No dia 4 de maio foi realizado no Vidigal, na Zona Sul, o 5º Sarau Político Cultural Politilaje. Dessa vez, o tema foi ‘Favela diz Não a reforma da Previdência’.
O debate da Reforma da Previdência não é novo: ele começou com as tentativas de mudança impulsionadas pelo ex-presidente Michel Temer e foi relançado no início deste ano com a nova proposta encaminhada pelo governo do Presidente Jair Bolsonaro. A reforma da Previdência é um dos temas com mais cobertura midiática e controvérsias atualmente no Brasil. Como qualquer mudança no sistema da seguridade social afeta substancialmente a maioria das pessoas, os organizadores do Politilaje consideraram oportuno debater publicamente este tema que diz respeito a todos.
Politlaje: Espaço de Diálogos da Favela, Com a Favela e Para a Favela
O coletivo Politilaje nasceu no Vidigal como uma alternativa à política que “promete mas não cumpre”, como diz um dos membros fundadores, William de Paula, mais conhecido como Ninho. É o resultado do cansaço de “uma política totalmente cartesiana com palavras difíceis”. Nesse sentido, Politilaje traz um formato de diálogo interativo com o intuito de fomentar a discussão política nas comunidades, instigar o engajamento político por parte dos moradores e dar protagonismo aos jovens e as mulheres que com frequência ficam afastados e mesmo excluídos nesses debates. Seus saraus são encontros político-artísticos onde se fala de temas da atualidade como a gentrificação e políticas públicas que podem prejudicar as comunidades. Esses encontros se destacam pela forte presença de componentes artísticos, literários e musicais.
A intenção do 5º sarau era dialogar sobre a reforma da previdência de forma protagonizada pela favela. Entre os palestrantes se encontravam personalidades da música MPB, declamadores de poesia, MCs, jornalistas, moradores e figuras políticas vindos do Santa Marta, Jacarezinho, Babilônia, Vidigal e Rocinha. Cada um trazia seus conhecimentos e experiências, gerando discussões sobre a reforma. Ninho afirmou que “a gente quer entender os motivos [da reforma da Previdência], e os motivos até agora apresentados não convencem nenhum dos nossos moradores”. André Constantine, ex-presidente da Associação de Moradores e militante da Babilônia e do movimento Favela Não se Cala, disse que “a reforma não pode acontecer sem um amplo debate com a sociedade. Isso que a comunidade do Vidigal teve a iniciativa de fazer deveria ser uma pré-condição para o governo se arriscar a propor uma reforma da Previdência no Congresso”.
Quem é Afetado pela Reforma da Previdência?
A Previdência Social é um seguro social do sistema público que protege os trabalhadores, com o objetivo de garantir o sustento do trabalhador para ele se aposentar ou quando tiver alguma incapacidade. Como disse André: “é o maior programa de proteção social que existe na sociedade brasileira, e é para garantir um direito que proteja a vida e dignidade das pessoas”. O artigo 195 da Constituição Federal prevê que “a seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta”. Ela funciona sob a lógica de “solidariedade”, isso quer dizer que quem trabalha hoje contribui para assegurar a subsistência dos que já contribuíram. Como Sebastião Aleluia, ex-presidente da Associação de Moradores do Vidigal, afirmou, a “Previdência sugere ‘prever’, contribuir agora para ter um respaldo para quando eu deixar de trabalhar”.
A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) prevê várias transformações, uma delas é o estabelecimento de uma idade mínima para aposentadoria, sendo 62 anos para mulheres e 65 anos para homens, com 20 anos de contribuição. Hoje, a aposentadoria por idade exige 60 e 65 anos, com 15 anos de contribuição previdenciária. O problema, segundo deputado estadual pelo PSOL, Flavio Serafini, que esteve no debate, é que “tem lugares no Brasil, inclusive aqui no Rio de Janeiro, onde a expectativa de vida não chega aos 65 anos. Isso significa que os lugares onde a população é mais pobre, e que [as pessoas] têm que se submeter a um trabalho mais duro, que não têm saneamento, que não têm alimentação ideal, essas pessoas não vão conseguir mais se aposentar”. Dados do IBGE mostram que a expectativa de vida dos moradores de grandes favelas cariocas são mais baixas: no Complexo do Alemão, em 2000, uma criança ao nascer tinha expectativa de viver por 64 anos. Na Maré e no Jacarezinho, essa expectativa chegava a 66. Além disso, dados do governo mostram que a população mais pobre se aposenta, em geral, pela regra de idade mínima, porque muitas vezes eles têm dificuldade para manter o emprego com carteira assinada por longos períodos. A informalidade também joga um papel importante nesse processo. Prolongar essa idade atinge por conseguinte um grande público.
