Esta matéria é a última de uma série de três que exploram a arquitetura dos bons espaços públicos, as métricas intangíveis que dão ao espaço público um senso de lugar, com base em entrevistas, em vídeo, com Fred Kent. Esta última matéria desta série explora a improvisação no espaço público. Leia a matéria original em inglês no site Projeto por Espaços Públicos (PPS) aqui. O RioOnWatch traduz matérias do inglês para que brasileiros possam ter acesso e acompanhar temas ou análises cobertos fora do país que nem sempre são cobertos no Brasil.
“A terra inteira está uma prisão e nós estamos tramando uma incrível fuga de presos.” — Wavy Gravy
Quando alguém entra em um espaço público, o primeiro instinto é de encontrar um lugar para si–ou de criar um. Os melhores locais públicos abraçam essa necessidade humana de improvisar.
Pessoas querem customizar suas experiências, e se sentirem em casa em locais públicos. Desde como as pessoas se sentam até como interagem entre si, a grande “dança” dos espaços públicos só é possível com espaço para uma imersão substancial, troca de companhias, ou uma mudança de estilos. O elemento mais importante de um grande lugar é como as pessoas o usam–não o design propriamente dito, mas as atividades emergentes, movimentos e interações que ele facilita.
Um espaço público que inspira improvisação é rico em “affordances” (oportunidades), um termo psicológico para aquelas coisas no ambiente que acenam para nós interagirmos. Por exemplo, uma cadeira móvel oferece muito mais oportunidades que um banco. Embora você possa certamente sentar num banco, porém muitos são desenvolvidos especialmente para desencorajar qualquer outro tipo de atividade–não poder pegar e mover, sem suportes para alimentação, beber ou trabalhar, não poder deitar, sem poder escolher a sua distância de estranhos. Por outro lado, cadeiras móveis chamam para mais do que apenas sentar; elas também podem se tornar uma mesa improvisada, espaço de trabalho, descanso de pé, ou até serem reorganizadas para criar instantaneamente uma situação social melhor.
Espaços públicos moldam e são moldados pela improvisação–quer percebamos ou não. “Placemaking (criação de lugares) é uma habilidade inata que todos nós possuímos” disse Fred Kent no vídeo ao final do texto. “Todos nós sabemos o que é um bom lugar. Todos nós vamos a bons lugares. Nós todos florescemos nesses lugares”. Apesar dos lugares públicos nunca estarem finalizados, eles chegam perto de seu objetivo principal quando as pessoas se consideram donas e parte deste local.
Segue os nossos cinco principais indicadores de improvisação em espaços públicos:
1. Ajustes
Talvez a necessidade de uma experiência personalizada em espaços públicos seja o motivo de cadeiras movíveis serem a melhor opção para se sentar em locais públicos. Fora o fato de serem mais econômicas que bancos, elas proporcionam a quem se senta a chance de colocar os pés para cima e de se ajeitarem como desejarem. William H. Whyte foi um proponente das cadeiras móveis, notando que a maioria das pessoas as move meros centímetros antes de se sentarem–sinalizando uma “distância social” educada de estranhos, e criando sua própria experiência única do local público.
2. Triangulação
Um ótimo local público é mais do que a soma de suas partes, e triangulação é de onde esse valor agregado vem. Triangulação se refere a forma que “usos” podem ser estrategicamente posicionados e desenvolvidos para gerar usos adicionais. Por exemplo, um lugar para sentar é útil, mas ele gera mais usos quando está posicionado em frente a algo que se possa assistir, e terá muito mais usos se você poder pegar algo para comer ou beber nas redondezas também. Nenhum desses usos individuais são tão efetivos sozinhos. Maior triangulação abre mais oportunidades para improvisações.
Desde metrôs lotados até parques, a triangulação vai as alturas quando artistas de rua entram em cena. A adição de música, dança, ou qualquer forma de entretenimento pode conectar estranhos e encorajar interações imprevisíveis. Artistas de rua solicitam voluntários envergonhados, músicos criam suas canções para os pedestres que estão passando, crianças dançam junto e estranhos comentam sobre algo incrível ou terrível que eles acabaram de presenciar juntos.
3. Atividades informais
A improvisação não é apenas para artistas de rua. Quando acessórios de casa, como jogos, mesas de carteado, tapetes de yoga e toalhas de piquenique começam a brotar nos locais públicos, é uma mostra de que as pessoas estão transformando este lugar em algo que atenda a necessidade delas. Quando pessoas levam elementos de fora para um lugar, elas estão demonstrando o senso de propriedade compartilhada e apego a isso.
Bem frequentemente esse tipo de atividade é proibida ou desencorajada. Permitir ou até cultivar atividades além dos planos oficiais do designer ou do administrador é uma forma infalível de transformar um lugar vazio em um destino multiuso. Reuniões de grupos comunitários de base, partidas de xadrez e encontros–deixa uma centena de flores desabrocharem.
4. Encarapitar
Quando as pessoas não encontram um bom lugar para se sentar, elas geralmente recorrem a “se encarapitar”, improvisando seus assentos em postes de amarração, bancas de jornal, hidrantes, cercas, e até nas próprias malas e mochilas! Encarapitar é um claro sinal de que algo está faltando. Quando a improvisação do usuário adiciona o uso acima e além do que os designers e administradores proporcionaram, um espaço público está bem em sua jornada em se tornar um lugar. Mas quando usuários tem que improvisar para conseguir suas necessidades humanas básicas, algo está errado. Sentar é algo no qual as pessoas não devem ter que improvisar.
5. Linhas de desejo
Defensores do design urbano voltado ao usuário, como Jane Jacobs e Stewart Brand, costumam contar um conto apócrifo de um designer encarregado de colocar os caminhos no gramado principal de um campus universitário. Reconhecendo quão mal os projetistas costumam prever onde as pessoas querem andar, o sábio designer esperou até a primeira nevasca e observou por onde as pessoas fizeram seus caminhos antes de coloca-los no gramado.
Esses caminhos criados pelo usuário são chamados de linhas de desejo. Na ausência de um sábio designer ou administrador, elas são outro exemplo de improvisação como um sinal de falta de algo. Em espaços públicos mal projetados, o tráfego intenso dos usuários traça caminhos “não-oficiais” na paisagem. Numa tentativa desesperada de proteger grama preciosa, a resposta mais frequente é bloquear esses caminhos com todo tipo de cordas, cercas, sinais, mas muitas vezes os caminhos persistem–e por boas razões. Linhas de desejo são um grito coletivo para uma melhor usabilidade.
Espaços públicos precisam refletir as manhas e personalidades de seus usuários. Sem improvisação, os espaços públicos seriam estéreis, espaços quietos, sem nunca viver todo o seu potencial. O que seria da Union Square sem jogos de xadrez improvisados? Washington Square Park sem artistas na fonte drenada? É a improvisação que torna os espaços públicos musicais, falantes e fantasticamente vivos.
Em inglês, o vídeo que acompanha a série original:
Série Completa: Arquitetura dos Bons Espaços Públicos
Parte 1: O Espaço Público É Para O Afeto
Parte 2: Entre em Sua Zona de Conforto: Cinco Indicadores de Conforto em Espaços Públicos
Parte 3: Torne-o Seu: Improvisação no Espaço Público