O Que Termos Territoriais Coletivos Aprenderam com o Movimento dos Direitos Civis: Tecendo o “C” no TTC

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Leia a matéria original por John Emmeus Davis* em inglês no boletim do Kulshan CLT aqui. O RioOnWatch traduz matérias do inglês para que brasileiros possam ter acesso e acompanhar temas ou análises cobertos fora do país que nem sempre são cobertos no Brasil.

Existem atualmente cerca de 280 Termos Territoriais Coletivos nos Estados Unidos, mais de 100 na Inglaterra e novos movimentos de TTC na Austrália, Bélgica e Canadá. Eles compartilham uma história comum. Todos estão enraizados em uma rica tradição de oposição e inovação: uma que desafia a crença dominante de que a terra só pode ser possuída como uma mercadoria especulativa, servindo como um veículo para o enriquecimento pessoal; e outra que coloca, como uma alternativa prática, a propriedade da terra como um bem da comunidade, servindo como uma plataforma para o desenvolvimento liderado pela comunidade que é tanto equitativo quanto sustentável.

Esta é uma história muito longa e variada para ser pintada aqui, exceto no mais amplo dos traços. Mas alguns marcos podem ser destacados.

A organização creditada como sendo o “primeiro TTC” emergiu do movimento dos direitos civis no sul dos EUA dos anos 60. A New Communities Inc. foi estabelecida no sudoeste da Geórgia por veteranos da luta pelo direito de voto e igualdade racial. Ativistas como John Lewis, Slater King e Charles e Shirley Sherrod passaram a acreditar que uma das chaves para garantir a independência política e econômica dos afro-americanos era que eles possuíssem terras. Mas a propriedade individual estava fora do alcance da maioria dos afro-americanos no sul profundo e era facilmente perdida quando eles adquiriam um terreno, uma casa ou uma fazenda. A posse em comum da terra parecia uma forma mais segura de posse para pessoas excluídas da política e da econômica tradicionais, especialmente quando combinadas com a propriedade individual de casas recém-construídas e a organização cooperativa de agricultura e outros empreendimentos, um híbrido engenhoso que eles chamavam de “community land trust” (termo territorial coletivo).

Esse modelo misto de propriedade existe há décadas, muito antes de sua adoção pela New Communities. Foi um dos pilares das cidades-jardins da Inglaterra, das vilas de Gramdan da Índia, dos ejidos do México e dos assentamentos agrícolas cooperativos em Israel, conhecidos como kibutzim e moshavim. Também foi uma característica de muitas comunidades intencionais estabelecidas nos Estados Unidos durante a primeira metade do século XX. Os fios mais brilhantes de cada um desses precursores se entrelaçaram na New Communities, cujos fundadores visionários acrescentaram um colorido próprio.

Filosoficamente, tudo começou com um inglês, John Stuart Mill. Em 1848, Mill observou que o “progresso comum da sociedade” faz com que o valor da terra aumente. Ele questionou, no entanto, por que esse “incremento social” deveria pertencer a proprietários privados que podem ter feito pouco para obtê-lo. “Eles ficam mais ricos, como se estivessem dormindo, sem trabalhar, arriscar ou economizar. Qual é a alegação deles, sobre o princípio geral da justiça social, para essa ascensão de riquezas?”A resposta de Mill foi que essas riquezas eram “não merecidas” e deveriam ser capturadas em benefício da sociedade.

Trinta anos depois, um editor de jornal em São Francisco chamado Henry George estava tentando desvendar o que ele chamava de “Grande Enigma”. Por que, segundo George, há tanta pobreza em meio a tanta riqueza—pobreza que persiste apesar de progresso social, econômico e tecnológico? Ele tropeçou na teoria de Mill do incremento não ganho. Este foi o momento eureka da vida intelectual de George, permitindo-lhe decifrar o código do Grande Enigma. De repente, George viu os latifundiários como sendo pouco mais do que parasitas alimentando-se da produtividade dos outros, impondo “um imposto invisível pelos empreendimentos”. A solução que ele propôs em um livro intitulado Progresso e Pobreza foi capturar todos os ganhos de terra por meio de impostos. Nas palavras de George, “é a tomada pela comunidade, pelo uso da comunidade, desse valor que é a criação da comunidade”.

As idéias de George voltaram para a Inglaterra, onde influenciaram um sujeito reformista chamado Ebenezer Howard. Howard publicou seu próprio best-seller em 1898, Cidades-jardins de Amanhã. Howard era realista político demais para acreditar que tributar todos os ganhos de terra era uma estratégia vencedora. Seu mecanismo de escolha para captar o “incremento social” não era a taxação, mas um modelo de posse mista. Ela incentivaria a iniciativa privada e a propriedade individual (bem como a propriedade cooperativa) de casas, lojas, fábricas e fazendas, mas localizaria todas essas atividades em terras arrendadas dos administradores das novas cidades que ele propusera construir. A comunidade seria a proprietária de terras nas cidades-jardins de Howard, começando com Letchworth em 1903.

