Embora a falência do modelo de polícia pacificadora já estivesse sendo sinalizada há anos por moradores, pesquisadores, organizações da sociedade civil e os próprios índices de violência e letalidade no Rio de Janeiro, foi só em 2018 que o poder público sinalizou a sua desmobilização parcial, no contexto da intervenção militar federal na segurança pública do estado. O gabinete da intervenção sinalizou a intenção de realocar os policiais das UPPs em companhias destacadas, vinculadas aos batalhões locais, para cobrir as mesmas áreas. Saía, assim, o policiamento de proximidade, com base instalada nas favelas, e retornava-se ao antigo modelo de incursões pontuais. Mais recentemente, em fevereiro de 2019, começou a tramitar na Alerj um projeto de lei que determina a sua extinção completa, aprovado em primeira votação.
Diante da desmobilização de algumas unidades em 2018, o então porta-voz da Polícia Militar, major Ivan Blaz, disse que dessa forma os policiais podem atuar “de forma mais livre” e “a tropa não [precisa ficar] amarrada em um local físico”. Para os moradores, por outro lado, o fim das UPPs pode trazer uma oportunidade de ressignificação do espaço físico que ocupavam na favela.
Enquanto algumas bases são prédios físicos construídos pela polícia para abrigar a UPP, em alguns casos a UPP ocupou prédios já existentes e em muitos outros houve apenas a instalação de contêineres. Em todos eles, no entanto, fica o questionamento: o que existia no local antes que precisou ser realocado para dar lugar à UPP? E o que poderia assumir esse lugar depois de sua desmobilização? André Constantine, por exemplo, ex-presidente da associação de moradores da Babilônia, disse que uma casa foi removida na época para a construção do prédio da UPP e que os moradores saíram de lá insatisfeitos. A UPP ainda está em funcionamento, mas, para ele, idealmente o espaço abrigaria uma creche ou uma escola.
Das 38 UPPs instaladas entre 2008 e 2014, as primeiras a serem encerradas, em junho de 2018, foram a da Vila Kennedy, considerada o laboratório da intervenção e onde a presença militar foi sentida talvez mais fortemente; da Mangueirinha, em Duque de Caxias, única UPP fora da capital; e do Batan, a segunda favela a receber uma UPP e primeira na Zona Oeste.
A instalação da UPP do Batan na época foi uma resposta a um episódio em que jornalistas do jornal O Dia, que estavam há alguns dias na comunidade produzindo uma matéria sobre os moradores e as milícias que atuavam no local, foram espancados durante sete horas. Becca Vieira, produtora local e moradora do Batan, conta que inicialmente a UPP funcionava dentro do casarão abandonado onde os jornalistas foram feitos reféns: “Era o local da milícia e quando entrou a UPP ela ocupou esse espaço. Depois de uns anos, os donos da casa entraram na justiça para reaver a casa e o governo foi obrigado a criar outra base em uma praça mais para perto do Gericinó”.
“Os donos pediram o casarão, mas deixaram o espaço para projetos sociais—natação e hidroginástica para os mais velhos, aulas de luta para as crianças”, lembra ela. Esse caso é emblemático da ressignificação do espaço: projetos sociais ocuparam o lugar que já havia sido um casarão abandonado, a cena de um crime e uma base policial. “Os policiais por sua vez pegaram boa parte da praça para construir a base”, ou seja, em tendência contrária aos donos do casarão, eles inviabilizaram em vez de criar opções de lazer para a comunidade. “A responsável pelas obras da nova base era a Odebrecht e devido aos escândalos na mídia a obra ficou um tempão parada. Agora [com a desmobilização da UPP] está fechado, mas ainda está sob a responsabilidade do 14° Batalhão, que costuma deixar uma viatura na frente. O espaço é todo estruturado com salas, ar-condicionado. Esse elefante branco do Estado não tem nenhum uso social ou cultural”, reclama Becca.
Seu sonho é ter um espaço de atividades para que os jovens da comunidade tenham apoio e desenvolvam suas habilidades, de forma que crianças no tráfico não seja mais uma cena recorrente: “A gente tem uma quadra na comunidade, mas os moradores tomam conta e para você usar tem que pagar. Tem que pagar para usar um espaço que é público! E no prédio da UPP tem outra quadra que poderia ser usada pela comunidade. Dava para fazer um calendário. Cada dia, cada horário um projeto diferente no local. Dava pra vários projetos utilizarem o espaço para que o Batan se transformasse em uma potência cultural”.
Depois dessa primeira onda foi a vez da UPP da Cidade de Deus, em julho do mesmo ano. “Se pudéssemos concentrar ali tipo uma central de estudos ia ser o máximo! Não temos uma biblioteca aqui na CDD, seria um espaço pra estudos e quem sabe até um pré-vestibular?”, sonha Nathan Borges, jovem professor de teatro e produtor de DJ da Cidade de Deus.