O depoimento pessoal de Sebastião Aleluia, com atualmente 58 anos, também ilustra bem essa problemática dos tempos de contribuição e idade: ele começou a trabalhar como boleiro na quadra de tênis quando tinha 10 anos. Depois disso, trabalhou de padeiro, entregando o jornal Globo e numa empresa de saneamento. “Juntando todo esse tempo de trabalho, tirando a fase de trabalho infantil, eu vou fazer 36 anos de contribuição religiosamente na Previdência. Agora, eu estou preocupado, pois por conta dessa reforma muitos processos estão sendo postergados”, disse ele. O poeta do Vidigal, João Vitor Nascimento observou que “a reforma da Previdência é uma violência… É quando os justiceiros atacam a luz do dia segurando uma caneta, e as vítimas muitas vezes nem percebem que a tinta azul mata mais que a pólvora da escopeta”.
Ninho afirmou que “os maiores prejudicados [pela reforma] serão os mais idosos”, pois o benefício assistencial ao idoso e à pessoa com deficiência, o Benefício de Prestação Continuada (BPC), é o que garante um salário mínimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso com 65 anos ou mais. Após a reforma, a pessoa idosa em situação de miséria terá direito a apenas R$400, e somente quando essa pessoa completar 70 anos terá direito ao salário mínimo. Em um país como o Brasil, em que os salários médios são baixos e as aposentadorias chegam a ser a única fonte de renda mensal de famílias inteiras, o desmantelamento do BPC é problemático.
Outro ponto destacado no debate foi que as mulheres serão bastante afetadas com as mudanças que o governo pretende fazer, já que a idade mínima para aposentar irá subir sem levar em conta que elas realizam duplas e até triplas jornadas. Como Sebastião afirmou, “o dia a dia de todos será afetado”, por isso é importante falar dessa proposta pois “muitas pessoas nem sabem exatamente o que tem dentro desse projeto da reforma da previdência, e que foi colocado em sigilo”.
Por outro lado, a possibilidade de instalar um regime de capitalização da Previdência também foi discutida no debate. Nesse regime, cada trabalhador faz uma poupança individual para financiar sua própria aposentadoria no futuro. Serafini explicou que “a Previdência deixa de ser um direito e passa a ser contratada individualmente” e “quem toma conta? Os bancos e agentes financeiros”. Waldeck Carneiro, deputado estadual pelo PT falou que esse sistema mina a solidariedade, desresponsabiliza ao empregador e deixa às entidades privadas regular os recursos das pessoas sem segurança alguma. Sebastião agregou que “o que interessa ao empresário certamente não interessa ao trabalhador—são interesses conflitantes”. André preocupa-se com a instalação de um sistema previdenciário “inspirado no modelo chileno durante a ditadura do Pinochet, de financeirização e mercantilização” atualmente em crise.
Importância da Mídia: Desmentindo Mitos
Desde que a proposta foi feita, Bolsonaro e os membros de seu governo, como o Ministro da Economia Paulo Guedes e vários deputados, fazem uma defesa enfática dela. O discurso até vem acompanhado de ameaças: “outra alternativa se o Brasil continuar tendo déficit ano a ano é imprimir moeda, não é Paulo Guedes? Eu acho que se imprimir moeda, vocês sabem o que vem atrás, vem inflação. Outra é conseguir empréstimo aí fora. Será que querem emprestar para nós? Com que taxa de juros? Nós não temos outra alternativa, a reforma da Previdência é o primeiro grande passo para nós conseguirmos aqui a nossa liberdade econômica”, afirmou Bolsonaro. Em relação a essas ameaças, Sebastião observou que “o argumento dos empresários e das grandes mídias de que ‘se a reforma da Previdência não for feita o mundo vai acabar’ já dá para nos deixar com uma certa desconfiança”.
