Nos 60 dias desde o assassinato de Marielle Franco, centenas de matérias, ações, encontros e homenagens foram feitos à vereadora que surpreendeu o Brasil e o mundo com seu coração e sua luta, luta essa que sempre será um importante objeto de debate em um país tão desigual como o Brasil. Eu, Edilano Cavalcante, coordenador da agência de comunicação comunitária Fala Manguinhos!, conversei com uma moradora de Manguinhos que, desde o dia em que conheceu Marielle Franco, antes mesmo que ela se tornasse uma vereadora ativa na cidade do Rio de Janeiro, já sentia a sua força e a admirava e apoiava. Seu nome é Paloma Gomes.
Paloma tem 30 anos e desde os 18 anos atua no território onde cresceu como educadora infantil. Sua aproximação à Marielle tem muito a ver com a necessidade que sentia de expandir seu campo de atuação no território ao se juntar a colegas de profissão também engajados na luta pela educação pública de qualidade. Emocionada ao relembrar todos esses momentos com Marielle, Paloma divide conosco sua trajetória de luta ao lado de sua maior inspiração.
Edilano Cavalcante: Como você conheceu a Marielle?
Paloma Gomes: Quando eu comecei a me envolver nas lutas pela dignidade educacional, participando de greves e movimentos de rua com outros profissionais, eu conheci o PSOL (Partido Socialismo e Liberdade, do qual Marielle fazia parte) e, como eles estavam juntos a essas lutas, então resolvi me aproximar do Partido no intuito de entender como essa engrenagem funciona e como eu poderia ajudar o território através desse espaço, utilizando a força de mais pessoas com o mesmo propósito.
Então o primeiro encontro popular que planejei para Manguinhos, numa necessidade de conhecer quem eram os protagonistas sociais locais, surgiu a partir de uma experiência que vi na Maré, de diálogo na rua, com roda de conversas entre os adultos, atividades para as crianças, e outras coisas que me encantaram. Logo depois descobri que quem produzia esses encontros que eu vi na internet era a Mari, então mandei uma mensagem pra ela perguntando se ela poderia me ajudar a fazer um aqui no território.
A resposta dela foi: “não, você fará o encontro do seu jeito, com as pessoas que você quiser e eu vou chegar junto para fortalecer o que você fizer. Você tem todas as ferramentas para isso”. E eu fui lá e fiz. Ela deu suporte, apoiou e ficou muito feliz quando mandei as fotos pra ela dizendo como eu tinha ficado encantada com as potências do bairro onde sempre morei e que nunca tinha percebido. [Essa troca inicial] foi o suficiente pra saber que aquela mulher seria minha inspiração de luta.
Eu tenho dois momentos de minha vida: a Paloma que só conhecia a favela onde as pessoas não tinham direitos, morriam e viravam apenas estatísticas, e a nova Paloma, que conheceu os movimentos sociais de Manguinhos.
EC: Como iniciou essa relação de amizade entre vocês?
Paloma: Após o evento, eu contei pra ela o impacto que aquilo havia tido em minha vida e como eu gostaria de dar continuidade a esse diálogo com as pessoas do meu bairro. Em seguida, ela me convidou para apoiar a sua campanha e desde então ela se tornou minha força, minha referência como ser político, social e de luta.
A Mari tinha a incrível capacidade de amar intensamente e ser firme com quem ela dava esse amor. Comigo não foi diferente. Mesmo ela tendo muitos compromissos, ela sempre foi muito presente. Nem sei como ela conseguia fazer isso! Todas as vezes que eu ligava pra ela, ela sempre tinha disponibilidade de me atender ou vir ao meu encontro caso fosse necessário, mesmo com as mil coisas em que estivesse envolvida. E sempre tinha uma força que saia de sua voz, em forma de conselhos, um abraço pra mostrar que eu podia contar com ela ou mesmo um olhar de conforto. Ela nunca me deixava vazia.
