Essa é a segunda de uma série de cinco matérias por Line Algoed, doutoranda e pesquisadora da Vrije Universiteit Brussel, e María E. Hernández Torrales, professora adjunta na Clínica de Assistência Jurídica da Escola de Direito da Universidade de Porto Rico e ex-presidente do conselho administrativo do Fideicomiso de la Tierra del Caño Martín Peña, publicada originalmente na revista Radical Housing Journal, aqui.
Essa série introduz e descreve a criação e o funcionamento do Termo Territorial Coletivo Canõ Martín Peña, em Porto Rico, e discorre sobre o capitalismo do desastre após o furacão Maria que fomentou políticas de desalojamento na ilha. Ela também apresenta como as comunidades do Canõ Martín Peña vem respondendo a este quadro, propagando o conhecimento das comunidades do Caño—no âmbito do Termo Territorial Coletivo (TTC)—e porque esse conhecimento pode ajudar na resistência de outras comunidades ao redor do mundo. Leia a série toda aqui.
Criação do Termo Territorial Coletivo Caño Martín Peña
O processo de industrialização rápida de Porto Rico levou ao estabelecimento de comunidades não planejadas em cidades costeiras ao longo da ilha. No discurso desenvolvimentista dos governos que se sucederam, esses assentamentos foram declarados impróprios para habitação humana e apresentados como uma ameaça a saúde, segurança e bem estar de todos os cidadãos de Porto Rico. o Ato de Erradicação de Favelas de Porto Rico, de 1945, estimulou o apoio às remoções, subsidiado pelo governo federal dos EUA, que apenas resultou na realocação dos agrupamentos de pobreza em outras áreas. Muitas famílias foram forçadas a se mudar para projetos de habitação pública, mas como o governo não forneceria moradia para todos, a existência dos assentamentos informais foi em geral tolerada.
Hoje, milhares de famílias ainda vivem nessas comunidades. Aproximadamente 25.000 pessoas vivem na área do Caño, em oito comunidades localizadas ao longo do canal de maré Martín Peña. Rodovias pavimentadas, eletricidade e água corrente agora estão disponíveis, mas muitas casas ainda sofrem com a falta de uma drenagem de água apropriada após as chuvas e sistema de saneamento de esgoto, e o esgoto ainda vai diretamente para ao canal. O canal entope e inundações frequentes com água contaminada afetam 70% das comunidades [ao longo do canal]. Um senso forte de pertencimento a terra, carência persistente e medo de remoção fez com que os moradores de sete das oito comunidades de Martín Peña criassem o TTC Caño Martín Peña como uma solução prática para abordar problemas estruturais que reproduzem pobreza e marginalização.
Devido a sua importância nacional, a Agência de Proteção Ambiental dos EUA criou o Estuário da Baía de San Juan, onde o canal está localizado, para se tornar parte do Programa Nacional do Estuário. O Plano Integral de Manejo e Conservação do Estuário da Baía de San Juan, adotado no fim da década de 1990, incluiu a dragagem do ambientalmente degradado Caño Martín Peña e abordou os desafios de infraestrutura nas comunidades adjacentes como ações principais obrigatórias para estimular o ecossistema. No começo da década de 2000, o Governo de Porto Rico converteu a dragagem em um projeto estratégico e o atribuiu à Autoridad de Carreteras y Transportación (ACT) (Autoridade Rodoviária e de Transportes), uma corporação pública sob o Departamento de Transporte e Obras Públicas.
Funcionários do ACT adotaram uma abordagem completamente diferente para o envolvimento das comunidades ao longo do canal de maré1. A equipe, inicialmente composta de urbanistas e assistentes sociais comunitários, implementou uma metodologia que era nova para a ACT. Em vez de reduzir a participação dos cidadãos nas audiências públicas depois do estágio de planejamento de um projeto estar quase finalizado, eles reuniram as lideranças comunitárias, ajudaram a fortalecer a organização de base e começaram a planejar não apenas a dragagem do canal, mas também o desenvolvimento abrangente das comunidades afetadas. Os moradores foram convidados a pensar de forma crítica sobre suas condições de vida e começaram a comunicar sua falta de confiança no governo em relação a remoção de famílias para habitações públicas. Eles questionaram quem seriam os beneficiários dos projetos de infraestrutura estratégica propostos, e se eles levariam a novas remoções, sabendo do valor de suas terras bem localizadas. Eles expressaram seu desejo forte de permanecer na comunidade, bem como seu medo de serem removidos.