Se alardeia que a Previdência pública brasileira está deficitária desde 1997 e ela responde por 59% dos gastos da União, porém André afirmou no debate que esses fatos são distorcidos e servem para perpetuar falas mal intencionadas. Segundo ele, na verdade, existem várias razões para o desequilíbrio deficitário das contas, entre elas o fato que “as grandes empresas sonegam a contribuição previdenciária”, que “o Estado deixa de recolher contribuição que deveria recolher”, e que “desvia do orçamento da Previdência Social para gastar em outras coisas, em geral, juros e dívidas”. Isso é feito por meio da Desvinculação de Receitas da União (DRU), mecanismo que permite ao governo federal usar livremente 20% dos tributos federais vinculados por lei a fundos ou despesas. Sua principal fonte de recursos são as contribuições sociais.
Finalmente, a alta taxa de desemprego influi muito nesse desequilíbrio de contas, porque menos pessoas contribuem ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Aliás, a população desempregada no Brasil era de 13,1 milhões de pessoas em fevereiro. Finalmente, empresas, trabalhadores, estados e municípios devem R$488,4 bilhões à Previdência, com boa parte dessa dívida pertencendo a empresas falidas (entre elas Varig, Vasp, Transbrasil,TV Manchete, Editora Páginas Amarelas…). Por isso é difícil de ser cobrada.
Serafini então propõe como solução a esse desequilíbrio a instituição de “impostos às grandes fortunas, impostos de renda às empresas, impostos a artigos de luxo”. Ele agregou “vamos fazer isso em vez de tirar do trabalhador que vive de um salário, que vive da sua aposentadoria”.
O jornalista e assessor de comunicação e gestor de redes sociais da RioFilme, André Balocco, trouxe uma fala sobre a relevância do jornalismo e das mídias em espalhar mentiras nas redes sociais. Ele apresentou que a imprensa de massa quer transmitir só uma ideia, a ideia dos mais poderosos. Ele argumentou que com a força de reproduzir e repetir o mesmo argumento, as pessoas o interiorizam. Ele afirma que “a gente não aguenta mais ver essas mentiras e campanhas de ódio que vemos nas redes sociais e recebemos no WhatsApp”. Segundo ele “[nós jornalistas] precisamos nos reinventar, replantar e admitir os erros”. Finalmente, ele recomendou que devemos “tomar cuidado com o que vemos nas redes sociais”.
Outras Questões Trazidas à Roda de Conversa: Violência e Resistência
“Quando a gente fala da reforma da Previdência tem várias questões muito interligadas” falou Sebastião. Ele afirma que “essa reforma vai trazer miséria para uma grande porção da população brasileira e não estou fazendo nenhum exagero com isso. A miséria traz consigo a violência porque em ‘casa que falta pão todos gritam mas ninguém tem razão’”. Essas palavras respondem a um contexto de violência que está ocorrendo no Vidigal, materializada na morte de William de Mendonça Santos, um gari da comunidade, durante um tiroteio recente. Freddy, guia de turismo local disse que “a união da comunidade é importante para rememorar a alma dele,… uma pessoa com todos os motivos para reclamar da vida, mas que era agradecido à vida”. Para André, as mortes de inocentes são o resultado de uma “política absurda e fracassada no Rio de Janeiro” que “só produz a morte da população jovem e negra por parte do Estado”.
Atualmente, a reforma da Previdência está em análise em uma comissão especial, e o debate continua aberto. O evento, ritmado pelos MCs Leonardo, Pato Roco e Fiel cantou em várias ocasiões a conhecida estrofe “eu só quero é ser feliz / andar tranquilamente na favela onde eu nasci / e poder me orgulhar / ter a consciência que o pobre tem o seu lugar”, e foi um bom exemplo de como a política pode fazer parte da arte de viver coletivamente.
A fala de Antonio Carlos Ferreira Gabriel, conhecido como Rumba Gabriel, compositor da Estação Primeira de Mangueira, resumiu bem o 5º Sarau Político Cultural do Vidigal: “A reforma da Previdência deve ser discutida realmente, casa por casa… Temos que estar atentos, vigiando para que nosso território possa ter cidadania. É necessário conscientizar nossa população… [para que] essa galera do morro acredite que temos lideranças certas, nós precisamos trabalhar no caminho da conscientização, da informação”.