Quando foi eleita, ela me chamou para participar do mandato, mas eu disse pra ela que preferia ficar na educação naquele momento. Mas pedi que ela me desse voz, que eu pudesse estar com ela de outras maneiras, construindo idéias e planos. Ela logo compreendeu e nunca me deixou de fora de nada que estivesse envolvida. Eu sempre estive ciente, opinava, debatia e dava os passos juntos com ela. Então ela foi se tornando uma pessoa muito importante para mim, dentro e fora da vida política. [Pausa por conta das lágrimas] Eu nunca vou me esquecer dela, pois ela mudou minha forma de pensar, lutar. Mudou minha vida.
EC: Como você vê tudo isso que aconteceu com ela? Alguém do partido, familiares ou amigos tinha noção que ela estava em perigo?
Paloma: A gente sabe que a gente incomoda, mas não sabíamos que incomodávamos tanto a ponto de alguém sentir esse ódio e silenciar, através de execução, uma pessoa tão importante, tão boa, que desde o primeiro dia deu voz à favela e ao povo oprimido dentro e fora da Câmara de Vereadores. Isso é que incomoda muito, essa verdade materializada na voz e no corpo de Mari. Então nossa vida não tem sentido hoje se não for pela luta por igualdade, pela desconstrução desse império de poder machista, racista, homofóbico e covarde. Tudo que a Mari plantou dará muitos frutos e com muito mais força.
EC: Você vem acompanhando as investigações? Você acha que é possível encontrar os reais culpados?
Paloma: Então, dá um certo ódio, pois sabemos que quem mandou matar é muito bem protegido. Talvez seja possível encontrar quem fez os disparos, mas quem mandou eu não sei, não. Dentro do PSOL não se tem muitas informações, até para não expor as vidas das pessoas, mas o Marcelo [Freixo] está acompanhando tudo muito de perto. Qualquer coisa que é encontrada ele tem estado atento, assim como todos os advogados do PSOL. Eu espero muito que não fique impune.
EC: Como você tem avaliado essa grande comoção e mobilização nacional e internacional em torno da vida e da morte de Marielle?
Paloma: Eu acho que devemos começar dizendo que essa comoção não quer dizer que a morte da Mari é mais importante que a de outras pessoas que são assassinadas nas favelas ou ruas do Brasil, assim como a do Anderson [Gomes, motorista de Marielle]. Mas a Mari era a voz que ecoava dentro da Câmara, que cobrava justiça por todos os mortos nas favelas. Era ela quem não deixava ninguém lá esquecer que nós somos seres humanos e que temos o direito à vida. Foi por isso que teve esse impacto tão grande, pois a perda de representatividade foi enorme.
A outra parte da repercussão se deu por causa das pessoas que não conheciam a Mari e se surpreenderam com tamanha força e tudo que ela representava. A Marielle era a síntese de todas as lutas que a favela enfrenta diariamente para sobreviver em meio a tantos ataques.
EC: Como os núcleos de favelas vêm planejando dar continuidade as lutas de Marielle Franco?
Paloma: Estamos todos ainda muito abalados com a dor da perda, mas temos como missão não deixar que nada pelo que a Mari lutou venha a ser esquecido. E isso não é só por ela. É por nós, porque ela fazia tudo isso por nós, então é uma responsabilidade nossa. Estamos tendo um grande número de moradores de favela querendo construir e dar continuidade a tudo que ela representava e nós não vamos deixar ninguém pra trás. Iremos ao encontro de cada pessoa que tem como propósito lutar por seus direitos.
Estamos em ano eleitoral. Nosso propósito era colocar mais Marielles nessa luta, mas com essa porrada não estamos mais com essa prioridade. Agora o que temos como objetivo é estar ao lado e unir todos que querem estar nesse espaço amplo de luta.
Matéria escrita por Edilano Cavalcante e produzida por parceria entre RioOnWatch e Fala Manguinhos!. Edilano é coordenador da agência de comunicação comunitária Fala Manguinhos!. Como prática de comunicação comunitária produzida por e para Manguinhos, o Fala Manguinhos! tem em sua origem a defesa dos direitos humanos e ambientais, promoção de cidadania e saúde com a participação direta dos moradores e moradoras nas decisões que envolvem a Agência de Comunicação Comunitária de Manguinhos, a partir dos encontros do grupo de comunicação do Conselho Comunitário. Siga o Fala Manguinhos pelo Facebook aqui.