Oriundo de grupos de negros norte-americanos que protestavam contra a exclusão promovida pelo sistema econômico e cultural dominante, o movimento hip hop ganhou facilmente os territórios brasileiros em meados da década de 1980, dez anos depois dos primeiros rolês em South Central, região de Los Angeles, na Califórnia, EUA. Cada zona periférica tinha um grupo ou artista solo que defendia as bandeiras de igualdade, liberdade e unidade, como diria o rei do soul, James Brown. Era o que se chamava, na sua gênese, de “música de protesto”. Chuck D, o messiânico líder do grupo Public Enemy, não à toa, descreve o rap como “a CNN dos negros”, fazendo referência à CNN, canal de notícias dominante da TV norte-americana.
Enquanto conjunto de expressões artísticas que costumam mesclar moda urbana, apresentações em grafite (pinturas artísticas com spray de tinta), e performances de rap (sigla em inglês para “rhythm and poetry”, que há anos ganhou a sua adaptação tupiniquim, o “rep”, ritmo e poesia), além das batalhas entre MCs (mestres de cerimônia), o hip hop passou por transformações. Adquiriu novas roupagens e texturas musicais, foi consumido em todas as classes, peitou o funk das origens humildes e da ostentação, flertou com artistas não pertencentes ao gênero e, por fim, tornou-se uma pequena fábrica de hits. Agora, o hip hop ganha um “novo-velho” contexto, o de ser mais uma forma de resistência, dessa vez nos próprios territórios. De novo.
A roda de conversa do projeto Família Lanatanpa, evento mensal no bairro Pantanal, periferia de Duque de Caxias, Baixada Fluminense, é a segunda iniciativa do tipo—testemunhada pelo Fórum Grita Baixada—que precisou incentivar outras ações paralelas para ser vista sem restrições em suas comunidades. A primeira iniciativa, em Lagoinha, periferia de Nova Iguaçu, desenvolveu-se juntamente a lutas marciais e outras modalidades esportivas para ganhar legitimidade. O motivo seria certa antipatia de igrejas neopentecostais mais conservadoras que acreditam que o hip hop “é coisa de bandido”.
“Não temos nenhum problema aqui com eles [os evangélicos], mas já escutei comentários desaprovando o tipo de música, as roupas e todo o resto. Queria que eles compreendessem melhor o que se passa, como é o projeto e quais são as nossas reais intenções. Isso aqui é uma necessidade cultural, uma troca de informação que identificamos ser mais urgente do que qualquer outra coisa. Era o que a galera jovem queria, era o que o bairro estava precisando”, diz Juliana Maia, uma das idealizadoras do Lanatanpa.
Hip hop não é crime
De fato, existe a preocupação de desmistificar o preconceito que envolve os jovens que participam das festas. Em eventos criados em uma rede social, por exemplo, é comum a organização do Lanatanpa (um anagrama para Pantanal) se posicionar explicitamente contra o consumo de drogas ilícitas, fazendo inclusive uso de memes para isso. Há até uma “geloteca”, uma simpática geladeira que serve de minibiblioteca, na qual a troca de livros é liberada e incentivada. Desde sua criação, em 2015, o projeto sociocultural traz essa preocupação em conciliar saúde, educação, arte e conhecimento através do hip hop. Há ainda o recolhimento de doações como roupas e alimentos não-perecíveis para os moradores mais pobres da região.
Numa roda de conversa que abordou questões do meio ambiente, a professora de literatura e mulher trans, Diana Rodrigues, e o pesquisador de Relações Étnico Raciais do CEFET, Wallace Oliveira, expuseram aspectos contemporâneos que norteiam o tema. Um deles, o racismo ambiental, é temática que deverá nortear os espaços de discussão de forma mais expressiva em breve, ainda mais considerando a atual agenda do governo de Jair Bolsonaro, que parece estar tentando transformar as questões ambientais em tabus com viés ideológico.
Empresas “verdes”, mobilidade urbana, consumo sustentável e agricultura orgânica e familiar também foram temas pautados. Nesse último tópico, a professora Diana admitiu desconhecer iniciativas na Baixada Fluminense, o que é bastante sintomático. Foi então falado da existência, em Nova Iguaçu, da cooperativa Feira da Roça, formada exclusivamente por produtores rurais e apadrinhada pela Comissão Pastoral da Terra, entidade vinculada à Igreja Católica para as questões do campo. Surgiu também no debate talvez a maior questão ambiental de Duque de Caxias, quiçá da Baixada Fluminense: o aterro sanitário de Jardim Gramacho, que ainda recebe caminhões de lixo mesmo depois da sua desativação.
