Quando a Rede Globo convidou o educador Jota Marques para ir até o Jardim Botânico para fazer parte de um painel de especialistas em educação criativa em maio, ele insistiu em trazer seus alunos da Cidade de Deus com ele.
Sentado entre o repórter da TV Globo, Caco Barcellos, e o curador da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Ulisses Carrilho, Jota deixou claro que considerava sua presença um ato de ocupação. No final de seu discurso de abertura, ele olhou ao redor da sala para a audiência de classe média alta do evento, declarando deliberadamente: “A favela existe aqui, no Parque Lage”.
A pedagogia que Jota defende é de resistência, a qual é a base do seu curso de oito meses de “Comunicação Crítica e Criativa” na Associação Semente de Vida da Cidade de Deus (ASVI). Lá, ele ensina um tipo de comunicação ancorada no pensamento crítico. Os alunos aprendem habilidades em fotografia, jornalismo e em mídias sociais, como ferramentas para combater as narrativas da mídia prejudiciais e hegemônicas, acerca da Cidade de Deus e de outras favelas.
Quando o RioOnWatch visitou a turma, os tópicos variaram do machismo perpetuado em recentes novelas até os detalhes do gerenciamento de projetos. Dois ex-alunos, Ellen Marques e André Edgard– que Jota descreve como “meus irmãos que sonham com um Rio de Janeiro e uma Cidade de Deus onde os direitos estejam garantidos”–facilitaram as discussões em grupo e orientaram os estudantes em seus projetos finais.
Neste mês de outubro, os estudantes estão fazendo a transição para estágios com a equipe de comunicação da Associação Semente de Vida, conhecida na Cidade de Deus por seu portal comunitário e estação de rádio.
RioOnWatch: Como e quando o curso surgiu?
Jota: Em 2017, foi realizada a primeira edição da formação “Audiovisual e Cultura Digital”–que buscava formar jovens para o mercado de trabalho–em parceria com o Projeto Luz e o Banco da Providência. Naquele momento, a formação atendia uma demanda local da inserção do empreendedorismo criativo como via de sustentabilidade para a juventude.
Então, em 2018, os nossos parceiros nos deram a chance de repensar o projeto, e ao lado de três ex-alunos da formação anterior, nasceu o “Curso de Comunicação Crítica e Criativa”, que enfatiza o pensamento comunicacional comunitário e popular, e utiliza o campo teórico-prático da educomunicação [forma de educar através da utilização dos recursos de mídia], enquanto estratégia de importância central na aprendizagem, e a promoção do desenvolvimento de habilidades sócio-emocionais, que incluem a criatividade e a empatia.
O conteúdo programático também estimula a reflexão sobre o direito à comunicação em uma sociedade da informação, assim como pensa estratégias possíveis que construam um novo posicionamento diante dos conceitos e as práticas retrógradas e reacionárias da mídia tradicional, de modo que rompa com a cultura do silêncio, que esteja aberta à participação dos cidadãos, e que os moradores possam se revezar enquanto produtores e receptores dos produtos comunicacionais.
RioOnWatch: Qual é o objetivo que o curso pretende cumprir? Qual é o problema ou desafio que o curso procura resolver?
Jota: A formação carrega consigo a missão e a ousadia de estimular o pensamento comunicacional crítico e criativo, de modo que nós, os sujeitos à margem, sobretudo a juventude em movimento e constante disputa, sejamos multiplicadores de contranarrativas que vençam o violento imaginário do senso comum a respeito da favela e dos grupos historicamente marginalizados.
RioOnWatch: Como é que o curso de comunicação se encaixa no trabalho da ASVI na comunidade?
Jota: Desde 2002, a Associação Semente da Vida da Cidade de Deus, também conhecida como “ASVI CDD”, carrega consigo a missão de trabalhar o desenvolvimento social e humano na Cidade de Deus, a partir de três eixos: educação, cultura e comunicação. Nessa direção, a instituição sempre pensou na utilização da “comunicação comunitária” como uma ferramenta de transformação social. Por isso, contribuiu com a construção do Portal Comunitário da Cidade de Deus, o Jornal CDD Vive (Antigo A Notícia Por Quem Vive), e foi fundadora e responsável pela Web Rádio CDD.
Durante esses 15 anos de atuação no território foram diversas as formações em comunicação possibilitadas pela instituição que continuam acreditando nas riquezas e potências das ferramentas comunicacionais para a formação da infância e da juventude.
RioOnWatch: A CDD tem algumas características que tornou esse projeto especialmente necessário?
Jota: Sim, com certeza.
A Cidade de Deus, nascida do caos das enchentes de 1966, somente tomou forma, sentido e existência– para todo o mundo–com o lançamento do filme do diretor Fernando Meirelles, Cidade de Deus, em 2002. Portanto são 52 anos de histórias, de resistências e de potências ignoradas. O que garantiu à favela CDD apenas o sinônimo de violência e a lembrança do personagem Zé Pequeno.
[O filme enfatizou] características e memórias que absolutamente não compõe a realidade do território, riquíssimo em cultura e repleto de personagens reais com histórias incríveis. Pensar a comunicação comunitária, popular e independente com a juventude da Cidade de Deus–mas também em outras favelas e territórios empobrecidos de um extremo ao outro do país–é garantir direitos e vida.
RioOnWatch: Qual é a sua filosofia sobre educação? Quais são os seus pensamentos sobre educação no Rio de Janeiro?
Marques: Eu compreendo a educação como um processo contínuo e coletivo de fluxos de saberes e ambições que atravessam e transcendem os resultados [acadêmicos]. Neste sentido, em que o desconhecido e a dúvida estão no centro da construção do conhecimento, as conclusões–por vezes amarras do pensamento crítico–são anseios secundários em uma aprendizagem que caminha de encontro aos questionamentos e neles encontra respostas, dúvidas, respostas.
Ser incerto em um mundo de certezas talvez seja a minha grande contribuição como educador. E o Rio, sendo esta grande favela com uma cidade dentro, não é território que pede por certezas, mas muitas perguntas.
Afinal, chegamos até aqui, num lugar que não me orgulho, em razão da certeza de alguns, que com violência colonizaram o nosso país, definiram os limites da cidade e os direitos que cada parte dessa sociedade teria ou não acesso, e também direito à vida.
A educação enquanto articuladora para a participação cidadã crítica, é responsável por processos genuínos de liberdade, mas continua aprisionada em mãos que desejam o controle social. Por essa razão, tão necessária se faz a educação popular, os saberes dos becos, a memória e a oralidade ancestral–que resistem frente à mercantilização do saber e da vida–pois estimulam historicamente o levante da travessia que subverterá o [sistema] que está posto.