Esta é a matéria final, de uma série de cinco partes, sobre museus comunitários e resistência nas favelas do Rio em homenagem à 16ª Semana de Museus (16 a 20 de maio de 2018).
“Remoções não removem apenas pessoas, elas apagam histórias.” – Arquiteta urbanista Diana Bogado
O Museu das Remoções, na Vila Autódromo, foi fundado ha exatamente dois anos, em 19 de maio de 2016, e hoje comemora seu segundo aniversário com exposição, lançamento, debate e festa na Vila. Ele, então, representa o museu comunitário mais recém-criado da cidade, localizado na Zona Oeste, à beira da Barra da Tijuca.
Originalmente criada em 1967, a favela enfrentou ameaças de remoção desde o início dos anos 1990. A luta da comunidade pelo direito à terra resultou na concessão estatal de um Direito Real de Uso válida por 99 anos prorrogáveis à partir de 1994, e no mesmo ano a comunidade também foi declarada Zona Especial de Interesse Social, o que significava que a comunidade deveria ser preservada para fins socialmente equitativos. Em 2007, a pressão de ameaças de remoção foi remontada com os preparativos dos Jogos Pan-Americanos. No entanto, foi só com a vitória da candidatura Olímpica do Rio, em 2009, que a prefeitura conseguiu se aproveitar de uma justificativa para remover a favela. O governo havia citado o meio ambiente como justificativa para as primeiras ameaças de remoção, mas depois mudou a justificativa reivindicando a necessidade de um perímetro de segurança em torno do Parque Olímpico–um perímetro que as terras da comunidade estariam violando. Os ‘mitos da marginalidade’, que sustentam as percepções das favelas como centros de crime e violência, alimentaram crenças de que a comunidade representava uma ameaça imediata e perigosa, apesar de ter um histórico de ser “pacífica e ordeira“, sem crimes, tráfico de drogas ou milícia.
As remoções envolveram desinformação, intimidação, violência e força, resultando em confrontos ocasionais entre moradores e policiais. No pior dos casos, em 3 de junho de 2015, a polícia usou violência e spray de pimenta para desfazer uma corrente humana que 50 a 60 moradores haviam formado em torno de uma casa, cujo dono ainda não tinha recebido a correta indenização. As imagens das páginas dos moradores no Facebook mostravam fotos de moradores que sofreram lesões por cassetetes, balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo. As demolições continuaram em 2016, com o aumento dos esforços da prefeitura para remover os moradores e tropas de choque frequentemente entrando na comunidade à força.
Um slogan para o movimento de resistência, “Urbaniza já!”, Destacou a demanda da comunidade por urbanização e investimentos no bairro, em vez de remoção. Respondendo a uma provocação do prefeito, membros da comunidade com apoio de pesquisadores da UFRJ e a UFF criaram, colaborativamente, o seu próprio plano de urbanização, o Plano Popular, que foi apresentado para–mas em grande parte ignorado pela–prefeitura.
A resistência recebeu uma quantidade sem precedentes de atenção da mídia, o que ajudou a pressionar a prefeitura a permitir que 20 famílias remanescentes permanecessem na comunidade, embora em uma pequena fileira de casas novas uniformes. Como resultado, a Vila Autódromo tornou-se um símbolo de resistência às remoções no Rio e até mesmo globalmente.
A contranarrativa do Museu das Remoções
O Museu das Remoções foi concebido tanto para lembrar os processos de remoção e resistência da Vila Autódromo, como para servir de símbolo de esperança para outras comunidades ameaçadas de remoção. Um dos fundadores do museu, a arquiteta Diana Bogado, explicou:
“O objetivo do museu é manter viva a memória de como era a Vila antes das remoções e contar o violento processo da remoção. Tem um risco muito grande da narrativa hegemônica contar que os moradores queriam urbanização e que o Prefeito Eduardo Paes a concedeu. Mas não foi assim. A Vila Autódromo foi removida. Entretanto, 3% dos moradores se recusaram a ir para onde quer que seja e conseguiram permanecer e manter a Vila Autódromo viva. Estamos lutando para que nossa versão da história seja lembrada e comunicada. Na Vila Autódromo memória não se remove“.
Uma das principais diferenças entre as narrativas oficial e local sobre esse processo diz respeito às negociações com os moradores durante as remoções. De acordo com o prefeito do Rio na época, Eduardo Paes, “549 famílias não precisariam sair da comunidade. Mas dada a mudança no padrão de vida de moradores que já haviam se mudado para o Parque Carioca [habitação pública], e aproveitando a oportunidade de negociação aberta na comunidade, 531 solicitaram à Prefeitura o reassentamento ou indenizações“. Um apartamento no complexo Parque Carioca foi a principal opção de moradia oferecida pela prefeitura em troca da saída da Vila Autódromo, e foi enquadrada positivamente como uma “oportunidade”. Paes afirmava que a maioria dos moradores queria deixar a Vila Autódromo para morar no “super bonito” complexo Parque Carioca.