Onde tem “flow” não entra “trap”
Após a roda de conversa, eis que surge o momento de aumentar o groove do baixo e botar fogo nas carrapetas. DJ a postos, é hora de curtir. O elenco é diversificado. Tem grafiteiro, artesão, poetas, poetisas, além de b-boys, é claro. O cenário é a Praça do Sossego, local de grande efervescência na comunidade nos fins de semana. Barraquinhas de venda de batata frita, açaí, churrasquinho, dentre outras guloseimas, contornavam as imediações. No meio da praça, o cenário é dividido. De um lado, os MCs começavam o aquecimento para entoar suas rimas. No outro extremo, um grupo de católicos, munidos de microfones, cantava louvores e anunciavam ações de evangelização para os presentes.
Aproveitamos para trocar uma ideia com Anderson Maia, o mentor intelectual do Família Lanatanpa. Técnico em refrigeração por opção de sobrevivência, ele disse que teve a ideia de montar uma programação cultural nos moldes do projeto Livrar, uma iniciativa do artista MC Marechal, criador das Batalhas do Conhecimento, que se tornaram atração há quatro anos no Museu de Arte do Rio (MAR), na Praça Mauá, região portuária da cidade. Diferente das tradicionais batalhas de MCs, em que prevalece a troca de “insultos” versados em bases musicais pré-gravadas (beats), como modo de se testar o poder de improviso (freestyle) e criatividade nas rimas, na Batalha do Conhecimento há uma reflexão conjunta dos participantes ao abordarem temas complexos e cotidianos como direitos humanos, violência, racismo, educação, machismo, etc. Ou seja, o alvo das ofensas passa a ser o próprio sistema.
Maia explica como isso mudou a sua vida: “Aquilo mexeu comigo de tal forma que me senti quase na obrigação de fazer algo pela minha comunidade. Sou cria do hip hop e queria dividir isso com a molecada do Pantanal. Quantas vezes a gente se desloca para Zona Norte, para Lapa, e quase sempre precisa se preocupar com várias coisas, dentre elas a nossa segurança. Essa distância fez com que eu me mobilizasse pra fazer o Família Lanatanpa”.
E quem cola e ajuda a fazer o movimento? Conversamos com alguns artistas para saber um pouco mais sobre suas histórias. Um deles, Coman MC, conta que era frequentador assíduo de uma igreja evangélica no bairro. Por causa de uma deficiência física adquirida depois de um acidente, tentou recuperar a autoestima através da fé, mas acabou desiludido. “Comecei a ser zoado pelas pessoas da própria igreja. Aí eu soube que tinha um evento chamado 5ª Batalha Rap Free Jazz, na Praça do Galo, ali no Parque Fluminense [em Duque de Caxias]. Já gostava do estilo e ali eu descontei toda a minha raiva nas rimas. O pessoal viu que eu tava chateado pelo que tinha acontecido e quiseram me conhecer melhor. Me ligaram para saber como eu estava. Encontrei mais acolhimento no movimento hip hop do que na igreja”, diz Coman.
Ele aproveita para revelar uma espécie de racha conceitual e artística que acontece em vários grupos de hip hop país afora. Coman diz que os grupos de rappers se dividem em duas espécies. A que defende o “flow”, ou seja, uma preocupação com a fluidez com que a letra se encontra com o ritmo de cada rap, e a turma do “trap”, que seria uma vertente com menos vocais, onde a musicalidade prevalece sobre a verborragia.
Marilza Barbosa, ativista da Frente Estadual pelo Desencarceramento, da Rede de Mães e Familiares Vítimas da Violência de Estado da Baixada Fluminense e do Fórum Grita Baixada, além de moradora do Pantanal, diz que se surpreende com os resultados alcançados até agora pelo Família Lanatanpa. De admiradora, passou a ser apoiadora do projeto: “Eu fiquei muito encantada com a organização deles. Eles possuem uma infraestrutura, que vem da colaboração de várias pessoas do local. O Lanatanpa ajudou a ocupar, de forma peculiar, um espaço que sempre foi das igrejas e do pessoal do pagode. Eles mostram que a diversidade da cultura precisa ser mais divulgada e apoiada. O hip hop é uma expressão popular!”
Matéria escrita por Fabio Leon e produzida por parceria entre RioOnWatch e o Fórum Grita Baixada. Fabio é jornalista e ativista dos direitos humanos e assessor de comunicação no Fórum Grita Baixada. O Fórum Grita Baixada é um fórum de pessoas e instituições articuladas em torno da Baixada Fluminense, tendo como foco o desenvolvimento de estratégias, o fomento de articulações e a incidência política no campo da segurança pública, entendida como elemento para a cidadania e efetivação do direito à cidade. Siga o Fórum Grita Baixada pelo Facebook aqui.