Esta matéria, escrita pelo geógrafo Rafael Chaves,* traz à luz a dinâmica da atuação do Estado em conformidade com a elite financeira na ocupação do chão da cidade, e o lugar das favelas neste contexto.
O questionamento que intitula esse texto é frequentemente proferido em situações como as do dia 6 de fevereiro de 2019, em que sete pessoas perderam a vida na cidade do Rio de Janeiro devido a desabamentos de residências e deslizamento de encostas catalisados pela forte chuva. Tal forma de pensar pode ser produto de uma infeliz falta de sensibilidade com a vida alheia, que busca, tacanhamente, culpar as vítimas pelas tragédias sofridas. Mas também pode ser fruto de uma honesta falta de conhecimento sobre os processos de distribuição dos riscos ambientais. Este texto foi escrito para as pessoas que se enquadram no segundo grupo, mas já adianto que a resposta é: por falta de uma opção melhor.
Como o Jornal Extra nos informa, as mortes ocorreram em Barra de Guaratiba, no Vidigal e na Rocinha. Partimos da obviedade de que a chuva forte não ocorreu apenas nessas localidades, tampouco os estragos materiais decorrentes da chuva ocorreram apenas nesses bairros, pois podemos verificar no Portal da Prefeitura do Rio de Janeiro, que, entre as 19:00h do dia 6/02/19 e as 10:00h do dia 7/02/19, houve 206 chamados para vistoria da Defesa Civíl, especialmente na Barra da Tijuca (18 chamados), Barra de Guaratiba (12), São Conrado (11), Itanhangá (11), Vidigal (9) e Rocinha (8); e entre as principais ocorrências estão desabamentos de estrutura, ameaças de desabamento, rachaduras e infiltração em imóveis, e deslizamento de encosta.
Observemos os dados da Defesa Civil em conjunto com o Índice de Desenvolvimento Social (IDS) da prefeitura do Rio de Janeiro. Esse índice serve para comparar a “qualidade de vida” nos diferentes bairros, sendo que o máximo possível é 1,0 (situação utópica de perfeição), e o mínimo possível é 0,0 (situação de total falta de estrutura social). Para facilitar a compreensão do índice, devemos observar que a média do município do Rio de Janeiro é 0,609, e que o bairro da Lagoa (0,819) apresenta o mais elevado índice. Assim, temos em ordem decrescente São Conrado (0,779), Barra da Tijuca (0,770), Vidigal (0,565), Rocinha (0,533), Itanhangá (0,527) e Barra de Guaratiba (0,502). Não é difícil, mesmo para quem não conhece o Rio de Janeiro, entender que os maiores estragos se deram nas áreas residenciais de menor renda econômica.
Não é novidade, coincidência, ou tampouco apenas no Brasil, que os mais pobres são, muito frequentemente, os mais afetados nos casos de eventos naturais extremos, seja na cidade ou no campo. Para entendermos as razões que levam a esse padrão, o ponto de partida é a observação da organização das sociedades, a forma como esta organização condiciona a distribuição das pessoas sobre a superfície das cidades (que é o exemplo de que estamos tratando), e como esta distribuição, por sua vez, condiciona a organização da sociedade.
Quem Controla Quem Controla?
Vivemos em uma sociedade dividida em classes e estas (compostas por conjuntos de indivíduos de carne e osso como você e eu) estão permanentemente em conflito, disputando os recursos para facilitar a sua existência no mundo e sua reprodução enquanto classe (a garantia dos mesmos recursos para nossos descendentes). Uma ótima interpretação das classes sociais brasileiras é apresentada por Jessé Souza, no livro A Elite do Atraso. Em tal obra, o autor identifica as classes do privilégio como sendo a elite financeira (monopolizadora do capital econômico) e a classe média (monopolizadora do capital cultural [conhecimento útil para reprodução do capital econômico]). Os demais membros da sociedade estariam agrupados nas classes populares, que são os trabalhadores precarizados (vendedores da sua força de trabalho técnica no mercado formal e informal [professores, bancários, motoristas…]) e pelo autor denominados, “ralé de novos escravos” (vendedores da sua força muscular no mercado formal e informal [porteiros, carregadores, flanelinhas…]).