As alegações feitas por Paes contradizem diretamente os relatos dos moradores, que descreveram o uso de força, medo e intimidação para retirar as famílias da comunidade. Moradores disseram que os funcionários da prefeitura lhes disseram que não teriam outra opção a não ser sair e, que no fim, seriam forçados a sair, sendo assim eles optaram por se mudarem mais cedo para o Parque Carioca e deste modo reduzir o risco de mais problemas. As estratégias de dividir para conquistar criaram divisões dentro da comunidade e levaram alguns moradores a sair. Poeira e entulho das demolições iniciais causaram preocupações sobre o valor das propriedades e os potenciais riscos para a saúde. Embora alguns moradores tenham sido seduzidos pela retórica do governo e optaram por se mudar para o Parque Carioca, e outros com casas maiores tenham consentido em sair aceitando significativas compensações, eles eram a minoria. As circunstâncias em que a maioria dos moradores se mudou eram condições tensas e de alta pressão. Além disso, a realidade de morar no Parque Carioca era muito diferente das imagens que a prefeitura usava para motivar as pessoas a se mudarem para lá. Novos moradores reclamaram que os apartamentos recém-construídos eram “inabitáveis”, com gesso caindo do teto, vazamentos e ralos entupidos. Em última análise, muitos dos que saíram, processaram o governo.
Essa narrativa, experimentada pelos moradores, está rigorosamente documentada no acervo do museu por meio de fotos, vídeos, artigos de jornais e histórias orais. O acervo será lançado online em breve e estará disponível em um site semelhante ao do Museu do Horto. Algum material do acervo está atualmente disponível na página do Facebook do Museu das Remoções.
O museu tem uma presença online e física. Como muitos dos outros museus comunitários, o Museu das Remoções é um ecomuseu ao ar livre. No entanto, possui um espaço interno temporário no qual a comunidade exibi fotos mostrando o processo de remoção, bem como informações sobre outras violações de direitos humanos na cidade durante os preparativos para os Jogos Olímpicos. Este espaço também oferece um local para os antigos moradores voltarem, compartilharem memórias e passarem tempo na sua antiga comunidade. Assim como no Museu do Horto, os membros da comunidade estão presentes para levar os visitantes pelo espaço, mostrar as fotos e falar sobre o processo de remoção.
O slogan do museu “a memória não se remove” é reforçado através de instalações construídas a partir dos destroços deixados para trás após as demolições, representando sete locais diferentes de memória. Cada instalação simbolicamente representa o que costumava existir naquele espaço e o seu significado para a comunidade. Um desses locais era a casa da Candomblecista Heloisa Helena Costa Berto, cuja casa também era um centro religioso. Não só ela era uma figura importante na comunidade, mas muitos vinham de toda a cidade para visitar seu centro. A demolição de sua casa destacou-se como particularmente significativa, pois teve o tom da intolerância religiosa contra as religiões afro-brasileiras. A instalação do museu correspondente é um círculo, uma imagem recorrente no Candomblé, separada ao meio por uma parede feita de tijolos quebrados. Uma metade tem pedras azuis, representando a comunidade, e a outra metade apresenta uma pedra dourada em cima de um tijolo vermelho, representando que aquilo que foi ganho pelo poder do Estado, foi ganho com o sangue do povo. O círculo sugere inevitabilidade, mas as pedras apontam para a resiliência da comunidade e reitera o slogan do museu.
O poema na instalação diz:
“Um dia todo mundo vai perceber,Que a sabedoria e consciência do povo,É o medo daqueles que ali não estão.Um dia todos irão se lembrar,Que quando o povo luta,Não há motivos para se amedrontar. “
Conclusão
Os museus comunitários nas favelas do Rio de Janeiro são principalmente ferramentas de resistência. Essa resistência se manifesta de várias maneiras, mas, sem dúvida, a mais importante é o desafio explícito às representações dominantes. Dado o legado típico de um museu como uma ferramenta de repressão ideológica, ele também é um local apropriado e eficaz para resistir à ideologia dominante, e demonstra como as favelas não são objetos passivos de poder. O ecomuseu é uma manifestação de como um museu pode desempenhar uma função revolucionária. O museu oferece um espaço para a contestação e a renegociação do poder através da representação de narrativas alternativas, reinterpretando espaços, invertendo hierarquias de conhecimento e abordando ativamente os silêncios na produção da história.
A presença de museus nas favelas teve um efeito inegável na relação entre a favela e a cidade. Hoje, quatro dos museus comunitários são oficialmente reconhecidos pelo Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM) e aparecem no site do Ministério da Cultura.
Os museus também representam uma mudança bilateral: para quem está do lado de fora, a presença de uma instituição tradicionalmente elitizada em uma área de baixa renda gera surpresa e intriga, em um lugar que eles não teriam previamente interesse em visitar. Para os moradores das favelas, como Anastásia, uma adolescente da Maré, a presença de um museu na sua comunidade desafiou sua concepção anterior de museus e demonstrou como o museu é, de fato, uma instituição que pode representar sua comunidade. “É nossa cultura, nossa história, museu é isso!”
Esta é a matéria final, de uma série de cinco partes, sobre museus comunitários e resistência nas favelas do Rio em homenagem à 16ª Semana de Museus (16 a 20 de maio de 2018).
Gitanjali Patel é pesquisadora e tradutora. Ela é mestre em Antropologia Social pela SOAS, Universidade de Londres. Sua pesquisa analisa a memória e a produção da história nas favelas do Rio de Janeiro.
Série Completa: Museus de Contranarrativas e Resistência
Parte 1: Museus Brasileiros no Contexto
Parte 2: Um Novo Tipo de Museu
Parte 3: Museu da Maré
Parte 4: Horto Florestal
Parte 5: Museu das Remoções