública.” – Rotariano José Augusto de Mattos Pimenta durante uma palestra intitulada ‘Remodelação do Rio de Janeiro’ no Rotary Club, Rio de Janeiro em 1926
As favelas eram vistas como existentes à parte de quaisquer normas da lei e da ordem, e como estando em oposição direta ao sucesso da sociedade como um todo. O discurso de Mattos Pimenta continua descrevendo como a favela é “excelente estímulo à indolência, atraente chamariz de vagabundos… que levam a insegurança e a intranquilidade aos quatro cantos da cidade”.
Essa dicotomia é reforçada hoje pelo que a estudiosa Janice Perlman chama de “mitos da marginalidade“: “o conjunto de estereótipos… tão generalizados e arraigados que constituem uma ideologia–de fato, um instrumento político–para justificar as políticas das classes dominantes, das quais dependem as próprias vidas dos migrantes e favelados”.
O estigma em torno das favelas ajudou a justificar políticas violentas, como as remoções durante o projeto de “modernização” de larga escala de Carlos Lacerda, na década de 1960, que destruiu muitas favelas da Zona Sul e que deslocou seus moradores para a periferia da cidade. Esses mesmos estereótipos também forneceram os meios para mentiras sobre Marielle ganharem impulso, apesar de evidências ao contrário.
Mitos da marginalidade permeiam a consciência pública de várias maneiras. A falta de perspectivas da favela na grande mídia, por exemplo, significa que imagens e descrições construídas passam a ser vistas como fatos, e opiniões subjetivas passam a representar crenças nacionais. Um artigo de 1995 do Jornal do Brasil, por exemplo, afirmava: “Hoje, 68 dos 180 morros do Rio são ocupados por favelas. Não há palavras para expressar a tragédia que isto representa na vida da cidade”.
A ausência de favelas nas histórias oficiais, museus e arquivos na cidade também trabalham para manter esses estereótipos intactos. Quando narrativas alternativas são silenciadas, ou quando a existência das favelas é totalmente negada, os mitos da marginalidade triunfam. O Arquivo Nacional do Rio de Janeiro contém informações sobre a história das áreas nas quais favelas estão construídas, porém raramente se referem a uma favela pelo nome. Fotografias e informações podem ser encontradas para a área que hoje é o Complexo da Maré, por exemplo, mas é preciso usar termos de pesquisa baseados nos bairros de classe média vizinhos como Bonsucesso, a Avenida Brasil ou a vizinha Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Em 2013, o Google removeu temporariamente ‘favela’ de seus mapas, sob pressão da Prefeitura do Rio, em um esforço para reduzir a proeminência dessas comunidades. No mesmo ano, apenas 0,001% das favelas do Rio apareceram em mapas oficiais, o que significava que 1,4 milhão de pessoas não tinham endereços que permitissem o acesso a contas bancárias, ou a serem listadas em pedidos de emprego.
Deste modo, os mitos da marginalidade transformaram favela de um termo botânico para uma categoria social e moral. Eles são usados para moldar um discurso organizacional sobre as favelas que delimita os limites do grupo social que vive nessas comunidades, definindo seu espaço, características comportamentais e modo de vida, permitindo que a (perceptível) profunda divisão social entre a favela e cidade persista.
Origem e narrativa dos museus
Os primeiros museus no Brasil foram instituições coloniais construídas no século XIX por uma pequena elite governante, branca e instruída, como pilares de um novo Estado-nação. O primeiro museu brasileiro foi o Museu Real (posteriormente renomeado Museu Nacional), fundado no Rio de Janeiro em 1818. Com exceção do Museu Naval, os primeiros museus foram todos museus de história natural focados em coletar e classificar amostras da fauna e da flora brasileira.
Na segunda metade do século XIX, sob a influência da teoria de seleção natural de Darwin, os museus brasileiros empregaram cientistas que aplicaram teorias evolutivas não apenas às plantas e animais, mas também às raças humanas. Esses museus de história natural, portanto, passaram a desempenhar um papel central na arena política, porque ordenavam grupos sociais diferentes em escala evolutiva, com populações negras e indígenas na parte inferior e europeus brancos no topo. O objetivo era estabelecer uma narrativa nacional e oferecer à população um sentido concreto de descendência, mas, em vez disso, esses museus estratificaram a sociedade e legitimaram a supremacia dos brancos.
Esse legado prevalece nos museus brasileiros de hoje. Por exemplo, no Museu Histórico Nacional, a ênfase é colocada na história dos vencedores, enquanto os indígenas, as favelas e outras comunidades marginalizadas têm presença mínima ou são deturpadas. Uma exposição permanente, por exemplo, traça a história do Brasil através de três partes: ‘Portugueses no mundo’ (1415-1822), ‘A Construção da Nação‘ (1822-1889), e ‘A Cidadania em Construção‘ (1822-presente). A construção da nação emerge claramente como o foco e os portugueses são os heróis. Nesta versão oficial, o Brasil nasce quando os portugueses chegam às suas costas. Pouca atenção é dada ao Brasil pré-colonial, nem a eventos históricos chave, como os massacres de populações indígenas e a história da escravidão no Brasil. Uma exposição temporária no Museu Histórico Nacional apresentou as contribuições do povo africano à identidade cultural brasileira. No entanto, exposições como esta são uma exceção à norma: exposições temporárias geralmente têm preços de entrada caros e apresentam temas estrangeiros. Em 2017, o Museu de História Nacional sediou uma exposição do Museu da Cultura Pop de Seattle sobre a banda Nirvana, por exemplo.
É de se notar que muitos brasileiros não têm o hábito de visitar museus. Em 2016, o Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM) registrou pouco mais de um milhão de visitantes nos 30 museus nacionais pelos quais é responsável. No mesmo ano, em contrapartida, a Comissão de Museus do Reino Unido registrou 47,7 milhões de visitantes nos 15 museus nacionais patrocinados pelo Departamento de Cultura, Mídia e Esporte.
Os museus nacionais do Brasil são, portanto, monumentos aos valores nacionalistas, em vez de fontes primárias de informação. No caso do Museu Histórico Nacional, a (re)apresentação do passado constitui uma história oficial do país, onde a inclusão de grupos marginalizados é imaginada e representações do passado que não podem ser integrados são excluídos.
O recente surgimento de museus comunitários nas favelas do Rio de Janeiro tem, portanto, marcado uma importante mudança na relação de poder entre essas comunidades marginalizadas e a cidade. Ao apropriar-se de uma instituição de elite como sua, as favelas estão invertendo a dinâmica do poder que as exclui da representação nos museus e arquivos nacionais e afirmam o direito à história da comunidade.
A segunda parte desta série, amanhã, demonstrará como esses museus são locais de resistência e mostrará que essa resistência se manifesta de diferentes formas.
Esta é a primeira matéria, de uma série de cinco partes, sobre museus comunitários e resistência nas favelas do Rio em homenagem à 16ª Semana de Museus (16 a 20 de maio de 2018).
Gitanjali Patel é pesquisadora e tradutora. Ela é mestre em Antropologia Social pela SOAS, Universidade de Londres. Sua pesquisa analisa a memória e a produção da história nas favelas do Rio de Janeiro.
Série Completa: Museus de Contranarrativas e Resistência
Parte 1: Museus Brasileiros no Contexto
Parte 2: Um Novo Tipo de Museu
Parte 3: Museu da Maré
Parte 4: Horto Florestal
Parte 5: Museu das Remoções