Todas as classes sociais brasileiras têm uma característica em comum: elas compartilham um território que é, ao menos institucionalmente, gerido pelo Estado brasileiro. Portanto, quem controla o Estado exerce grande influência na regulamentação da exploração, distribuição e uso dos recursos materiais (como as riquezas minerais do subsolo e a terra urbana) e imateriais (como acesso à educação formal e seguridade social). Tendo isso claro, e com uma rápida olhada para longe dos nossos umbigos, podemos escapar da delirante ingenuidade de que vivemos sob o controle de um Estado neutro e justo, comprometido com o bem-estar de todas as pessoas no território.
Na prática, as elites financeiras contratam grande parte dos membros da classe média, que são muito bem qualificados, para ocuparem os papéis de gestão das suas empresas, assim como para operarem o Estado em prol dos seus interesses de classe (acumulação de capital econômico). Como o capital econômico é gerado a partir do trabalho humano sobre uma base material, o papel da classe média acaba sendo a otimização da transferência da riqueza produzida pelas classes populares para a elite. Você deve estar se perguntando sobre como a elite consegue entregar o Estado nas mãos da classe média, mas por não ser esse o centro do presente artigo, sugiro a leitura do livro de Jessé Souza mencionado acima. Contudo, deixo a tabela abaixo como aperitivo:
O Chão da Cidade
Agora que pontuamos a divisão da sociedade em classes, vamos tratar da distribuição da sociedade sobre o chão da cidade. Contudo, devemos iniciar a conversa falando que a cidade é o resultado das relações da sociedade ao longo do tempo. Dessa forma, ela reflete aquilo que somos. Se uma determinada área privada apresenta uma boa localização relativa aos objetos já construídos da cidade (e/ou das amenidades naturais) e está relativamente livre de vulnerabilidades que gerem riscos ambientais como os de deslizamentos e alagamentos, logo é desmatada e se consolida um loteamento.
O processo acima revela uma decisão tomada por aqueles que controlam o capital imobiliário naquele momento. Tal decisão só foi tomada porque a elite imobiliária identificou a possibilidade de multiplicação do capital econômico. A elite não abriria mão da possibilidade de divisão de custos com o Estado que, além de conceder as licenças necessárias, aporta recursos públicos na disponibilização de infraestrutura urbana para viabilizar o negócio. Assim, uma fatia da riqueza produzida por todas as classes, transferida para o Estado na forma de impostos para que este gerisse a distribuição de recursos materiais e imateriais, é drenada para a elite imobiliária. A Vila dos Atletas, no Rio de Janeiro, é um claro exemplo contemporâneo, mas não é o único na história da cidade do Rio de Janeiro.
As novas unidades habitacionais construídas são vendidas para os indivíduos da classe média e para a camada superior dos trabalhadores precarizados. Como estes não possuem o capital econômico para adquirirem o imóvel, recorrem a empréstimos de longo prazo junto às instituições financeiras, as quais, através dos juros, garantem a transferência de parte da riqueza produzida pelos trabalhadores para seus cofres por muitos anos.
Então, qual seria o lugar daqueles que não têm capital econômico, tampouco acesso ao crédito? Na cidade contemporânea, seu lugar é aquele mal localizado em relação aos objetos já construídos como o centro da cidade (e/ou das amenidades naturais) e com maior vulnerabilidade (encostas íngremes, margens de rios, beiras de mangues…). Além de lhes serem impostas, diariamente, longas e desgastantes horas nos transportes públicos até o local de trabalho, e uma longa (e cara) jornada para desfrutar dos equipamentos culturais da cidade, sua exposição aos riscos ambientais é, incomensuravelmente, maior do que o das demais classes.