As comunidades embarcaram num planejamento abrangente, processos de ação e reflexão, que durante os primeiros dois anos incluiu organizar mais de 700 reuniões comunitárias e atividades de proximidade. Esse processo transformou o projeto de infraestrutura em um projeto de desenvolvimento mais amplo, conhecido como Proyecto ENLACE del Caño Martín Peña (Projeto ENLACE). Construir confiança entre autoridades e a comunidade, aspecto fundamental para estimular a participação, levou tempo. As lideranças das comunidades criaram uma organização sem fins lucrativos de base, o Grupo das Oito Comunidades ao Longo do Caño Martín Peña ou G-8, que agrupou todas as organizações de base. O diálogo entre as comunidades levou a um entendimento maior dos problemas que eles tinham em comum, ao invés de suas diferenças. Como Juanita Otero, uma das líderes comunitárias envolvidas no processo desde o começo, descreveu:
“O maior feito para as oito comunidades é falar a mesma língua. Nós estamos próximos fisicamente e, apesar de termos tanto em comum, não estávamos trabalhando juntos. Agora nós podemos apoiar uns aos outros”2.
O processo de planejamento participativo resultou em diversos instrumentos, desenhados de baixo para cima. O primeiro foi um Plano de Desenvolvimento Integral e Uso das Terras para o Distrito de Planejamento Especial do Caño Martín Peña (Plano do Distrito), gerado com os moradores das comunidades, que imaginava “uma comunidade unida, segura e próspera, modelo de coexistência no coração de San Juan”. O Plano do Distrito contém estratégias para enfrentar as condições de marginalização e integrar as comunidades com o resto da cidade, reabilitar o canal e fornecer infraestrutura com a menor quantidade possível de deslocamentos, fornecer opções de reassentamento para famílias afetadas dentro de suas comunidades, e assegurar que o investimento público e privado na área seja convertido para os negócios comunitários de forma a fortalecer a economia local.
O processo levou a uma nova legislação: a Lei 489, promulgada pelo Governo de Porto Rico em 24 de setembro de 2004. Com a aproximação do processo eleitoral de 2004, líderes comunitários expressaram sua preocupação com a mudança do governo e possível perda do trabalho. Com o apoio de advogados e conselheiros externos, e aprendendo com experiências anteriores, um projeto de lei foi preparado e discutido de forma exaustiva para garantir que estaria consistente com as decisões tomadas pelas comunidades. Depois da pressão e estratégia comunitária, o projetou foi aprovado e virou lei. A lei reconheceu o G-8 como a entidade representativa das Comunidades do Caño. Ela também criou dois instrumentos adicionais cuja função seria promover desenvolvimento equivalente, participativo e sustentável na área. O primeiro foi a Corporación del Proyecto ENLACE del Caño Martín Peña (Corporação do Projeto ENLACE do Caño Martín Peña), uma corporação pública com autoridade para implementar o Plano do Distrito, com recursos do governo alocados por um período limitado de 20 a 25 anos, com a participação de moradores e em parceria com setores públicos e privados. O conselho de diretores do ENLACE foi desenhado pela comunidade, garantindo a continuidade do projeto ENLACE a despeito de mudanças no governo. O desenho do ENLACE efetivamente colocou instrumentos e recursos do governo nas mãos da comunidade (Figura 1). O projeto atingiu a democratização do planejamento para sustentabilidade social e ecológica.
Finalmente, a lei também criou o Fideicomiso de la Tierra del Caño Martín Peña, ou TTC Caño. A propriedade da terra em que as comunidades vivem por mais de 70 anos, antes pertencentes a diferentes órgãos públicos, foi transferida, primeiro para o ENLACE e, depois, para o TTC Caño. A terra será mantida fora do mercado imobiliário perpetuamente.