Também foram desmobilizadas em novembro a UPP do São Carlos, seguida pela UPP Camarista Méier, na Zona Norte, e em dezembro a UPP do Caju, na área central do Rio. A do Cerro Corá teve sua desmobilização anunciada em dezembro, com a alteração da área da UPP do Santa Marta para cobrir também o Cerro Corá, mas essa ainda não foi efetivada.
Um morador do Cerro Corá que preferiu não se identificar disse que a UPP lá tinha um caráter diferente, pois não havia presença do tráfico de drogas na comunidade, mas foi motivada por um assalto que ocorreu na região. “O pessoal daqui mesmo chegou a fazer ações para orientar os moradores, cartilhas sobre atuação da polícia, direitos e deveres dos cidadãos moradores do morro e dos policiais, para a gente tentar amenizar os abusos policiais que a gente sabe que acontecem”, diz ele. Todas as bases que a UPP tinha na comunidade eram em contêineres, três em um terreno do Hospital Silvestre e outros três ao lado da linha do bondinho que vai até o Cristo Redentor, “mais para os turistas verem mesmo”, na opinião de outro morador.
“A gente já sabia que a UPP ia chegar ao fim pós-megaeventos. A gente sabia que o projeto era falido desde o começo”, diz o primeiro. E completa: “A gente precisa de serviços, de política pública. Cada praça do Rio de Janeiro tem um gari, aqui no morro não tem. Tivemos um processo de urbanização via Favela-Bairro há mais de 20 anos, mas não teve manutenção”. Se no lugar onde estão os contêineres houvessem pontos de coleta de lixo e tubulação de esgoto, ele estaria mais satisfeito.
Mesmo nas favelas em que elas ainda funcionam, os moradores sinalizam o desalinhamento dos seus desejos com a realidade. Fatinha Lima, moradora da Providência e fundadora do Favela Cineclube, não se conforma: “[O prédio da UPP é] um prédio enorme, que apesar de algumas oficinas e cursos ofertados está sendo subutilizado numa política que nunca deu certo em lugar nenhum do mundo. Sabemos de muitas experiências exitosas de combate à violência e promoção de direitos à população através da educação, informação, arte e cultura. É o que deveria existir nos morros, favelas e periferias da cidade”. Nesse sentido, ela sonha: “Tenho o desejo de transformar a UPP da Providência numa escola de audiovisual”.
Já Andreia Nogueira, moradora do Cantagalo e doutoranda em Serviço Social pela PUC-Rio, conta que o prédio onde funciona a UPP do PPG (Pavão-Pavãozinho e Cantaglo) foi construído na década de 80, durante o governo Brizola, para abrigar famílias da região cujas casas estavam em risco de desabamento. “O prédio estava todo deteriorado. Havia uma cisterna no térreo sem tampa e muito próxima ao quadro de energia, onde ficavam os medidores, cujas fiações ficavam expostas. Não havia mais corrimão. Na verdade o prédio estava um caos. Contudo, ao invés de promoverem melhorias para os moradores, resolveram transferi-los para o prédio ao lado, construído para a realocação de moradores removidos pelo PAC.”
O prédio então foi reformado como parte do PAC, ainda que não estivesse previsto no planejamento da iniciativa. Em vez de receber as famílias de volta, o prédio recebeu a UPP: “Numa visita do Sérgio Cabral ao PPG para ver as obras, o governador perguntou onde o capitão que comandaria a UPP queria que fosse a sua, e este apontou para o prédio construído pelo Brizola”, completa ela.
Para Andreia, o prédio deveria ser um instrumento de cultura, lazer e incentivo para os jovens da comunidade. Ela diz que existem iniciativas nesse sentido na comunidade, mas muitas delas concentradas em um só lugar, no espaço antigamente conhecido como Criança Esperança, hoje administrado pelo Viva Rio, exatamente ao lado da base da UPP. “Apesar de abrigar vários projetos sociais, o espaço, quando era administrado pelo Criança Esperança, era muito controlado e nem todos usufruíam. Havia problemas com a administração também”.
Ela imagina no espaço ocupado pela UPP um Centro de Cidadania ou uma Biblioteca Parque, que não existe na comunidade. “Nossos jovens precisam ser incentivados à prática de leitura, ao exercício da cidadania, à práticas educativas que os impulsionem a um futuro libertador”. No caso do Centro de Cidadania, algumas das iniciativas que ela imagina que poderiam ocorrer no espaço incluem um pré-vestibular comunitário, orientação psicológica, palestras sobre direitos sociais, aulas de reforço escolar, orientações sobre as diversas formas de violências e seus enfrentamentos e atividades de recuperação e fortalecimento da organização e participação comunitária. “Claro que tudo seria gratuito e melhor ainda se os próprios moradores fizessem tudo isso. Cada um dando um pouquinho de si”, finaliza ela.