Existe uma relação direta entre a localização relativa, a existência de vulnerabilidades e o custo da habitação. Os locais com a melhor localização relativa e menos vulnerabilidades ambientais são os que apresentam o maior custo; já aqueles com a pior localização e elevada vulnerabilidade, obviamente, são os mais baratos. Seu valor de troca pode ser tão baixo que nem mesmo incite a sua comercialização no mercado formal, fazendo com que tais áreas permaneçam desocupadas por muitos anos. Muitos trabalhadores e trabalhadoras, sem recursos para adquirir ou alugar um imóvel distante da sua fonte de renda e/ou custear o seu deslocamento diário, por falta de opção melhor, ocuparam, espontaneamente, os sítios vulneráveis (as encostas íngremes, as margens de rios e mangues…).
A favela, então, surge como uma solução para o problema habitacional das classes populares. Diante do posicionamento estatal enquanto parceiro da elite em detrimento das classes populares, coube, aos próprios habitantes, levantarem suas casas, ordenarem as vias de circulação, buscarem suas fontes de água e formas de eliminação dos rejeitos. Mas, em diversos casos, tiveram, antes, de construir o chão. Um segmento da população que é, historicamente, via de regra, excluído (ou precariamente incluído) nos sistemas formais de educação conta, quase exclusivamente, com sua engenhosidade para reduzir tecnicamente a vulnerabilidade dos sítios e, dessa forma, viabilizar as construções. A ausência de ações de planejamento urbano e construção de habitações populares mostra-se como uma política pública de legar aos vulneráveis a responsabilidade de construírem suas próprias moradias e comunidades, pois a influência da classe popular sobre as decisões estatais, considerando as diversas conjunturas, concentra-se, principalmente, na reação e resistência. Dessa forma, recursos estatais que deveriam ser investidos na democratização da infraestrutura urbana são direcionados para a valorização do patrimônio da classe média e elite. Portanto, antes que alguém, hipocritamente, traga um argumento neomalthusiano, sugiro que se lembre que é da exploração do trabalho das classes populares e dos recursos naturais que vem a riqueza das elites.
Apesar de contar com parcos recursos, a engenhosidade dos socialmente desprivilegiados foi capaz de modificar sítios para a habitação. Portanto, será que, com todos os recursos técnicos e financeiros disponíveis, o Estado não seria capaz de reduzir os riscos de catástrofes com obras de contenção nas áreas de habitação popular e reduzir o número de mortes? Não nos cabe tentar responder a essa pergunta agora, mas observamos surpresos que, ainda hoje, há quem pense que as catástrofes ocorridas em favelas sejam apenas fruto de desastres naturais, políticas equivocadas ou descaso dos governantes. Ignoram que as políticas estão perfeitamente condizentes com o papel legado ao Estado pela elite, que é o de criar condições para acelerar a transferência da riqueza para os bolsos das elites. Lembremo-nos das palavras de Jessé Souza:
(…) Como ninguém escolhe o berço onde nasce, é a sociedade que deve se responsabilizar pelas classes que foram esquecidas e abandonadas. Foi isso que fizeram, sem exceção, todas as sociedades que lograram desenvolver sociedades minimamente igualitárias. No nosso caso, as classes populares não foram abandonadas simplesmente. Elas foram humilhadas, enganadas, tiveram a sua formação familiar conscientemente prejudicada e foram vítimas de todo tipo de preconceito, seja na escravidão, seja hoje em dia. (SOUZA, 2017: 89)
Sendo a cidade de hoje o reflexo do que nos tornamos, ela também é condicionante daquilo que seremos. Se por um lado, a ausência de uma mudança estrutural da sociedade vem intensificando o processo de distribuição desigual dos benefícios e dos riscos ambientais no espaço urbano. Por outro lado, o direcionamento dos recursos públicos, retirados do investimento em habitação popular e proteção do ambiente habitado pelos mais pobres (contenção de encostas, regulação da instalação de indústrias poluidoras e depósitos de lixo), intensifica a acumulação de capital pelas elites com e o empobrecimento das classes trabalhadoras. Não podemos prever como será o futuro, mas podemos especular que nenhuma mudança estrutural virá das elites ou do Estado.
*Rafael Chaves é geógrafo, doutorando em Geografia pela UFRJ e professor substituto de Geografia Humana da UFRJ.