Anteriormente, os Termos Territoriais Coletivos eram em geral encontrados nos EUA e países europeus—onde há uma crescente falta de moradia popular em cidades com custos crescentes para habitação—retirando terras do mercado e colocando-as em fundos sem fins lucrativos para promover a propriedade coletiva. Mas recentemente, TTCs começaram a ser criados no Hemisfério Sul como uma ferramenta para regularizar a posse de terra e atenuar as causas históricas da pobreza, e o TTC Caño se apresenta como o principal exemplo. O movimento dos TTCs como é conhecido hoje, é descrito pelo praticante e estudante do tema, John E. Davis3 como profundamente “enraizado na sementeira fértil das ideias teóricas, movimentos políticos e experimentos sociais que foram criados em um período de muitas décadas”. O modelo conforme implementado nos EUA se distingue por três conjuntos de características: propriedade, organização e operação. Por essa abordagem, a terra é tratada como um patrimônio comum, não como uma posse individual; a terra é retirada de forma permanente do mercado; proprietários particulares possuem todas as melhorias estruturais (casas e outros prédios) de forma separada da terra; e um contrato de locação do terreno de longa duração dá aos proprietários dessas estruturas o uso exclusivo da terra em que a estrutura está. Quando nós pesquisamos tais características, nós encontramos uma ética de administração definida como “a terra tratada como patrimônio comum: encorajando a propriedade apenas por aqueles que estão dispostos a morar na terra e usar a terra, não acumulando mais do que eles precisam; enfatizando o uso correto da terra e o desenvolvimento inteligente; capturando ganhos criados socialmente no valor da terra para o bem comum”4.
O TTC Caño foi inspirado nos princípios do TTC norte-americanos, mas o instrumento foi re-criado por moradores para servir às suas necessidades particulares, adicionando suas próprias figuras legais, como direitos de superfície, que descreveremos a seguir. Processos de organização comunitária que promoviam o pensamento crítico e autônomo, a troca equitativa de conhecimento e técnicas de educação popular fizeram com que os próprios moradores desenhassem seu TTC e, assim, o possuíssem completamente.
Como Funciona o TTC Caño
Hoje, o TTC Caño dá a quase 2.000 famílias de baixa renda a propriedade coletiva de 78 hectares de terra em uma área privilegiada de San Juan (Figura 2). O processo deliberativo de seleção e adaptação desse novo mecanismo de posse de terra em Porto Rico aprofundou a coesão da comunidade e uniu as comunidades para protegerem a terra que seus pais e avôs “criaram” (ao preenche-la com detritos)5, e também para restaurarem as qualidades ambientais do canal de maré.
O TTC Caño regularizou a posse de terra no Distrito de Planejamento Especial do Caño Martín Peña, garantindo de forma permanente moradia acessível e evitando remoção involuntária e gentrificação como um resultado indesejado do necessário Projeto de Restauração do Ecossistema do Caño Martín Peña. O TTC é uma organização sem fins lucrativos governada por uma maioria de moradores. O conselho é composto de onze diretores, dos quais seis são moradores das comunidades do Distrito de Planejamento Especial selecionados por uma assembleia de membros do TTC Caño ou o G-8; dois são técnicos aliados selecionados pelo conselho; e os outros três diretores são representantes do governo estatal e local (um do conselho de diretores do ENLACE, um indicado pelo governador e um indicado pelo prefeito de San Juan). A composição desse conselho foi desenhada pelos moradores e permite que a comunidade mantenha controle da terra e dos ativos que foram transferidos para o TTC Caño via legislação ou adquiridos posteriormente. Os diretores estabelecem a política administrativa do TTC e garantem que a terra serve aos melhores interesses tanto da comunidade como um todo, quanto das famílias que vivem na terra do TTC, especialmente aquelas que tiveram que ser reassentadas como consequência da implementação do Plano de Distrito. Esse conselho diretor é responsável pelos membros do TTC Caño, composto por aqueles indivíduos e famílias vivendo na terra de posse coletiva (os beneficiários). A assembleia de membros toma decisões importantes sobre a terra e outros pontos de forma coletiva. Nenhuma terra dentro do Distrito de Planejamento Especial pode ser onerada sem o consentimento prévio da assembleia.