Nos Estados Unidos, não foi antes dos anos 1920 e 1930 que os assentamentos planejados surgiram na tentativa norte-americana de aplicar os princípios da cidade-jardim inglesa. Porém quando o fizeram, foi o design das cidades-jardins que influenciaram os planejadores urbanos e arquitetos americanos. Os aspectos sociais da visão de Howard foram deixados para trás, especialmente sua defesa de terras de propriedade comunitária.

Houve duas exceções. Arthur Morgan e Ralph Borsodi estabeleceram comunidades na década de 1930, nas quais casas e empresas eram de propriedade individual em terras que eram mantidas por uma corporação sem fins lucrativos. Eles inspiraram uma nova geração de pioneiros a criar o que Borsodi chamara de “land trusts” (termos territoriais).

Na maioria dessas comunidades de arrendamento iniciais, a governança da organização proprietária da terra era mantida por um círculo interno, semelhante ao que Howard chamava de “senhores de posição responsável e de indubitável probidade”. Havia propriedade comum sem cidadania inclusiva.

Foi na New Communities que esses elementos foram finalmente combinados. Em 1970, essa recém-formada organização sem fins lucrativos adquiriu quase 6.000 hectares de terras agrícolas perto de Albany, Georgia—a maior extensão de terras de propriedade dos afro-americanos na época. Eles encontraram uma resistência feroz do establishment branco. Nos 15 anos seguintes, a New Communities foi submetida a uma campanha de assédio constante, marcada por vandalismo, violência e a recusa de agências governamentais em conceder subsídios e empréstimos.

Uma importante lição dessa experiência foi que a propriedade comum da terra não era suficiente. “Construir a amada comunidade“, no léxico do Movimento dos Direitos Civis do Sul, só poderia ter sucesso se um grupo maior de pessoas, além das pessoas que vivem na terra, participassem ativamente do planejamento, apoio, orientação e governança da organização sem fins lucrativos que detinha e administrava a terra. Tinha que haver um “C” no TTC.

A história de New Communities foi apresentada em The Community Land Trust: A Guide to a New Model for Land Tenure in America (Termos Territoriais Coletivos: Um Guia para um Novo Modelo para a Posse da Terra na América), publicado em 1972. Esse livro—e um que apareceu dez anos depois, The Community Land Trust Handbook (Manual do Termo Territorial Coletivo)—prestou homenagem aos land trusts de uma era anterior, ao mesmo tempo em que agregava recursos organizacionais e operacionais que colocaram a “comunidade” ou o “coletivo” à frente e no centro. Esses livros, juntamente com o exemplo inspirador fornecido por New Communities e por ativistas que iniciaram os primeiros TTCs urbanos na década de 1980, lançaram as sementes para a disseminação do modelo que está havendo hoje em todo o país e ao redor do mundo.

Fontes:

Uma história mais detalhada dos TTCs é apresentada no Roots & Branches, um website que traça as origens e evolução do modelo.

A história da New Communities é contada em um novo documentário Arc of Justice: The Rise, Fall and Rebirth of a Beloved Community.

Um resumo dos argumentos econômicos, políticos e legais para a construção de revitalização de moradias populares e vizinhanças no “terreno comum” dos TTCs pode ser encontrado em um artigo recente de revisão de leis.

*John Emmeus Davis é um defensor do desenvolvimento liderado pela comunidade em terras de propriedade comunitária desde 1981, ano em que ele se uniu a um grupo de acadêmicos e ativistas para escrever The Community Land Trust Handbook. Ele passou a produzir muitos outros livros, relatórios e artigos sobre o modelo e a fornecer assistência técnica a dezenas de TTCs nos Estados Unidos, Inglaterra, Austrália, Bélgica e Canadá. Ele foi o diretor de habitação da cidade de Burlington, VT sob os prefeitos Bernie Sanders e Peter Clavelle. Depois, ele co-fundou a Burlington Associates in Community Development, uma cooperativa nacional de consultoria sobre TTCs. Ele é o jardineiro mestre da Roots & Branches, um co-produtor do filme sobre TTCs, Arc of Justice, e autor do Affordable for Good, Habitat for Humanity International’s 2017 Shelter Report (Moradia Acessível para o Bem, Relatório da Moradia 2017 da Habitat Para a Humanidade). Saiba mais aqui.