A relação entre o proprietário de terras coletivas (TTC) e os proprietários individuais é regularizada através da transmissão do direito de superfície. Esse direito de uso dos pontos de terra onde a casa está localizada é confirmado e evidenciado por meio de escritura que é executada entre o TTC Caño e cada proprietário particular e registrada como uma propriedade separada da terra no Registro de Propriedades e Imóveis de Porto Rico. O conteúdo da escritura é totalmente transparente, e todos os termos e condições são discutidos e revisados durante o processo de assinatura. As escrituras de direito de superfície reconhecem a propriedade das melhorias estruturais (como a casa) separada de forma individual. Pela primeira vez, o dono verá sua casa—muitas vezes construída pela família ao longo de muitas décadas, mas nunca reconhecida de forma legal—registrada em seu nome nos registros do governo. Pela regularização dos termos de posse, os moradores também ganharam o acesso a outras proteções legais disponíveis em Porto Rico. Por exemplo, na escritura de direito de superfície, o dono da casa pode revindicar a proteção da casa da família contra dívidas não relacionadas às hipotecas.
O direito de superfície pode ser herdado, vendido e hipotecado, dando as famílias acesso formal a esse tipo de crédito. O TTC Caño, porém, mantém o direito a preferência. De forma semelhante a [muitos] TTCs norte-americanos, quando o TTC Caño vende o direito de superfície ou uma unidade habitacional que possui, particularmente quando tal propriedade foi desenvolvida com subsídios, a escritura também inclui uma fórmula de revenda que limita à equivalência patrimonial. Como outro componente importante e justo dos termos e condições incluído na escritura dos direito de superfície, a fórmula de revenda garante que os subsídios investidos no desenvolvimento de unidades habitacionais sejam duradouros, garante o retorno justo do investimento dos vendedores e cria oportunidades para outras famílias ou indivíduos de baixa renda desfrutarem de moradia adequada a preço acessível na cidade6.
Por meio do TTC Caño, os moradores do Distrito de Planejamento Especial agora estão entre os grandes proprietários de terra de San Juan. O G-8, como expressão institucional das comunidades organizadas do Caño, ganhou uma voz forte para influenciar políticas. Durante as campanhas eleitorais, por exemplo, o G-8 convidou candidatos para assinar um acordo em que se comprometiam a fazer avanços na implementação do Plano de Desenvolvimento Integral, incluindo a restauração do ecossistema do canal Martín Peña e outras obras críticas de habitação e infraestrutura. Tais compromissos foram publicados e seu cumprimento é relatado no jornal do G-8 Raíces (“Raízes”, em português).
Referências Bibliográficas
[1] Algoed, L., Hernández Torrales, M.E. & L. Rodríguez Del Valle. “El Fideicomiso de la Tierra del Caño Martín Peña: Instrumento Notable de Regularización de Suelo en Asentamientos Informales”, Working Paper. Cambridge: Lincoln Institute of Land Policy (2018: 13).
[2] Hernández Torrales, M.E. (2007). The Caño Martín Peña Community Land Trust: Corollary of a Model of Community Involvement, Progress, Revista del Colegio de Abogados de Puerto Rico, 68(4), pp.: 794-817 (2007: 794)
[3] Davis, J.E. The Community Land Trust Reader. Cambridge: Lincoln Institute of Land Policy (2010: 3).
[4] Davis, J.E. The Community Land Trust Reader. Cambridge: Lincoln Institute of Land Policy (2010: 4).
[5] Fuller Marvel, L. Listen to What They Say. Planning and Community Development in Puerto Rico. San Juan: La Editorial, Universidad de Puerto Rico (2008: 112).
[6] Algoed, L., Hernández Torrales, M.E. & L. Rodríguez Del Valle. “El Fideicomiso de la Tierra del Caño Martín Peña: Instrumento Notable de Regularización de Suelo en Asentamientos Informales”, Working Paper. Cambridge: Lincoln Institute of Land Policy (2018: 24).
Esta é a segunda matéria de uma série de cinco apresentando Lições Oriundas da Vulnerabilização e Resistência do TTC Caño Martín Peña.